TRAVESSIA NOTURNA.
TRAVESSIA NOTURNA.
Lago Santiago, 1920.
A única intenção que me dominava era chegar em casa. No entanto, havia que atravessar o lago e, àquela hora da noite, a balsa já havia findado o seu percurso. A sorte foi ter ido a pé, visto que previ que a visita à minha amante, Serena, demoraria. Ademais, se passasse a noite fora as coisas ficariam ainda mais amargas com minha esposa.
A travessia com o canoeiro era a alternativa. Sabia que pagaria muito caro pelo horário, mas não havia alternativa e, por mais que desejasse ficar com Serena, as amantes, depois de um tempo, começam a exigir como a esposa. Então, deveria já ser hora de romper, embora isso fosse certo, pretendia esperar mais um ou dois meses esticando o prazer.
Caminhei pela estrada tortuosa entre os campos da ilha e do vilarejo aonde ela vivia até chegar ao cais. Ezequiel era o nome do barqueiro e, se não estivesse bêbado, sei que me levaria por um par de cobres – uma fortuna.
Os lampiões estavam acesos e as lareiras fumegavam. Apertei mais o sobretudo ao peito e as borrifadas de ar quente faziam desenhos na minha frente. Caminhava rapidamente apertando o ritmo. Izaura acreditava que venderia iscas e anzóis, embora soubesse, no íntimo que acreditava que estava sendo dividido com outra. É algo que admiro nas mulheres do seu tipo: caseiras, donas do lar típicas, aceitam o que o marido faz desde que continue um segredo. Preservam tanto a família que preferem nos ver com tais namoricos a perder a estabilidade do matrimônio. Assim, um bom amante nunca deve exibir publicamente seus casos para que tanto o casamento quanto o namoro durem o máximo possível.
Bati na porta da casa do Ezequiel. Tive que bater várias vezes. Ouvi passos vindo lentamente. A porta abriu parcialmente. Ao fundo as chamas da lareira passavam uma luz difusa que fez com que demorasse a distinguir o vulto da porta entreaberta. Era uma senhora idosa, a esposa do barqueiro, dizendo:
- Ezequiel está doente!
- Senhora, desculpe, mas preciso fazer a travessia. Tem alguém que possa me ajudar?
- Não conheço ninguém que trabalhe a essa hora... – E assim bateu rispidamente a porta na minha cara.
- E agora, pensei em voz alta? Acho que terei que passar a noite aqui.
Virei-me e seguia pelo pequeno caminho da propriedade quando vi, ao portão, uma figura alta e esquálida segurando um lampião. Um gorro alto e pontudo cobria sua cabeça. Algo não me bateu bem. Senti como se fosse uma vertigem, um calafrio e, ao aproximar-me vi que o rosto do homem era comprido, com a pele muito lisa e grandes olhos oblíquos. Devido à luminosidade acreditei que sua pele estava com o tom um tanto esverdeado. Fiquei atônito e congelado. O estranho levantou o lampião na minha direção dizendo:
- Sou barqueiro e não pude de deixar de ouvir o que dizia. Quer atravessar agora?
Engoli em seco. Porém, passar a noite na vila seria um desastre completo. Acertamos o preço e cobrou um cobre – bem menos que Ezequiel. Fiquei satisfeito esquecido do ditado: ¨o que é barato pode custar muito caro¨.
O estranho não era de conversa. Tentei perguntar se fazia o percurso há muito tempo e ficou quieto, apenas respondendo:
- Quer um barqueiro ou um conversador?
Diante da sua pouca educação, vi-me obrigado a seguir calado. A noite escura, sem luar, deixava o lago tenebroso e sombrio. Um vento frio formava pequenas ondas que pareciam cabeças de nadadores. O barco do homem era diferente do de Ezequiel lembrando as gôndolas de Veneza, porém muito mais extenso e bastante estreito. Mandou-me sentar à frente. O barqueiro seguiu empurrando a embarcação à vara para frente. Dava para ver as luzes da minha cidade adiante. Com a balsa levávamos 30 minutos e quase uma hora com o barco. Senti que ele ia rápido cortando as águas com velocidade desconcertante. Fiquei animado.
O estranho é que por mais que deslocasse a embarcação, não vi que a cidade parecesse se aproximar. Deslizávamos, mas parecia que não saíamos do lugar. Então, voltei-me para trás para dividir a impressão com o barqueiro e levei um susto: ele não estava mais lá. O barco deslizava por pura inércia e a vara estava deitada sobre o mesmo. Apavorado, imaginei que tivesse caído e rapidamente me desloquei para o ponto oposto tendo o maior cuidado possível gritando:
- Barqueiro!
Procurei-o em todas as direções. O lampião se encontrava pendurado como deixara no arco da gôndola traseiro, mas não sabia do homem. Atordoado, peguei a vara e parei a embarcação. Gritei por ele várias vezes. Dei a volta e, lentamente, procurei por um sinal qualquer gritando:
- Olá! Aonde está você?
Não obtive nenhuma resposta. Praticamente em pânico, pensei em voltar ao vilarejo, mas já era tarde demais. Decidi, então, seguir para a cidade e informar às autoridades. Nisso, aos poucos, um nevoeiro foi-se formando como se da água brotasse a névoa que, em pouco, ficou densa desorientando-me totalmente. Não tinha a referência das luzes da cidade, mas empurrei o barco mesmo assim. Então, para minha surpresa, vi uma esfera de luz pouco à frente flutuando sobre as águas. Era um globo muito claro com uma luz ofuscante, porém fria. Diminui um pouco a velocidade para passar próximo à mesma. Era grande, do tamanho de um homem agachado.
Passei resvalando a embarcação e, curioso, toquei-a. Era fria como a neve. Fiquei encantado. Logo, mais à frente, vi que havia outra e desloquei na sua direção. Em seguida, outras foram surgindo traçando uma espécie de caminho que segui acreditando levar-me até a cidade. O barco parecia ficar mais leve e rápido a cada impulso que dava. Então, para minha surpresa, começou a adquirir uma velocidade maior, maior...
Ficou tão rápido que precisei me sentar. Fiquei confuso. As águas pareciam acelerar formando um forte veio no meio do lago, como uma corredeira poderosa. A embarcação tremulou, mas se manteve firme. Nisso, para minha surpresa e logo à frente surgiu das águas um arco invertido em ¨U¨. Luminoso como as esferas e, sem saber explicar, foi como se o atravessasse rapidamente entrando em uma explosão de luz. Fechei os olhos cobrindo-os com os braços e sentindo meu corpo como se projetado no espaço. Desmaiei.
A sensação era nauseante. A primeira coisa que percebi foi um sabor metálico à boca. Movimentei a língua e notei que havia um objeto dentro dela descendo pela garganta. Tentei movimentar meus braços, mas estava preso. Sentia as pernas, mas também não podia movê-las. Abrindo os olhos vi uma forte luz. Demorei a me acostumar. Percebi que havia pessoas próximas caminhando. Tentei gritar, mas o metal na boca permitia que apenas grunhidos saíssem. Ouvi sons, como se fossem estalos de tacos sobre a madeira, mas notei que era um tipo de conversa aguda e confusa. Que idioma medonho seria o daquela gente? Foi então que senti algo tocando meu ombro direito. Vi um vulto e à medida que minha visão melhorava, percebi que era o estranho barqueiro. De fato, sua pele me pareceu completamente verde. Havia tirado o gorro que vestia e suas orelhas eram pontudas como as dos equinos. O nariz havia mudado e não tinha mais a forma humana. Ao invés, dois buracos se destacavam. A boca estava mais fina como se os lábios houvessem virado dois riscos. As sobrancelhas sumiram e os olhos ainda eram oblíquos. Falou então para que entendesse:
- Calma, você está entre amigos...
Não me lembro de mais nada. Sei que, tempos depois, vi-me dentro de um tubo cilíndrico enorme. Não conseguia me mover. Ao invés de ar, respirava dentro de um líquido transparente. Não tinha fome, sede ou frio. O metal pela boca parecia me nutrir. Seres estranhos, saídos dos piores pesadelos passavam me olhando, aproximando-se e batendo no vidro de tempos em tempos. Confesso que tive um enorme medo, desespero e queria morrer mil vezes, mas estava destinado a ficar ali, exposto, eternamente para aquela horda infindável de monstros...