NO DIA EM QUE ALMA MORREU, uma chuva fina mas persistente caiu do amanhecer até a noite, deixando todos gelados até os ossos e anunciando a chegada de um rigoroso inverno. Nossas casas ficaram úmidas e frias, os dias se tornaram tristes, muitas crianças e alguns adultos não resistiram

Era muito cedo quando minha mãe me despertou, me obrigando a sair da quentura da minha cama para aquela manhã gelada. Eu estava sentado em minha cama, ainda lutando para manter meus olhos abertos, quando ela voltou ao meu quarto e, com uma urgência que eu desconhecia, mandou que parasse de enrolar e vestisse minhas roupas de domingo. Logo estávamos na rua, caminhando espremidos sob o mesmo guarda-chuva. Eu tentava acompanhar o passo acelerado de minha mãe e escapar das gotas frias que me acertavam, sem ter a menor ideia de para onde estávamos indo até que, para meu assombro, entramos no casarão da esquina onde a menina pálida que mais se assemelhava a uma aparição do que a uma criança vivia com seus pais.

Não me lembro como começou meu interesse que chegou à beira da obsessão por aquela garota que eu não conhecia, mas acredito que tudo teve início quando eu percebi que ela era um assunto constante entre os adultos que sempre baixavam a voz a um sussurro respeitoso ao falarem dela ou de sua família. Alguns até faziam o sinal da cruz, para afastar qualquer mal que a conversa pudesse atrair.

Todo aquele mistério em torno de Alma, a menina que nunca saia de sua casa, nem mesmo para ir à escola, me fascinava como se ela fosse parte de um obscuro segredo e foram muitas as vezes em que eu passei horas espiando através das grades que davam para o jardim de sua casa, na esperança de descobrir algo que me ajudasse a desvendar aquela história, mas para minha decepção, nunca se via vivalma ali, a casa, apesar de grande, parecia morta, o que no final das contas aguçava ainda mais minha curiosidade.

A única oportunidade que eu tinha para ver Alma eram as missas de domingo. Naqueles momentos, alheia a tudo e a todos à sua volta, com os olhos fechados, ela habitava um mundo próprio que combinava perfeitamente com o ambiente místico de cantorias e orações. Durante o resto da semana, depois de passar todo o tempo observando cada movimento e cada detalhe daquela menina que se vestia como uma boneca de louça com vestidos de organdi tão branco que tornava difícil distinguir o que era sua pele e o que era o pano de suas roupas, eu enchia as folhas de um velho caderno com esboços de seu rosto que, em minha lembrança, se fundia aos rostos das imagens de santas e anjos que adornavam a igreja.

Apesar de eu sempre estar á sua espreita, ela nunca tinha me notado, afinal, eu era só mais um dos muitos filhos de operários da vizinhança, igual a todos os outros e aquilo não me magoava, o que eu deveria esperar? Mas no domingo anterior à sua morte, algo difernete aconteceu, pela primeira vez desde que Alma me enfeitiçara vi que ela parou por um instante e se virou em direção das pessoas que ocupavam os bancos dos fundos da nave, durante menos que um instante nossos olhos se cruzaram e antes que o pai puxasse sua mão delicadamente, fui objeto daquele olhar melancólico que não pertencia a este mundo. Senti minhas pernas fraquejando, o estômago gelado e o frio na espinha, depois, me achei um idiota por pensar que ela tinha me notado. Aquilo era pura imaginação.

Ao caminhar pelo passeio que levava até as portas do casarão, senti uma grande empolgação, por um momento acreditei que ia conhecer Alma e descobrir um pouco sobre sua vida e sobre os segredos que a rodeavam, porém assim que entramos no hall, minhas expectativas se desfizeram e me dei conta de que havia algo errado. O lugar estava abarrotado de gente como em uma festa, vários de nossos vizinhos estavam ali, todos conversavam em voz baixa num zumbido de enxame de abelhas e o cheiro de lã molhada deixava o ambiente ainda mais opressivo e triste. O pai de Alma, um homem magro, alto, de meia idade, óculos fundos e uma calvície precoce, estava em pé na antessala. Ele nos recebeu com um ar soturno e cumprimentou minha mãe com educação, mas sem demonstrar qualquer indício de que a conhecia. Na sala principal, a mãe de Alma, uma mulher jovem, estava sentada numa poltrona muito elegante, as costas eretas, os olhos vermelhos e inchados, amparada por outras senhoras tão elegantes quanto ela. Minha mãe ofereceu seus cumprimentos rapidamente e seguimos até uma saleta lateral onde o ar estava impregnado pelo cheiro de velas e flores. A um canto, apoiado sobre suportes que brilhavam como se fossem de ouro, Alma dormia em seu caixão branco, só então compreendi o que estava acontecendo e porque estávamos ali. Alma estava morta.

Eu nunca tinha visto uma pessoa morta e a compreensão de que aquela era a garota que ocupava secretamente meus pensamentos me causou um enorme estranhamento, como se a realidade se partisse e eu tivesse entrado num mundo de névoa. A imagem da menina deitada com seu vestidinho de renda branca, as mãos cruzadas sobre o peito, os dedos entrelaçados em um terço de madrepérola, a profusão de flores brancas, o ambiente iluminado por velas longas, me impressionou tão fortemente que por algum tempo não pude me mexer. Vi minha mãe chegar bem perto do caixão, sussurrar uma rápida oração e apressadamente se unir às outras vizinhas para fofocarem sobre o casarão onde sempre desejaram entrar, mas nunca tinham sido convidadas. Continuei há uma certa distância de Alma por um bom tempo, como se tudo ao meu redor fosse um sonho, sem força nem vontade de me mover diante de uma morte tão triste quanto a morte podia ser.

Só depois de algum tempo consegui dar alguns passos e vi que Alma estava tão lívida quanto sempre havia sido, ao redor de seus olhos, pequenas linhas arroxeadas haviam se formado e era possível ver o intrincado desenho que as veias azuis formavam sob a pele de seus braços, os lábios, sem nenhuma cor, haviam desaparecido na tela em branco que era o seu rosto e ela parecia dormir. Em minha inocência, me perguntei como podiam ter certeza de que ela estava realmente morta, talvez estivesse apenas dormindo profundamente. Pensei que a morte não podia ser algo tão simples, apenas fechar os olhos e pronto e isso me encheu de coragem para chegar mais perto e me inclinar sobre ela.

Senti o odor de sua pele e de suas roupas e uma enorme vontade de tocá-la, olhei ao redor e percebi que apesar da sala estar cheia, não havia ninguém prestando atenção em mim, em nós. Levei a ponta dos dedos até o rosto de Alma, sua pele estava gelada e endurecida, porém aquilo não era suficiente para me convencer, então ousei mais, me estiquei na ponta dos pés e envolvi o rosto da menina em minhas mãos e apesar de sentir com mais intensidade a frieza de sua pele, permaneci por não sei quanto tempo olhando para o rosto feito de estrelas e poesia.

Sussurrei seu nome baixinho tentando acordá-la, então os lábios de Alma fizeram um breve movimento e meus dedos encardidos ainda estavam sobre sua pele branca quando as pálpebras de seus olhos se abriram o suficiente para revelar o branco do globo ocular.

Foi muito rápido, não mais do que um ou dois segundos, mas por tempo suficiente para que eu tivesse certeza do que havia visto. Para total desespero de minha mãe e assombro de todos os presentes, gritei como se tivesse acabado de ser picado por um bicho peçonhento. Dei alguns passos para trás apontando o dedo em direção ao caixão e gritando que Alma não estava morta, que ela abrira os olhos. Sem perceber as coroas de flores que dominavam todo o espaço, trombei de costas com uma delas que caiu se espatifando com estrondo. Mesmo depois de perceber que me olhavam com incredulidade, continuei gritando e só parei quando fui arrastado de lá pelas orelhas sob o olhar acusador dos outros visitantes enquanto a pobre mãe de Alma, alertada por meus gritos, corria em direção ao caixão da filha  implorando que a menina abrisse os olhos novamente e se entregando ao desespero.

O lamento da mulher me acompanhou até em casa. Minha mãe, ainda vermelha de vergonha e proferindo todo tipo de promessas de castigos, me mandou direto para o quarto. Eu estava assustado demais com o que eu havia visto para perceber que, por sorte, não tinha levado uma surra. Com a cabeça latejando depois de tanto gritar, me joguei na cama e peguei no sono.


ACORDEI NO MEIO DA MADRUGADA com uma fina camada de suor cobrindo minha pele e um grito enroscado na garganta como um caroço de azeitona. O quarto estava totalmente escuro, exceto pelo feixe de luz leitosa que atravessava a vidraça embaçada. Meus olhos estavam nublados pelo sono e eu não conseguia distinguir os objetos ao meu redor. Continuei deitado, ouvindo o som da chuva no telhado, sem voltar ao sono e um ruído estranho vindo da rua, que ora se afastava, ora se aproximava, me chamou a atenção. Me levantei e fui até a janela, mas não havia nada lá fora e a visão da rua solitária sob a chuva aumentou minha desolação. Fiquei olhando as gotas d'agua que caiam insistentemente e vi que, contra a luz amarelada do poste da esquina, uma pequena nuvem de vapor, como aquelas que se formam à nossa frente quando soltamos o ar pela boca nos dias muito frios, se formava e desaparecia em seguida. Tentando me convencer de que era só minha imaginação atuando novamente, voltei para a cama em um péssimo estado de espírito, fechei os olhos e repeti mentalmente todas as orações que eu conhecia, o que teve o bom efeito de me acalmar e me deu coragem para abrir os olhos outra vez.

Olhei ao redor vi que, bem no meio do meu quarto, a nuvem de vapor aparecia e sumia no compasso de uma respiração, era algo totalmente estranho e, mesmo que parecesse inofensivo, a visão me encheu de um medo irracional. Desejei correr para o quarto dos meus pais, mas aquilo estava entre mim e a porta e eu não tinha coragem para enfrentar o que quer que fosse, então fiz a única coisa que me restava, me enfiei embaixo do cobertor, tremendo.

Não sei dizer se rezei, chorei ou implorei, só sei que o quarto permaneceu em silêncio profundo, então tirei a cabeça para fora das cobertas e descobri que a nuvem de vapor não estava mais lá. Eu estava muito cansado, o sono começava a amortizar os meus sentidos, minhas pálpebras estavam pesadas demais para que eu pudesse lutar e quando me perdi na zona vaga entre a realidade e o sonho, sonhei com Alma em seu caixão, dormindo com seus olhos abertos. Fui trazido de volta por uma forte rajada de vento que me despertou e me deixou totalmente alerta outra vez. Agora meu quarto estava em completa escuridão e absurdamente gelado, não se via nem a luz mortiça da rua e há poucos centímetros do meu rosto, pairando sobre mim, o rosto branco, os cabelos molhados, os cachos desfeitos e os olhos injetados de terror.

Alma flutuava acima de mim como um fantasma feito do mesmo material que as nuvens e dela emanava um frio tão intenso que me petrificou, não consegui gritar, nem me mover, preso naquela sensação que temos quando nosso cérebro acorda e nosso corpo não. Apesar do pânico que eu sentia, vi que Alma parecia assustada e de sua boca escorria um líquido escuro como lama. Ela lutava e se contorcia, era claro que queria dizer algo mas sua voz estava presa em sua garganta e quanto mais ela se agitava e se esforçava retorcendo seu pequeno corpo, mais daquele líquido viscoso escorria se misturando às mexas de seu cabelo e gotejando sobre meu rosto. Enfim, ela fez um último esforço, arregalou os olhos, escancarou a boca como se estivesse gritando e um jorro daquele líquido escuro me atingiu em cheio.


DESPERTEI NA TARDE DO DIA SEGUINTE na cama dos meus pais, com febre e dores por todo o corpo. Minha mãe me disse que eu havia vomitado até perder os sentidos e que eu tinha que descansar. Nunca contei a ninguém sobre o pesadelo que havia me assombrado na noite anterior, eu temia que achassem que eu estava louco ou que não tinha sido suficientemente homem para ver uma pessoa morta sem me assustar e foi um grande alívio perceber que, quando me recuperei, ninguém se lembrava mais do incidente na casa de Alma. 

Os dias passaram e ao final de uma semana já estava me sentindo bem o suficiente para sair e brincar na rua com as outras crianças apesar do frio que mordiscava nossa pele. O fantasma de Alma não apareceu mais em meus sonhos, mas passei a evitar o casarão. Os adultos não falavam sobre a menina e sua família, principalmente depois que outras crianças começaram a sucumbir ao inverno. Então a primavera chegou e a tristeza daqueles dias frios ficou para trás. Em algum momento, os incidentes daquele dia se perderam em minha memória e Alma se tornou uma vaga lembrança de minha infância.

Após alguns anos, deixei a Alameda Santos para trás. Me mudei para o interior para estudar, viajei, me casei, e só depois de bastante tempo, quando eu já tinha filhos com a mesma idade que eu tinha na época em que Alma morreu, é que voltei à minha antiga vizinhança. Foi um reencontro alegre com alguns dos velhos conhecidos e pude rever os lugares de tantas aventuras. Minha mãe ainda vivia em nossa velha casa que agora estava à venda e como ela tinha aceitado uma das ofertas, saímos para uma caminhada de despedida pelos arredores.

Sem que eu me desse conta, chegamos ao antigo casarão. O lugar estava deserto, e minha mãe leu em meus olhos a curiosidade. Depois de me dar um tempo para observar o que restava da construção, ela colheu uma pequena flor branca que crescia em meio à vegetação que tinha tomado conta das grades do jardim e me contou que há alguns anos o pai de Alma adoeceu e passou longos meses na cama. Nesse tempo, ele se dedicou a projetar um mausoléu para abrigar sua família e quando ele faleceu, sua esposa, obediente à sua última vontade, providenciou a construção do jazigo exatamente como ele queria.

No dia em que os restos mortais de Alma seriam exumados para serem transferidos para o mausoléu, sua mãe estava ao lado do túmulo. Quando a tampa do foi levantada, todos viram o pequeno esqueleto com os ossos dos joelhos erguidos, a cruz do terço de madrepérolas presa a uma de suas mãos e fincada na tampa do caixão que havia sido arranhada por dentro como se ela tivesse tentado cavar para cima. Um silêncio pesado tomou conta dos presentes quando que compreenderam o que aquilo significava. A mulher deixou o lugar sem dizer qualquer palavra, voltou para sua casa e se pendurou numa corda presa ao corrimão da escadaria do casarão.

Como nenhum parente apareceu para reclamar a propriedade como herança, o asarão continua lá, abandonado, decadente e com fama de mal-assombrado.

Havia mais um detalhe naquela história que minha mãe guardou consigo e só me contou muito tempos depois, talvez para não me assustar. Na tampa do caixão de Alma, pelo lado de dentro, a menina havia rabiscado uma única palavra: meu nome.

Desde que eu soube daquilo, carrego comigo a culpa e a vergonha por ter sido covarde e não ter contado a todos que, naquela noite chuvosa, Alma tinha vindo me pedir socorro.






 
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 10/03/2021
Reeditado em 14/03/2021
Código do texto: T7203350
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.