O DESTINO DE LORELAI
Quando Lorelai recebeu o convite para trabalhar na prefeitura daquela cidadezinha, mal pôde acreditar, afinal sempre ouvira falar sobre as dificuldades de conquistar a primeira oportunidade ao terminar a difícil jornada chamada formação universitária.
E, para ela, essa conquista fora ainda mais árdua, pois, órfã e criada numa instituição para cuidado e abrigo de menores abandonados, as dificuldades da vida sempre lhe pareceram muito mais cruéis.
No entanto, agora, aos vinte e cinco anos, o diploma de administração pública lhe conferia alguma propriedade e obter uma chance na briga de foices que era o mercado de trabalho correspondia a uma verdadeira benção. Pouco importava que o convite correspondesse a um contrato temporário, afinal, no serviço público apenas um concurso poderia lhe conferir a almejada estabilidade. Mas, o tempo se encarregaria disso, a vida lhe ensinara a ser paciente e determinada.
A motocicleta cento e vinte e cinco cilindradas que pilotava há dias, bem adquirido a duras penas e longas prestações, parecia tão ou mais cansada do que ela própria. A necessidade de vender os poucos bens que possuía não a incomodava, assim que se estabelecesse poderia comprar outros na nova vida que pretendia montar. Viajava apenas com algumas roupas na mochila.
Faltava pouco para chegar e, embora a fadiga a dominasse, ela não pretendia parar para pernoitar. Torceu ainda mais o punho para que em poucas horas pudesse adentrar pelo portal da cidade.
Já no quarto da pousada que havia reservado, olhava pela janela e apreciava o mais belo pôr do sol que jamais vira. Lorelai sentia o seu coração se aquecer e pressentia que novos e grandes acontecimentos estavam por vir. Após um banho quente e um lanche, fora abraçada por um profundo e pesado sono. Uma sorte inconsciente que a poupara do espetáculo mórbido que estava prestes a acontecer.
A noite já se mostrava alta e o céu tinha sua escuridão maculada pela presença da lua quase em sua totalidade plena. E, do alto, o satélite testemunhava o estranho fenômeno que tomava corpo no cemitério municipal, local não muito distante da pousada.
A terra enegrecida de uma cova marcada por uma pedra de mármore, cuja identificação era ocultada pelo tempo e, sobretudo, pelos traços de uma enorme letra “EME” entalhada em sua superfície, começava a se revolver. Logo, uma densa névoa foi expelida pelo solo e se espalhou livre ao sabor do vento. A nuvem de particulados viajava como se buscasse pouso em algum lugar específico.
Era uma vontade, um desígnio comandado por uma força maior e antinatural. Após percorrer algumas centenas de metros, a manifestação parou e pairou sobre um amontoado de entulhos largados num terreno baldio. Em seguida, um tremor no chão precipitou-se, como se acionado por um comando. O que aconteceu a seguir faria qualquer ser vivente duvidar da própria sanidade.
As entranhas da terra se abriram e expurgaram a carcaça em avançado estado de decomposição de um animal quadrúpede. O amontoado de ossos, couro e carne pútrida foi envolvido pela névoa. De subido, a cabeça do bicho rolou pelo terreno, arrancada pela força improvável da manifestação sobrenatural.
A fumaça acinzentada adentrou pelo vão escancarado do pescoço da criatura morta. E, em poucos instantes, labaredas avermelhadas eram expelidas pelo mesmo espaço, em comunhão aos movimentos do bicho que voltava à vida.
Um grito estridente e feminino ecoava pela noite acompanhado de um relinchar anormal. O som era ininteligível, mas se alguém fosse capaz de decifrá-lo ficaria horrorizado com o teor de vingança e morte impresso naquelas notas.
O demônio em chamas galopava livre mais uma vez em busca do seu destino. Nas lembranças do seu espírito amaldiçoado, os fragmentos dos acontecimentos de pouco mais de um século lhe açoitavam firme como pelas mãos do próprio cão.
Em sua insanidade, as memórias do terrível pecado que cometera: amar alguém que lhe era proibido.
O jovem clérigo que lhe correspondera o amor fora apedrejado até a morte. Quanto a ela, fora condenada à mesma sentença, mas conseguira fugir para dar a luz longe daquele lugar. No entanto, a fuga não a poupou de uma sina ainda pior do que a morte. E, uma vez abraçada pela danação, voltou para o lugar de seu martírio em busca de vingança.
A filha, abandonada num abrigo, ela nunca mais voltaria a ver. Na cidade que a queria morta, ela assombraria a cada ciclo da lua cheia. Transformada em um exemplar do inferno, ela caçava e matava durante o percurso nas cercanias do povoado.
O vilarejo por muito tempo procurou sem sucesso o esconderijo daquela que chamavam de bruxa em forma de fera. Mas a própria mulher sabia que não poderia se manter oculta para sempre e, uma vez descoberta, já havia aceitado o próprio destino.
Com a proteção que o astro-rei confere aos viventes, a população amarrou a condenada, amordaçando-a com arreios e cravando as lâminas de uma pesada sela em seu tronco. A mulher foi chicoteada e arrastada pelas ruas de pedra até ser morta pelas chamas de uma fogueira.
Os restos do seu corpo foram enterrados numa cova afastada do cemitério. A terra sobre o túmulo recebeu durante os anos seguintes uma espessa camada de sal grosso semanalmente.
Mas o próprio tempo tratou de fazer com que o povo da cidade se esquecesse das histórias e dos cuidados, de modo que no último ano, quando o vento quente do verão soprou sobre a terra amaldiçoada de um modo diferente, o demônio mais uma vez escapou. Mas agora, sem um corpo próprio para se transformar, passou a fazer os animais de invólucros para sua essência.
Nos últimos meses, os animais eram possuídos e mortos, enquanto a fera espalhava o caos pela cidadezinha. As autoridades decidiram matar todas as mulas e éguas da região, mas de nada adiantou. O espírito da mulher era capaz de possuir até os mortos. Eles, os homens da cidade, então perceberam que o inferno sempre daria um jeito de puni-los.
A fera galopava com determinação pelas ruas de pedra. Cada habitante se escondia da melhor maneira que podia, mas seus ouvidos não eram poupados do som dos cascos, tampouco do relinchar e dos gritos que ecoavam pela madrugada. O cheiro de carne queimada era percebido por todos. Uma cortina de fogo se espalhava diante dos olhos daqueles que ousavam espiar por alguma fresta.
Um pequeno grupo tentou domar a fera. O primeiro teve o corpo incinerado pelo sopro da vão decapitado da criatura. O segundo teve o crânio esmagado pelos cascos em fúria. Mas, pior destino teve o último, aquele que tentou enlaçar a besta. O infeliz, atrelado por uma força da qual era incapaz de se desvencilhar, fora arrastado pelo solo irregular. Para ele, a morte viera acompanhada de sofrimento e indescritível dor.
O prefeito, o delegado e outros membros da fina flor da cidade acharam que teriam mais tempo. Mas a ação da besta naquela noite incomum, enquanto a lua ainda não estava totalmente cheia no céu, dava indícios de que a fera sabia que tramavam contra ela.
Então, sem quaisquer cerimônias, os homens irromperam pelas dependências da pousada e arrancaram a jovem Lorelai do seu sono. A garota, aos gritos e sem nada entender, era arrastada para a praça pública, sob a conivência de quem assistia a cena.
Lorelai não sabia, mas era a última descendente da mulher amaldiçoada por desposar o antigo padre da cidade. O povo concordava que de acordo com as lendas, encerrando a descendência da mula diante de sua presença, a assombração teria fim.
Assim, a menina tornara-se uma arma nas mãos daquelas pessoas, as mesmas que a atraíram com a promessa de emprego. Afinal, não fora tão difícil reconstruir os passos de gestações mal planejadas, infortúnios e abandonos até ela. Seus olhos marejados ainda foram capazes de perceber, em meio à multidão, o homem que a recrutara ainda na faculdade.
Sob o jugo dos homens da cidade, Lorelai, ajoelhada, testemunhou a aproximação de algo que ela jamais julgou ser capaz de existir. A fera caminhava lentamente em sua direção. Ambas sabiam naquele momento que uma ligação as aproximava. A criatura sentia suas ações serem dominadas por uma força que ela desconhecia. Sua carne, seu sangue e sua herança estavam sob o domínio dos mesmos inimigos que a haviam assassinado décadas antes, e isso a tornava impotente.
Com um homem segurando cada um dos seus braços, a menina era postada para a execução. Lorelai seria morta pela arma do delegado, mas a vítima mais importante daquela noite seria o demônio.
O homem da lei se preparou para atirar, mas no exato instante do disparo, um sujeito de trajes em negro se jogou sobre ele. O projétil liberado pela ação do gatilho envergado atingiu o peito do rapaz que projetara o próprio corpo para defender a forasteira.
O jovem sacristão, mortalmente ferido, não chegou a testemunhar os resultados de sua ação intempestiva. E ninguém nunca soube afirmar com certeza os motivos que o fizeram se sacrificar por uma desconhecida, se fora o simples desígnio cristão ou uma imediata e explosiva paixão. O fato era que poucos do que ali estavam sobreviveram para debater, pois, a confusão fez com que Lorelai se soltasse de seus agressores, e com ela o magnetismo que mantinha a fera paralisada.
Uma vez em liberdade, a mula pôs um fim em cada um que ousou ficar em seu caminho. O prefeito, o delegado e demais autoridades foram abatidos com uma satisfação ainda maior.
No fim, os que conseguiram se salvar fugindo da praça e se abrigando em seus lares, torciam para que estes não fossem incendiados pela fúria da criatura do inferno.
No local de morte e sofrimento apenas Lorelai e a fera permaneciam. A menina não sentia medo e apenas olhava para sua ascendente. Então, uma voz vinda das entranhas incandescentes da besta proferiu palavras que durante muito tempo reverberaram na mente da garota.
- Menina, você carrega a minha herança de dor e maldição. Eu poderia acabar com a sua vida agora e me livrar de vez dessa danação que aprisiona meu espírito. Mas, ao invés disso, lhe darei uma escolha, pois você carrega no ventre mais geração do nosso sangue.
A informação fora um choque para Lorelai, pois ela não fazia a menor ideia de que carregava uma vida em seu ventre. Rompera com o antigo namorado quando decidira se mudar para a cidadezinha.
- Façamos um pacto, menina – continuou a fera – eu a deixo ir e você fica livre para dar a luz. Mas, depois que ela nascer faça como todas antes de você, entregue-a para a adoção. Nós não fomos dotadas com o privilégio de constituir uma família. Eu carregarei o fardo da maldição.
Assim, Lorelai retornou para a antiga vida. Meses depois, sua filha vinha ao mundo, mas, ela não conseguiu cumprir o acordo feito com a mula, decidindo sumir com a pequena para o lugar mais longe que fosse capaz.
O tempo passou e Lorelai julgou que a distância e o esquecimento alicerçaram a segurança de ambas. A menina, agora com dezoito anos, escapara numa noite para se encontrar com o namorado, um seminarista, sem o conhecimento da mãe. A atitude intempestiva culminaria em mais uma descendência da mula.
E, ainda naquela noite, com o seu legado garantido por mais uma geração, a mulher-demônio faria uma visita a Lorelai. A dívida seria cobrada com uma cabeça no chão e com a passagem da maldição.