Penitência difícil
Penitência difícil (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Anos setenta. Momentos políticos difíceis para todos. Ditadura militar, economia variando para melhor ou para pior. A vida segue corriqueiramente. Surgem os grupos de jovens e movimentos paroquiais mais abertos. Muitos jovens poderiam participar, mas a cada momento novas ideias, novos rumos e novos sonhos.
Três adolescentes que cursavam a mesma série. Uma longa disputa para as melhores notas. Uma se destacava na Língua Portuguesa, belos poemas, ótimas redações e concordâncias nominal e verbal acima da média, uma verdadeira inteligência. A outra era mais voltada para a área de exatas. Resolvia quaisquer equações e não tinha para outra na geometria. Enfim, a terceira, uma jovem muito inteligente, gostava mais da área de biológica e tinha o sonho em ser enfermeira.
Com o incentivo das músicas da época, rock, músicas dançantes, elas compartilhavam entre as residências, a escola, o passeio na pracinha da cidade, nas missas dominicais. Em uma dessas missas, foram convidadas para um grupo de jovens pelo pároco local. Muito felizes, aceitaram o convite, pois as reuniões eram todos os sábados, após a missa das dezenove horas, no salão paroquial.
No primeiro dia de reunião em que elas estavam participando, foram bem recebidas e dia após dia iam-se familiarizando com toda a estrutura do grupo. Aos poucos, elas já estavam dirigindo reuniões, prestando homenagens nas missas, fazendo leituras, participando de encontros de jovens nas cidades circunvizinhas. Assim, eram as rotinas das três adolescentes.
Passaram-se alguns meses, o pároco local foi transferido para outra cidade. Recém empossado, veio um novo padre, que se dedicava mais à juventude. Todas as missas eram abrilhantadas por corais e foram criados sete corais jovens na cidade. A cada dia, um coral cantava nas missas e estavam todos presentes nas festividades. Novas doutrinas foram implantadas, novos estatutos, novas normas, enfim, o mundo jovem evoluía para melhor.
Várias reuniões foram feitas e alguém sugeriu uma atividade nova para cada membro. Alguns se inscreviam para visitar a vila vicentina, outros, para visitarem enfermos nos hospitais, alguns, para fazerem teatro para os enfermos, enfim, cada membro ou um grupo de membros tinha uma atividade. Por coincidência, as três adolescentes foram escolhidas para visitarem o cemitério local. Elas é que iam marcar o dia da semana para cumprirem a obrigação. Decidiram, portanto, que o melhor dia para elas seria na segunda-feira, por volta das quatro horas da tarde. Já com os deveres prontos e o início de semana, a segunda-feira era ideal. Assim o fizeram.
Toda segunda-feira, lá estavam elas. Levavam velas, terços, livros com orações. Com frio, com chuva, com vento, com calor, impreterivelmente estavam elas. O coveiro já estava acostumado com as visitas. Quando tinha algum velório ou enterro, elas iam e ficavam paradas. Participavam da missa e até ajudava nas celebrações finais.
Em uma segunda-feira, duas delas não puderam ir, pois uma foi viajar com a família e a outra estava doente, com um forte resfriado que mal podia sair da cama. Restou, por fim, a Márcia. Era muito inteligente, muito meiga, mas tinha um certo receio de ficar sozinha no cemitério. Ela ia somente em companhia das duas amigas, mas, em seu íntimo, ela não estava satisfeita com a missão. Tinha muito medo. Ficava impressionada com o cemitério. Em algumas oportunidades, ela dizia ao vigário para não ir mais, tinha medo e ficava transtornada com o movimento de mortos. Chegava a sonhar com velórios, com sepultamentos. O vigário, porém, a orientava, pois, para ele, era uma missão bem delicada. A jovem, bonita e inteligente, tinha traumas por fatos além da vida. A missão dele era tentar livrar a jovem daqueles traumas, daquelas frustações.
Aquela segunda-feira era meados do mês de agosto. Ventava muito. O vento direcionava por sobre as árvores de pinheiros plantadas ao redor do cemitério. O barulho era semelhante ao som dos filmes de terror. Para quem tivesse medo, era o cenário ideal para tudo e também para correr e estremecer de medo.
Não tendo a companhia das duas amigas, Marcia se vestiu como pode. Com um vestido branco, sandálias da época, cabelos pretos e soltos, pulseiras, brincos, batom nos lábios, ela se dirigiu para o cemitério. Atrasou um pouco, pois às três horas da tarde foi o sepultamento de um senhor. O falecido era um aposentado federal. Viúvo, completamente só, vivia em uma casa antiga, fruto da herança dos pais. Solteirão desde a época da viuvez, era viciado em jogos de azar. Era também mágico e ateu. Dizia que a mágica era tudo na vida. Ele mesmo, quando morresse, iria fazer mágica e voltar para vida expressivamente nos jogos. Não reconheceria a morte e sim a mágica da vida.
Ainda estavam presentes alguns membros da sociedade: Prefeito, alguns vereadores, médico, dentista, advogados, companheiros dos jogos e azar e dois professores, os quais eram afilhados do falecido.
Meigamente, Márcia aproximou-se do portão do cemitério. Com muita educação, ela cumprimentou os que ali estavam. Ouviu o comentário dos dois professores que diziam que ela era muito inteligente. Eles afirmavam que ela seria uma grande educadora, assim como eles o são.
Após adentrar-se ao portão, viu que o coveiro ainda trabalhava no fechamento da sepultura do falecido. Ela o cumprimentou e disse que havia atrasado. Hoje, dizia ela, estava sozinha, pois as amigas não puderam vir. Ouviu a resposta do coveiro e logo foi a outros túmulos para realizar o objetivo da missão. Em três túmulos, acendia uma vela, recitava uma oração do livro. Ficava em um minuto em silêncio e assim prosseguia para mais outros quatro túmulos, pois elas tinham que rezar em sete túmulos.
O tempo passou. A tarde caminhava bem. Marta lembrou que tinha que fazer uma redação para entregar na aula seguinte, mas a professora disse que ela poderia entregar assim que saísse do cemitério. Aproveitando a oportunidade, já que estava com o caderno e a caneta em mãos, ela não se conteve. Sentou-se próximo ao túmulo do falecido, recém enterrado, e pôs-se a escrever o texto. A ideia da redação era como os vícios poderiam agir na vida do cidadão. Escreveu muito e até citou o exemplo do falecido. Não poupou tempo em criticar a mágica, os charlatões, enfim, um lindo texto com muitas ressalvas à vida torta de certas pessoas.
O tempo foi passando. As horas viravam rápidas e já entardecia. A redação já somava quase cinco folhas de caderno. As ideias eram tantas, que a jovem esqueceu do objetivo da missão no cemitério. O vento soprava mais forte e quando ela acabou de escrever, foi logo lendo. Fazia as devidas correções e sempre precisa consertar algo. Rabiscava algumas palavras, passava a lindo em outras folhas. Assim por adiante.
Já cansada de ficar em uma posição só, resolveu ir para outro túmulo mais abaixo do túmulo do falecido. O vento soprava mais forte ainda. Olhou para o lado e as velas tinham apagado. Não deu atenção e pensava que já havia terminado a missão. O momento agora era finalizar a redação e entregar para a professora. Pensou que os mortos que estavam ali já estavam cansados da presença dela e pensou: Não estou nem aí para vocês. Eu quero acabar com redação e vou embora. Devo tirar nota máxima, pois o texto está muito bom. A minha redação será publicada no jornal literário. Ficarei feliz e de muito orgulho de minha capacidade.
O vento soprou forte e quando a menina olhou, vindo em sua direção, uma coroa de flores, que saia do túmulo do recém falecido, indo direto ao encontro de seu pescoço. A jovem começou a gritar e saiu correndo em direção ao portão. Estava totalmente apavorada. Foi amparada pelo coveiro que tirou a coroa do corpo dela. Perdeu as sandálias, as folhas com o texto. Rapidamente chegou à casa e contou para a mãe o que havia acontecido.
Na próxima reunião do grupo, foi logo falando que não mais iria visitar os mortos no cemitério. Pediu para fazer outra atividade e até hoje não mais entra em cemitério algum.