Brincadeira cruel
A garota premia o punho cerrado no tampo do balcão e com movimentos rápidos saía esmagando as formigas que estavam em grande quantidade em cima do mogno. Os olhos graúdos e ágeis e a língua entre os lábios denunciavam o prazer que ela sentia com a cruel distração.
Possivelmente alheia ao que aquilo podia representar?
A mãe, que estava focada nos preparativos do almoço, ao perceber o que fazia a filha, limpou as mãos no pano de prato que ia na cintura e tratou de dizer:
— Filha não faça isso, as formigas são seres vivos iguais a nós.
Deu uma batidinha na cabeça da criança e voltou as atenções para a panela de pressão. Com uma canção nos lábios, cantarolava alegremente.
A menina inclinou a cabeça para a mãe e com uma expressão que era uma mistura de ingenuidade e confusão disse docemente:
— Mas elas são tão pequeninas.
Levantou o punho cerrado analisando-o. Havia corpos de formigas mortas incrustados nele.
Depois completou: — E são tantas, qual é o problema mamãe?
A mãe virou-se novamente e com as duas mãos prostradas na cintura observou a garotinha por alguns segundos. Abaixou-se inclinando o corpo na direção da filha. E com uma boa dose de condescendência, muitas vezes comum ao trato com os menores, ela disse:
—Filha, Deus ama e cuida com igual importância de toda a sua criação. Agora, trate de ir brincar lá fora até que o almoço fique pronto.
A criança, que sorveu com bastante atenção e seriedade tudo o que a mãe lhe dissera, de repente se levantou e bradou:
—Entendi mamãe. Vou brincar lá fora com o Ben então.
A mãe deu um tapinha no bumbum da menina, que disparou rumo ao quintal.
— Tudo bem filhinha. Só não deixe ele atravessar as frestas do portão e rumar à calçada. É o quarto gato que você ganha em seis meses. Não quer que esse também seja atropelado né?
A menina, já à altura da porta de saída, se virou e com um sorriso malicioso falou: — pode deixar mamãe.
Mas a mãe estava de costas, concentrada nos preparativos da refeição e nada viu.