Ketlyn e Hector - Clts 14
Era aniversário da filha e como nos aniversários anteriores o fato da menina ser o centro das atenções a incomodava profundamente, principalmente porque o motivo que a levou a ter a criança foi a vontade de atrair a atenção para si. Sempre foi assim.Durante a infância foi a menina mais popular da escola. As outras meninas a olhavam com admiração, elas queriam ser ela e faziam questão de andar em sua companhia. Em casa era a filha mimada e seus pais, empregados e o irmão pareciam orbitar ao seu redor, fazendo todas as suas vontades.
Quando chegou o momento de se casar arrumou um marido que a mimava com presentes e carinhos. Isso era suficiente, mas depois de um tempo, ao ver as amigas de seu círculo social tendo filhos, passou a querer algo mais. Ela desejava a atenção que um bebê geraria. A casa cheia de gente para ver ela que seria a novidade do momento. Seu coração cheio de si não tinha espaço para amar outro ser. Então a criança para ela servia apenas como um meio de chegar ao fim que desejava.
Deixou que os sogros americanos escolhessem o nome da bebê. Eles escolheram o nome Ketlyn. A atitude soou aos outros como uma atitude bonita e pareceu alegrar seu marido, mas na verdade ela fez isso porque realmente não tinha interesse na escolha do nome. Tinha criado um distanciamento sutil e proposital entre ela e a menina. Distanciamento esse que aparentemente apenas a sogra notava.
-Vamos cantar os parabéns!- disse a feliz avó de Ketlyn acendendo as doze velinhas do bolo. A fala dela a tirou de seus pensamentos e a fez se aproximar da filha com um sorriso no rosto. Queria aparecer bonita na foto.
Enquanto cantava parabéns tentava se lembrar em que momento a indiferença que sentia pela filha começou a virar outra coisa. Não lembra o momento exato, mas lembra que iniciou logo nos primeiros meses de vida da menina. Não gostava de como Ketlyn, ainda bebê, se tornava o centro das atenções rapidamente. Os sogros se mudaram para uma fazenda no Brasil somente para ficarem mais perto da neta e o marido não cansava de ficar perto da bebê.
Mas o que mais incomodava nessa época eram os comentários dos sogros e dos amigos deles. Eles falavam que Ketlyn era o futuro da rica empresa que eles fundaram. Ela era a única neta e iriam a treinar para um dia comandar a empresa como o pai fazia. Isso colocava aquela bebê de colo em um grau de importância acima dela.
A soma de todas essas coisas a tinha levado a uma atitude que quase impede Ketlyn de fazer um ano que fosse. Lembra que enquanto o marido dormia, ela foi silenciosamente ao quarto da bebê. Cobriu o rostinho da menina com um cobertor e observou o movimento dos minúsculos pés da criança que indicavam que ela tinha acordado em busca de ar. Movimentos que ficaram mais rápidos à medida que ela começava a se sufocar devido ao pano cobrindo seu nariz e boca. Mudando de ideia ela tirou o cobertor e a menina pode voltar a respirar.
Mudou de ideia, pois seria um desperdício. Se livrar dela tão cedo faria com que tudo que ela passou durante o parto e os quilos que ganhou tivessem sido em vão. Ainda precisava dela entre outros motivos para ser assunto nas colunas sociais. Apesar de detestar os aniversários da filha sabia que eram uma oportunidade para sair nas revistas e sites que sempre cobrem festas de filhos de rico. Principalmente se desse uma festa maior que das amigas. Além dos aniversários sabia que teriam vários momentos da infância da menina que serviriam para que ela passasse a imagem de boa mãe e com isso seria elogiada entre as amigas nas rodas de conversa sobre os filhos.
Mas isso não significava que ela havia mudado de ideia. Apenas deixou passar mais uns anos. Ainda planejava se livrar da menina antes que ela tivesse idade para assumir a empresa ou no momento em que sua paciência com ela se esgotasse. E assim o tempo foi passando e Ketlyn comemorava doze anos.
Depois dos parabéns para alívio dela tudo pareceu ocorrer mais rápido. Logo vieram o momento do primeiro pedaço de bolo, que não foi para ela, e o momento de abrir os presentes. Antes que percebesse o almoço de aniversário ia ficando para trás e os convidados já começavam a ir embora, deixando somente a família na imensa fazenda dos avós de Ketlyn.
Não via a hora de voltar para sua casa na cidade, mas sabia que o marido e Ketlyn queriam ficar mais um pouco. No fim acabou concordando, entre outros motivos porque em uma fazenda como aquela, cheia de árvores altas, animais e um riacho, algo poderia ocorrer com Ketlyn.
Não tinha feito mais nada contra a menina desde a noite em que tentou a asfixiar, mas ela não podia evitar de querer que algo ocorresse com Ketlyn. Um acidente inesperado em que ninguém poderia a culpar e de preferência em um lugar com muita gente.
Às vezes quando Ketlyn andava de bicicleta ou subia em alguma árvore imaginava a menina caindo. Quase podia visualizar a cena: Ketlyn caindo e o frágil pescocinho da menina se quebrando como um galho seco e uma multidão de curiosos se formando ao redor. Ela queria estar por perto para fazer o papel da mãe devastada que seria confortada pela multidão e se tornaria por alguns momentos o centro das atenções.
Dois dias após o aniversário algo parecido com o que ela imaginava quase ocorreu, mas sem as consequências graves.
Na fazenda dos sogros os empregados eram tratados como parte da família, então era normal Ketlyn brincar com os filhos dos empregados. O que eles mais faziam era subir em árvores.
No meio de uma dessas brincadeiras a menina acabou caindo de uma dessas árvores , mas o chão de areia aconteceu a queda e machucou somente o joelho. Ela olhava pela janela e viu o exato momento em que Ketlyn caia e sem que notasse um sorriso se formou em seus lábios.
O sorriso ainda estava formado em seus lábios quando seu olhar se cruzou com o de Hector. O menino era filho de criação dos avós de Ketlyn e era muito próximo da menina. Ele que havia recebido o primeiro pedaço de bolo e tinha logo se apressado para ajudar a amiga a se levantar. Os dois tinham praticamente a mesma idade.
Tinha certeza que Hector tinha visto o sorriso, mas não se importou. Era indiferente ao garoto que seus sogros tinham achado sozinho perto da fazenda. Eles podiam ter o adotado, ter colocado nele sobrenome chique e roupas bonitas, porém para ela nada disso tornava Hector realmente parte da família. Fechou a janela com a certeza que o garoto continuava a encarando.
Mais tarde no jantar Ketlyn parecia totalmente recuperada da queda e conversava com Hector entre uma garfada e outra. O pai e os avós da garota conversavam alegremente com um amigo fazendeiro que contava uma história bizarra.
-Eu vi com meus próprios olhos. -o fazendeiro dizia - O coelho tava durinho e sem nenhuma gota de sangue. O mais estranho é que não tinha sangue seco ao redor e nem marca de mordida. A única coisa que tinha era um único furo perto do coração.
-Tenho certeza que ele não fez por mal e não tinha intenção de matar o coelho. - disse Ketlyn os surpreendendo. Eles pensavam que a menina e Hector nem estavam prestando atenção. - Ele tem pouco sangue e as vezes precisa pegar um pouco dos animais.
-Pare de falar bobagens, Ketlyn.- disse olhando para a filha. Acabou falando mais alto do que gostaria e as palavras saíram como gritos. Logo veio a vergonha de ter perdido o controle. Não sabia nem como contornar a situação e por isso achou mais prudente se desculpar e sair da mesa de jantar. Assim tentava preservar o que restava da sua imagem.
Enquanto saia ficou um silêncio constrangedor que o fazendeiro tentou ocupar dando continuidade a conversa:
-Do jeito que fala parece até que ele é um velho conhecido seu, mocinha. - disse o fazendeiro olhando para Ketlyn e aparentemente concordando com ela - Mas devo dizer que você tem um pouco de razão. Tem uma outra coisa estranha nessa história que me esqueci de contar. O corpo do coelho estava com algumas flores próximas e era como se tivesse sido colocado com cuidado no chão. Foi como se a criatura, fosse qual fosse, lamentasse o ocorrido.
A medida que ia para o quarto a conversa ia ficando mais longe e ela nem ouviu o final. Nem fazia questão, pois a única coisa que sentia naquele momento era vergonha que logo virou raiva. Esse sentimento aumentou, pois depois do ocorrido seu marido teve uma longa conversa com ela. Ele achava que ela devia ter mais paciência com a filha. Não gostou de como ela virou a vilã daquela situação. Aquilo foi como a gota d'água que esgotou a paciência que ainda tinha com a menina. Se Ketlyn queria tanto ver um monstro ela veria. Mas iria pensar com muita calma antes de agir. Talvez essa história que foi contada no jantar no final das contas servisse para alguma coisa.
No dia seguinte acordou mais tarde com a sensação que não tinha dormido nada. Ao descer as escadas notou uma movimentação diferente. Notou que Hector estava deitado no sofá aparentemente recebendo uma transfusão de sangue. Um médico acompanhava tudo de perto. Ao notar seu olhar de curiosidade seu marido disse:
-Hector tem que fazer transfusão de sangue de tempos e tempos. Ele fica mais confortável se for feita em casa.
Ela não sabia disso e realmente não se importava. Na história dela ela era a protagonista e o resto apenas figurantes.
Falou rapidamente com todos e foi fazer uma sondagem pela região para ver se mais gente acreditava naquelas histórias sobre um ser que sugava sangue dos animais. Notou sem surpresa que muita gente tinha alguma história para contar sobre o assunto. Sabia que a maioria devia ser falsa, mas o importante foi constatar que muita gente acreditava naquelas histórias.
Mesmo notando isso no fim começou a ter suas dúvidas se todas essas pessoas acreditariam que a tal criatura estava por trás do que iria ocorrer com Ketlyn, pois pelo que conseguiu averiguar apenas o coelho tinha sido morto. Os outros animais tinham aparecido com marcas estranhas, todavia tinham sobrevivido e os eventos parecem terem parado depois de um tempo. Além disso, tinha quase certeza que o pai e os avós de Ketlyn iriam querer investigar até os mínimos detalhes. Tinha que ser o crime perfeito ou pelo menos um daqueles que aparecem em documentário como casos sem explicação. Pensava em tudo isso enquanto tomava um chá na cozinha.
Era de madrugada e a casa estava silenciosa. Planejar o crime perfeito cansava e ela não conseguia dormir. Sua cabeça doía e a raiva só aumentava. Dentro de sua mente uma parte dela pedia para simplificar as coisas. Usar o mesmo método que ela tentou usar doze anos atrás. Aproveitar que estavam todos dormindo. Suspirou e tomou sua decisão ao se levantar.
Andou silenciosamente até o quarto da filha. Com cuidado para que ninguém a ouvisse. Estranhou a porta está aberta, mas entrou mesmo assim. Ficou um tempo olhando Ketlyn que dormia profundamente antes de colocar o travesseiro no rosto dela. A onda de adrenalina que veio foi tão grande que naquele momento não se importou de ser pega. A menina acordou e tentava tirar o travesseiro do rosto e começou a chutar. Isso a fazia pressionar o travesseiro ainda com mais força.
Mal notou alguém com passos quase imperceptíveis se aproximando por trás.Foi quando de repente sentiu uma dor aguda no pescoço e a vista começou a ficar escura. Era como se um único espinho afiado tivesse entrado no seu pescoço e sugava seu sangue rapidamente. Sua mão foi perdendo a força e soltando o travesseiro. Ketlyn pode voltar a respirar.
-Tinha a impressão que a senhora ia tentar machucar a Ketlyn. O jeito como sorriu naquele dia. - disse uma voz conhecida. -Por isso estava de olho.
Se mexia enquanto tentava se desvincilha daquilo que parecia está grudado em seu pescoço. Quando finalmente conseguiu se sentia meio zonza. Ao se virar viu Hector na sua frente. Do dedo polegar dele saia uma estrutura retrátil que se assemelhava a um espinho ou canudinho bem fino e afiado. Antes de desmaiar ainda viu o dedo do garoto voltar ao normal e ele ir socorrer Ketlyn que sentada na cama puxava o ar. Ao longe se ouvia o barulho das pessoas da casa acordando. Apagou.
Quando acordou a polícia esperava por ela. Levou a mão ao pescoço e notou que não havia sangue seco e nem ferida, apenas uma marca miúda. Não conseguia formular as frases para explicar o ocorrido e duvidava que alguém acreditaria.
Mesmo ainda meio zonza , enquanto era presa a principal coisa que pensava era que estava sendo o centro das atenções e com toda certeza seria motivo de conversa por muitas semanas ou até meses.
Temas: Folclore brasileiro e um pouco de sobrevivência