APENAS A LUA COMO TESTEMUNHA – CLTS 14

APENAS A LUA COMO TESTEMUNHA – CLTS 14

INJUSTIÇA

A sina de Roberto Bruno Bento era ingrata e assustadora. Roberto era um fugitivo procurado por um crime que não cometeu. Era acusado do assassinato se sua esposa Elaine. Por mais que jurasse inocência e jamais tenha entrado em contradição em seus depoimentos, ninguém lhe deu crédito. Nem os amigos, nem os parentes e muito menos as autoridades policiais. Um amigo mais chegado chegou ao ponto de dizer-lhe: “_ Confesse, homem! Termine essa tortura de uma vez por todas. Você pode legar insanidade... Diante do ocorrido, é sua melhor defesa...”

“Diante do ocorrido”... Roberto alegou que, na verdade, havia tentado defender a esposa do ataque feroz de um louco fantasiado. Que tinha corrido em socorro da esposa assim que ouviu seu grito lancinante. Que tinha se engalfinhado em luta renhida com o louco assassino de olhos brilhantes como brasas. Tão brilhantes como a lua cheia através da janela quebrada.

Dizer que o estranho tinha mãos como patas com garras afiadas também não ajudou na sua defesa. A análise do sangue que encharcava suas roupas mostrou que só havia seu próprio sangue e o da esposa. Entretanto ninguém conseguiu entender como foram produzidos os ferimentos da mulher. A caixa torácica aberta à força não poderia ser obra de um homem franzino como Roberto. Na verdade nenhum homem, por mais forte que fosse, poderia causar tamanho estrago em um corpo humano apenas com as mãos.

Causava um certo espanto, o fato de ele também possuir ferimentos em seu peito. Quatro lanhos quase paralelos e não muito profundos, mas o suficiente para causar o grande sangramento experimentado por ele.

Perguntado sobre como conseguiu sair vivo do confronto com um suposto agressor tão forte com ferimentos muito menores do que os infligidos a sua mulher, respondeu ao agarrar o braço cabeludo do agressor, este gritou e entrou em desespero fugindo pela mesma janela por onde havia entrado. Disse também que no momento do contato sentiu que o grande anel prata em sua mão direita sofreu intenso aquecimento.

Ainda portava o anel, segundo ele, um presente de Elaine quando ainda eram namorados.

Tendo sobrevivido ao episódio e não tendo convencido ninguém a respeito da existência do tal homem fantasiado de olhos brilhantes, Roberto foi preso. Acusado pela morte da esposa e sem nada em seu favor, nem mesmo um atestado de insanidade, Roberto amargava a dor da injustiça no presídio.

FUGA À LUZ DO LUAR

Já haviam se passado 29 dias desde o assassinato de Elaine. Os pesadelos eram uma tortura constante. Mas nessa noite foi o pior de todos. Roberto se via correndo por ruas escuras cheias de pessoas despedaçadas. Corria em desespero sem saber do que fugia. Em certa altura dos pesadelos as pessoas decapitadas, pessoas com membros amputados, corpos infantis dilacerados, cercaram-no e o agarraram. O pavor daqueles toques frios e pegajosos fez brotar um grito de horror. E então ele olha para trás para ver seu perseguidor.

Roberto acorda coberto de suor. Sua respiração ofegante parece-lhe um bálsamo de alívio por saber-se livre do sonho horroroso. A luz prateada da lua cheia entrando pelas grades da janela da cela, ele percebe que agora tem um companheiro de cela. No ambiente de contraste recortado pela lua, o homem, aparentemente um mendigo, o observa com receio. Com uma expressão de desprezo, o homem resmunga qualquer coisa incompreensível e deita-se para voltar ao sono interrompido pelo grito. Mas ele não dormiria mais em paz.

Uma febre violenta começou a tomar conte de Roberto. Uma sensação de que um caroço se expandia em seu tórax e o cheiro de carne queimada. Sua carne. O anel de prata em sua mão direita estava queimando seu dedo. Suas mãos estavam abrutalhadas e crescendo, os dedos engrossavam de forma que ele mal conseguiu retirar o anel e lançá-lo fora. Sentia como se todo seu corpo estivesse pegando fogo. Pelos grossos e escuros começaram a brotar fartamente de suas mãos. As unhas cresciam tornando-se pontiagudas. Tentou gritar, tudo o que conseguiu foram grunhidos. E depois, a escuridão.

No outro canto da cela, o homem incrédulo gritava pelo guarda: _Socorro! Socorro!

O soldado plantão no pequeno posto policial foi correndo verificar o que estava acontecendo. Mais uma maldita briga de presos para separar - pensava ele – Mas vou arrebentar o valentão com o cassetete. Vai pagar por atrapalhar meu sono...

Chegando a cela, a gritaria havia cessado. Tudo o que percebia era uma respiração pesada vinda de um dos cantos escuros. Ia acabar com a palhaçada na base da pancada. Abriu a porta rapidamente e lançou-se afoito na direção do barulho. Pisou em algo gelatinoso e caiu. Foi quando a fera se levantou e virou-se para ele. Os olhos em brasa. O hálito quente alcançando-lhe a face. De pé, o lobisomem foi iluminado pela luz que a fenda das grades projetava na parede atrás dele. A carranca entalhada pela ferocidade e os dentes enormes foram a última visão do arrogante policial. O monstro estava livre para correr noite adentro.

AMANHECER

Acordou no chão, ao relento, sentindo o pinicar do capim em seu corpo. As costas doíam muito, como se tivesse carregado sacos de cimento na noite anterior. E seu estômago estava em brasa com a azia mais forte que já tinha sentido. Assustou-se ao perceber que estava no meio de um matagal. Não se lembrava de como foi parar ali. Podia ouvir o barulho de veículos grandes a uma boa distância. Caminhões em uma estrada, imaginou, pois o matagal não permitia que visse.

Suas roupas estavam esfarrapadas e empapadas de sangue. Sangue que não era seu, pois apalpou e verificou o próprio corpo e não tinha ferimentos. Estava todo coberto de sangue seco. Os cabelos formavam uma massa endurecida pelo sangue ressecado. Sentiu o desespero chegar, pois só se lembrava de estar na cela e ter acordado de um pesadelo. Lembrou que havia um outro prisioneiro, mas apenas isso.

O vômito veio repentino. A corrente ácida que subiu-lhe pelas entranhas e jorrou por por sua boca deixou alguma coisa sólida entalada entre sua língua e seus dentes. Roberto retirou o incômodo objeto e colocando-o na palma da mão, observou-o com cuidado. Era um dedo. Um dedo pequeno. Um dedo de criança. Enlouquecido, ele se atira ao chão, em agonia.

E no meio de sua loucura, as lembranças da noite anterior começaram a surgir: embrenhou-se na mata após fugir da cadeia e, quando saiu do outro lado, invadiu uma pequena casa de onde vinha um cheiro delicioso. Entrou pelo telhado e abocanhou repetidas vezes o pequeno corpinho que exalava aquele cheiro apetitoso. Lembrou do grito da mãe ao acordar e presenciar aquela cena. Assustou-se, e com toda a força de suas mãos apertou o pescoço da mulher para que o grito estridente parasse de ferir-lhe os ouvidos. Quando a mulher pendia inerte de sua mão, mole como uma boneca de pano, largou-a e fugiu pelo mesmo buraco que abrira no telhado para entrar.

Já do lado fora da casa, a lua cheia capturou-lhe olhar e ele não queria mais nada além de ficar parado a contemplá-la. Fascinante. Prateada. Irresistível. Lembrou do coração batendo forte como um tambor dentro do peito. Lembrou da respiração ofegante descompassada. Lembrou do tremor nas mãos. Estava literalmente encantado. Então, diante de tamanha beleza celestial soltou um grito de exaltação.

O uivo do lobisomem ecoou pela vizinhança acordando a cachorrada que pôs-se a latir em polvorosa. Lembrou que viu pessoas acorrendo à casa atraídas pelo grito da mulher. Após seu grito libertador pôde fugir dali para aguardar o raiar do dia.

ABRIGO

Dez anos após aquele terrível amanhecer, Roberto chega a uma nova cidade. Era um nômade que ia de um lugar para o outro em busca de trabalho e sustento. Sempre perto de matas ou florestas onde pudesse uma vez por mês se acorrentar para viver sua noite de maldição sem ferir ninguém. Naquela década de andanças perdeu a conta de pessoas boas que conheceu e que poderiam ter um destino horrível em suas mãos amaldiçoadas. Sua vida era uma tragédia espantosa. Fora privado de uma velhice aconchegante, com filhos e netos, por um monstro que apareceu no meio da noite. Um monstro que fez dele também um monstro.

Trabalhar na plantação de café onde se encontrava agora era cansativo, mas havia uma coisa diferente de tudo o que havia experimentado em sua eterna fuga. Havia crianças que gostavam dele. Todos os dias era rodeado pelos pequenos para que explicasse as tarefas de matemática ou ajudasse com o significado de alguma palavra ou apenas para brincar com ele. Sentia que isso era um problema, pois por mais que tentasse se convencer de que não era culpado pela sina que recebera, nos recônditos de sua mente havia um dedo acusador que o lembrava das crianças que morreram nas garras do monstro que habitava nele. Entre essas crianças havia uma menina de comportamento intrigante. Uma pequena órfã adotada por um dos plantadores. Ela falava pouco e nunca se aproximava de Roberto. Ficava olhando de longe.

Ao fim de uma tarde de trabalho, Roberto percebeu que a pequena Selena aproximou-se dele. A menina quebrou seu habitual silêncio e disse-lhe: _ Eu sei o que você é.

_ O quê? _ perguntou Roberto, surpreso e desconcertado,

_ Você é um lobisomem. Eu sei. Você tem cheiro de lobisomem.

_ O que você está dizendo menina? Você tem problema, é? Vá brincar com seus amigos...

A menina apenas sorriu para ele e saiu.

Desesperado diante daquela situação, Roberto resolve antecipar a partida. Afinal aquela já seria a noite de lua cheia e ele precisava ir acorrentar-se na mata. Ao amanhecer, iria embora dali para sempre.

A MENINA

A pequena era calada, mas corajosa. Houve um episódio em que um dos cachorros de guarda da casa da fazenda avançou sobre um grupo de crianças. Os trabalhadores ameaçaram o cão com suas enxadas e com gritos, mas o bicho não parou. Chegou mesmo a morder de raspão a mão de um dos homens. Então, Selena saiu do meio da criançada e se colocou no caminho do cão que avançava velozmente. Ao aproximar-se dela, o cão tropeçou nas próprias pernas e caiu rolando pelo chão. A menina abaixou-se e pôs-se a acariciar a cabeça do animal que lambia-lhe a mão mansamente. Não lembrava em nada aquele cão furioso de segundos antes.

O acontecimento foi assunto de conversas por vários dias. A menina explicou à família que apenas ficou com pena do cachorro que caiu e se machucou. Entretanto, sua mãe adotiva não ficou muito convencida com a explicação. Para ela, havia alguma coisa diferente em Selena. Não achava muito natural que uma criança pudesse viver sem jamais ter adoecido. Nem mesmo um resfriado.

LIBERTAÇÃO

Roberto vai ao alojamento dos trabalhadores para pegar seus pertences, passar a noite na mata e depois sumir no mundo. Já eram quase seis da tarde e ele ainda tinha que andar ate o meio da mata. Tinha que fazer tudo certo como fez nos últimos anos. Mas estava muito nervoso. Que conversa era aquela da menina? Quem teria dito para ela falar tais coisas? Mas sua aflição estava em vias de aumentar. Seu armário estava arrombado e a mochila onde estavam suas correntes e cadeados havia desaparecido.

Sem tempo para pensar em descobrir o ladrão, Roberto partiu para a mata. Resolveu que naquela noite teria de ir mais longe. Teria que avançar mais dentro da mata. Ia rezando para que a besta se perdesse na mata sem chegar a nenhum lugar habitado. Mas sua experiência dizia que essas eram esperanças vãs. Estava claro para ele que, naquela noite, ele voltaria a matar.

No coração da mata, a hora da transformação estava se prenunciando. Os espasmos, o calor, os pelos... Ele tinha se afastado muito, mas a fera era veloz... Terminada a transformação, o lobisomem estava livre para procurar vitimas. Sua fome e sede de sangue estavam muito aguçadas devido aos anos sem matar. Após vários anos acorrentado, o lobisomem estava livre de novo. Enquanto ele andava pela mata, os animais silvestres se escondiam ante a passagem daquela fera sobrenatural.

Correndo pela escuridão, ele é atraído um cheiro doce e intenso. Mais intenso do ele jamais sentira. Então, numa pequena clareira, ele vê a menina. Ele corre de forma desembestada na direção dela, mas se atrapalha e cai. Sem conseguir se reerguer, apesar de seus esforços, o monstro golpeia o ar e rosna impaciente.

A menina aproxima-se da besta caída e lhe diz:

“O caminho que trilhaste foi tormentoso e escuro, embora não o fizeste por tua vontade. Mas como a chuva busca o solo e o rio busca o mar, também as lágrimas fluem para um predestinado fim. Teu sofrimento está terminado. Vá e viva em paz.”

Ao fim da fala da menina, o encantamento começa ase desfazer e ali mesmo, debaixo da luz da lua, o lobisomem começa a desaparecer voltando a forma humana de Roberto. Ele se levanta e pergunta à pequena Selena como aquilo foi possível.

_ O que é você? Estou mesmo livre?

_ Eu sou uma criatura muito antiga. - respondeu Selena _ Já conheci vários como você. Muitos não puderam ser libertos, pois tinham um coração perverso e monstruoso mesmo em sua forma humana. Mas você e um homem bom. Te libertei de seu segredo, agora guarde o meu.

Selena bateu suas graciosas asas de libélula e elevou-se no ar deixando um tênue e efêmero rastro luminoso por onde passava.

FIM

LICANTROPIA