O Iluminado

A FERA

A brisa noturna resfriava os corajosos que saíam de suas casas. Ao contrário do homem que escolhera uma rua deserta como rota de fuga e corria aceleradamente com rosto de pavor. O homem parou de frente a um beco sem saída e olhou para trás temeroso, a cada rosnado daquele monstro um novo tremor o assolava, sentia seu sangue ferver, seu sistema nervoso simpático o fez correr o máximo que pode na tentativa de fuga, porém seu algoz fora mais veloz.

Ele entrou no beco, de frente para o perigo o homem congelou e travou, o rosnado fora aumentando, compreendendo sua aproximação. A luz fraca vinda do letreiro de saída dos fundos da lanchonete criou a sombra da cena: um homem petrificado caindo ao chão sob o ataque de um cachorro enorme que o devorou. Seu rouco pedido de socorro não fora ouvido por ninguém.

Ao amanhecer, um jovem rapaz uniformizado saiu da lanchonete com sacos de lixo na mão e ao perceber a cena soltou-os e apoiou-se no batente da porta horrorizado. O cheiro que sentia e deduzira ser do lixo fora identificado. Um homem ensanguentado, com o rosto mordido e a parte direita faltando o pedaço pela mordida gigante, o peitoral todo rasgado por garras, os braços roídos e uma perna separada do corpo descarnada. O corpo dilacerado servia de almoço para as moscas.

O jovem alarmado correu à lixeira próxima e vomitou tudo o que pode. Voltou trêmulo para dentro da lanchonete e não demorou a polícia chegar ao local.

O quarto elegante, grande e luxuoso era o abrigo de Sael. Um homem honrado, com um império de empresas do ramo de tecidos a comandar. Conhecido no grupo Shams Modas por Imperador Sael, o iluminado.

Sael estava largado em sua cama, totalmente nu. A porta trancada o salvou de ser pego por sua filha, Saya, naquelas condições. Sael acordou atordoado com os chamados e assustou-se ao notar-se nu, pediu que Saya o aguardasse e foi ao closet vestir-se. O homem retornou bem vestido e abriu a porta, fechando logo em seguida em suas costas.

- O que foi Saya? – questionou-a tranquilamente.

- Eu fiquei preocupada, baba, o senhor ficou fora durante a noite e o noticiário da manhã informou que um homem fora atacado por um animal e morto dilacerado. E depois de tudo o que aconteceu...

- Ah minha filha, não se preocupe mais. Veja! Estou inteiro.

- Ótimo vê-lo bem, baba. Vamos ao café?

O homem estendeu a mão e sua filha caminhou na frente.

A TRANSFORMAÇÃO

Ao chegar à matriz da Shams Modas, Sael fora cumprimentado por todos, desde o manobrista aos gerentes de setores. Tradição que o presidente da empresa tinha grande orgulho e satisfação em manter por sua honra e não por seu cargo.

A parte da tarde lhe trouxe grande insatisfação, um grupo de investidores tailandeses interessados em fechar uma grande parceria amedrontou-se pelo noticiário matinal. O estranho caso do homem dilacerado por um animal fora notícia de grande alarme pelos telejornais sensacionalistas e revistas virtuais de fofoca. Sael custou a convencê-los de que a região não era perigosa ao ponto de oferecer algum risco à Shams e aos negócios; conseguindo uma reunião em vídeo-chamada com muita insistência.

O Brasil fora escolhido por Sael como sua moradia há anos, após a morte de Asha, sua linda e amada esposa. E essa era a primeira vez que pensou em abandoná-lo. Há poucos dias sofrera um acidente na floresta; Saya havia sido raptada e o sequestrador marcou a meia noite na primeira clareira da floresta para entregar a garota e receber o dinheiro do resgate. Durante o caminho, fora surpreendido por um animal enorme, o homem entrou em choque e paralisou; o monstro mordera e derrubou-o ao chão. Sael, após despertar, notou que a mordida era muito grande, porém sua preocupação era Saya. Pagou o resgate realizando a troca.

Cuidou-se com a ajuda de Rari, a empregada da casa que conhecia medicina natural e envolvia-se com efusões e feitiçarias; por esse motivo fora expulsa de sua família e desertada. “Sihr é proibido”, “Está associada à Jinn e Satanás”, “Sihr é um dos pecados destrutivos”, tais frases foram às últimas palavras que ouviu de sua família. Sael encontrou Rari vagando pelas ruas e ao questioná-la apiedou-se e empregou-a; trazendo-a ao Brasil consigo, pois sabia que em sua terra jamais seria aceita por ninguém.

- Um monstro, um ser destrutivo tal qual a mim – disse Rari enquanto realizava a limpeza da ferida.

Mesmo cuidando de suas feridas poucos dias após a mordida, durante uma caminhada sentiu o seu corpo ferver por dentro, seu sangue coagulava e descoagulava, sentia seus órgãos serem esmagados. Com muita dor correu para o bosque, suas costas pareciam que estava abrindo. Sentiu grande torpor e o rosto esticando, ganhando outras formas. O corpo curvou rasgando suas roupas, as pontas dos dedos das mãos e dos pés ardiam e logo tiveram suas unhas transformadas em garras e o seu corpo peludo logo ficou à mostra. Sael transformara-se em um monstro, um ser amaldiçoado e perigoso. Sua consciência sumira e só conseguia pensar em caçar e alimentar-se, precisava de sangue.

Voltou à rua devagar, caminhou sob quatro patas vagarosamente para se acostumar com elas. A noite esfriara e em alguns pontos a neblina cobria parte da visão. Um homem com roupa esportiva passou correndo, não notou a presença da criatura que o observava. Olhava frequentemente ao marca-passo no pulso e pulou à frente quando escutou o primeiro rosnado, alto e rouco. Ao olhar para trás sentiu a necessidade de correr verdadeiramente veloz e sem contar os marca-passos.

A fera correu atrás do homem, rosnando e acelerando de pouco a pouco, o homem decidiu entrar num beco e ao notar que o lugar não tinha saída paralisou e aguardou seu derradeiro fim de vida.

Sael, a fera, com o rosto cheio de sangue abandonou o local. Correra pelas ruas e retornou a floresta na qual se transformou. Com o passar das horas sentiu o corpo regredir, a dor da transformação voltara e toda a sensação de enjoo estava presente novamente. Retornando ao corpo humano, Sael ouviu passos nas gramas e folhas secas sendo pisadas, sentiu um aroma familiar de sabão e café, e sem forças para manter-se lúcido, desmaiou.

Sabão e Café

Rari inundou a casa com o cheiro de café. Aquela manhã sentiu um forte arrepio subir pela coluna, largou a roupa no tanque e seguiu para a cozinha, somente o café lhe traria respostas.

Ao coar, encheu uma xícara e bebeu balbuciando palavras indecifráveis. Após finalizar, observou a borra do café e os olhos semicerraram juntamente com o tremer dos lábios; notou um grande animal descabeçado.

Levantou às pressas e correu até o quarto de Sael. A porta estava destrancada, o quarto estava completamente revirado.

- Alfawdaa wallh! (Caos, por Deus!) – Rari sibilou.

Chegou à janela rapidamente ao notar o voar das cortinas, os vidros quebrados com filetes de sangue.

Rari se desesperou. Abriu a porta do quarto de Saya e notou a mesma desordem. A jovem não estava no quarto; não teria saído sem o café matinal. A mulher desceu às pressas para o seu quarto e pegou alguns pertences. Saiu da casa com uma trocha bem amarrada nas costas. Entrou na floresta e caminhou com destino ao precipício.

Na metade do caminho, ouviu gritos e identificou Saya e um rugido de fera. Rari acelerou o passo e encontrou Sael transformado em lobisomem, segurando a jovem perto do precipício.

- Monstro! – gritou ela.

Naquele instante Sael virou-se e fitou os olhos da mulher. Esta, tranquilamente soltou a trocha no chão e a desamarrou, a fera soltou Saya no chão que se afastou do perigo. Rari vestiu algo parecido a um poncho feito de correntes de prata, segurou bem firme uma estaca de prata, que reluziu à luz da lua cheia. O brilho freou Sael no primeiro instante, mas a fera continuou a avançar contra a mulher.

Saya gritou pelo nome do pai, em vão.

A lua estava reluzentemente linda. Causava um brilho nas copas das árvores e nas águas que finalizavam o precipício. A fera, com seus olhos vermelhos, mirou a mulher reluzente em prata novamente e avançou.

- 'arwah alghabat tamtalikuni dida alshari (Espíritos da floresta possuam-me contra o mal), – gritou Rari, seus olhos reluziram e a cloração de negro profundo foi substituído para uma cor prata brilhante. O corpo da mulher sugou o brilho da lua e cada parte de si reluzia, tal qual a lua.

Sael atacou com suas garras enormes, rugindo de dor ao ser o ferido. Rari caminhou para perto do monstro, que se afastava devagar. O cabelo da mulher esvoaçava para o alto, o brilho lunar sendo transferido por cada poro de seu corpo, ela estava com os braços abertos e a cada passo em direção a Sael lhe descia uma lágrima pelo rosto.

Rari lembrou-se de quando o encontrou, estava suja, com fome e largada nas ruas do Iraque vagando sem rumo. Havia sido rejeitada por todos, por praticar feitiçarias. Sael lhe olhou nos olhos e estendeu a mão e lhe tornou uma pessoa novamente. Agora, era ela quem lhe estendia a mão e o lobisomem recuava-se acovardado.

Rari balançou os braços e emitiu um som gutural. O brilho lunar possuiu o enorme corpo de Sael, fazendo-o curvar-se diante a lua. Rari o abraçou por trás e a fumaça do corpo queimando começou a subir.

O grito do lobisomem era agoniante, beirava à piedade e benevolência. Rari pegou a estaca. Saya, de longe, gritou o nome do pai. A fera virou-se para a jovem e a mulher a quem estava arrolhado lhe cravou a estaca no peito. O som de seu gemido fez Rari olhar para a lua com os olhos encharcados e cair de joelhos atrás do lobisomem.

Saya gritou novamente e correu até Rari. Com esforço retirou a mulher de perto do corpo peludo e enorme que em poucos minutos transformou-se em Sael novamente, completamente nu e com a estaca cravada no peito.

As duas carregaram o corpo de Sael para a floresta, na mesma clareira onde ele se transformara a primeira vez e ali o enterraram. Rari disse algumas palavras e Saya identificou um cheiro possuir suas narinas. Era de sabão e em pouco tempo misturava-se com o cheiro de café.

Saya passou uma semana afastada de todos. Só recebia Rari em seu quarto.

No início da outra semana apresentou-se como nova presidente da Shams Modas. Informou que o pai fora vítima de um ataque na floresta e não sobrevivera.

A moça possuía um olhar carregado e firme, não falou com ninguém antes de sua apresentação e ao finalizar entrou na sala de Sael, observou tudo com pesar e sentou-se na poltrona.

- Agora será tudo do meu jeito.

Virou-se para a janela e fitou a miragem, com os olhos vermelhos.

Tema: Licantropia

Batista Andrade
Enviado por Batista Andrade em 28/02/2021
Reeditado em 24/03/2021
Código do texto: T7195537
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