NA VENDA DO SEU NERSO - CLTS 14

Fazia um frio de geada naquela noite estrelada de São João, e a venda do Seu “Nerso” estava em polvorosa com a festa junina.

A tarde foi de preparativos com os assíduos fregueses bêbados equilibristas, trepados nas árvores para amarrar as bandeirinhas de fora a fora no terreiro, outros ébrios que levavam a cabo uma verdadeira operação de caça com tática quase militar com o intento de capturar o porco gordo que seria assado, mais dois robustos cachaceiros se ajudando para colocar o pau de sebo no buraco cavado no meio do terreiro.

Quando enfim conseguiram, o Seu “Nerso” saiu lá de dentro da venda gritando e piscando o olho esquerdo que por sua vez fazia levantar o canto da boca, enquanto seu dente de ouro brilhava. Os dois haviam esquecido de pregar no alto do escorregadio pau de sebo a caixinha cuja lenda rezava que havia nela “mil conto”.

Meu amigo Tonho passou o dia montado na Cida, a sua mula. Disseram que o maluco chegou a ir até o Setúbal, lá depois da represa. Eu evitava imaginar ou até mesmo perguntar o que havia além daquela sombria subida, ladeada por canaviais, depois da venda do Seu “Nerso”. O simples nome “Setúbo”, como era pronunciado por bocas moles e tortas de tanta pinga, envolvia o bairro vizinho em uma aura sombria no meu imaginário medroso.

Mas aquele moleque encardido, de cara suja e que não se preocupava em tirar o pijama antes de sair por aí montado no lombo da Cida, era destemido. Um dia a Betinha, filha mais velha do Seu Estevão, o nosso caseiro, me disse de maneira jocosa que o Tonho era “filho do padre”. Se sua intenção era desmerecer meu amigo, não deu certo comigo, porque eu bem que queria ter pelo menos um pouco daquela coragem toda que o moleque ostentava.

A festa de São João estava barulhenta, com um trio que mal se aguentava de pé tocando sanfona, violão e triângulo, tentando cantar músicas caipiras que falavam de amor não correspondido, roça, passarinhos cantando e da morte que nunca deixava de comparecer para executar um passamento. Muitas bombinhas pipocando pelo chão, uma fogueira larga e alta, o porco já assado sendo servido, e os pratos simples de louça lascada passados de mão em mão até que todos estivessem comendo, enquanto alguns já repetiam o prato, a molecada correndo por todo canto e um monte de bêbado tentando subir no pau de sebo, sendo ajudados por outros bêbados.

O Seu “Nerso” ali atrás do balcão de madeira, piscava o olho esquerdo, levantando o canto da boca, feliz da vida. Dava até para ver o reflexo do seu dente de ouro nas garrafas de cachaça com cobras de todo tipo dentro, algumas já quase vazias ali na prateleira torta.

Minha mãe que amarrava a cara em qualquer festa, sentada no banco bambo de madeira, rendera-se ao clima daquela e comia um “teco” do porco que a mulher do Seu “Nerso” lhe ofereceu, enquanto ouvia com atenção ela contar ao pé do seu ouvido que o Tonho era filho de uma certa Maria Aparecida e que esta sumira do mapa após dizerem à boca miúda que ela era mulher do padre José, lá da “paróca do Setúbo”. Curiosa, mas vigilante, ela lambia os dedos após comer com gosto o “teco” de porco, enquanto dividia sua atenção entre ouvir o “causo” contado pela nova amiga e o meu pai, tomando conta para que ele não fizesse a burrada de tentar subir no pau de sebo depois de ter bebido. O coitado pensava que a enganava, mas ela sabia que pelo menos umas três doses daquelas cachaças com cobra dentro, já tinham descido pela goela do marido, mais alegrinho que de costume.

Mas não havia com que se preocupar, pois ele estava mesmo era interessado em ver o Bigode ganhar fácil um bom dinheiro apostado na sinuca por algum valente desavisado vindo da cidade. Eu comia uma deliciosa canjica que o Seu “Nerso” me deu numa cumbuca de barro, com duas gotas de cachaça, e também prestava atenção à história envolvendo o meu amigo Tonho. A mulher dizia que a Maria Aparecida nunca mais fora vista e o “Nerso” e ela passaram a cuidar do menino abandonado como se filho deles fosse. Uns dias depois do sumiço da mãe, o Tonho apareceu com aquela mula marrom e não desgrudou mais dela, dizendo que a encontrou lá no “Setúbo, vê se pode”.

De repente a criançada toda passou gritando pela porta da venda em direção ao terreiro e o Tonho enfiou pela porta a cabeça penteada, de cara limpa e bochechas vermelhas, e gritou: “Eita que o Chico Caoio vai sortá o balão! Bora, gente mole!”

Dei uma última colherada na canjica, larguei a cumbuca no balcão e corri atrás do danado, driblando com dificuldade as gentes grandes que insistiam em ficar na frente. Lá na ponta do terreiro, o Chico “Caoio” acendeu a tocha e olhou com o único olho que tinha, esperando até que o ar quente enchesse o balão.

Enquanto isso, lá no pau de sebo, o “Jão” Ossudo, magrelo como ele só, quase conseguiu pegar a caixinha com “mil conto”, mas escorregou sebo a baixo, estatelando a bunda magrela no chão e seu chapéu rolou até perto da Cida que estava comendo um matinho ali perto. Vendo pelo rabo do olho que aquela coisa marrom rolava um pouco torta para o seu lado, a mula relinchou aflita e deu uns passinhos miúdos para o lado, tentando fugir da ameaça que o chapéu lhe apresentava, chegando mais para perto da fogueira.

Ali perto o Chico “Caoio” largou o balão deixando ele subir, e ele foi para os lados de Mairinque, levado pelo vento. Todos bateram palmas, torcendo para que o balão de “Sum Jão véio” fosse longe. O vermelho da cachaça e da fogueira refletia-se nos rostos contorcidos de alegria e esticava suas sombras trêmulas na parede ondulada de pau a pique da venda do Seu “Nerso”, formando um teatro de atores sinistros, quase fantasmagóricos.

Não sei explicar, mas naquele momento eu estava inquieto, com uma forte sensação de que aquilo tudo daria merda. Procurei pelo meu pai entre as sombras avermelhadas e barulhentas, me atordoando olhos e ouvidos. Não o encontrei.

E um vento vindo lá dos lados do Setúbal começou a rodopiar no terreiro, levantando poeira que foi crescendo a ponto de levantar chapéus e saias também. Parece ter levado consigo a alegria, deixando algo como um silêncio em seu lugar.

O fogo alto e largo da fogueira também rodopiou e a mula relinchou como se fosse um gemido alto de gente, tentando se afastar, disposta a enfrentar até o chapéu do “Jão” Ossudo, que se tornara mais ameaçador com o vento fora de hora. Mas um braço de fogo fez uma curva de baixo para cima, enrolando no seu pescoço e a Cida corria, dava pinotes e relinchava alto e esganiçado, abrindo caminho pelo terreiro na direção do “Setubo”, com a cabeça em chamas.

O Tonho gritava alto e esganiçado com os braços esticados em direção à mula. Ele esperneava, mas estava bem seguro pelo Seu “Nerso”, que piscava sem parar o olho esquerdo e a boca repuxava ainda mais, seu dente de ouro reluzindo o reflexo da cabeça em chamas da mula.

Tema: folclore brasileiro

Muito bom estar de volta em um desafio desse naipe aqui no Recanto das Letras. Peço a gentileza aos amigos leitores que pesem a mão nos comentários e me ajudem a fazer desse conto que tanto gosto, um contaço que mereça estar no livro de contos que estou preparando.

Ao término de cada desafio, sinto-me como se tivesse lido uma antologia de contos nacionais de alto nível e é assim que está esse desafio.

Muito obrigado pela oportunidade.

Só mais uma coisinha, aliás, duas:

Tenho quatro contos publicados em e-book, sendo três deles surgidos aqui no Recanto das Letras, com trabalho editorial competente da Elemental Editoração e revisão mágica da Vasconcellos Revisa.

Os links desses profissionais de mão estrelada estão na minha biografia.

Mahalo

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 28/02/2021
Reeditado em 02/03/2021
Código do texto: T7195084
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