As Palafitas - Terror
Não era pra pouco que o velho Eugênio reclamava tanto. Já era a segunda camada de madeira que ele colocaria na base de seu casebre em menos de um mês.
- Eu odeio essas palafitas! - Resmungava ranzinza o velho. - Tomara que pega fogo. Morra eu, esses muleques imundos, e todos meus vizinhos. Eu odeio essas palafitas podres...
Realmente eram podres, pois eram construídas com madeira sob o leito de córregos e lagoas. As construções eram bem frágeis, e havia perigos e falta de estrutura em todo canto.
Eu cresci vendo minha mãe cuidar de meu irmão e eu, sempre saindo muito cedo e voltando muito tarde. Nos dias sem escola, costumávamos nadar naquele córrego sujo como se fossemos imunes a tudo.
Logo cedo aprendemos a correr por aquele labirinto de madeiras farpadas e bambas sem nos machucar. Também era nosso trabalho ajudar a repor as madeiras podres de nossas casas, não exatamente repondo, mas remendando com madeiras novas ( O que sinceramente não parecia tão útil)
Me lembro quando tudo começou a mudar, na verdade, essas lembranças estão estranhamente nítidas na minha mente. O filho do velho Eugênio morreu no desabamento de sua casa.
Depois de 15 dias de procura, acharam o corpo dele boiando em meio as madeiras apodrecidas de sua antiga casa.
Me lembro de que isso ficou muito notório entre os moradores. Quando acharam o corpo do pequeno Alisson, não encontraram sinais avançados de decomposição, o que por si só já é intrigante, mas como também encontraram pequenas escamas que pareciam crescer no corpo do garoto.
Os legistas e outros médicos afirmaram de tratar se algo novo, e desconhecido até então, mas que provavelmente era apenas um caso isolado. Os moradores apelidaram aquilo de causo do menino Jaú ( espécie de peixe comum onde morávamos.)
Depois de algumas semanas o velho mudou sua personalidade por inteira... Ele começou a ficar obcecado por uma atividade em específica:
Ele nadava ao redor de sua antiga casa e ficava mergulhando uma boa quantidade de tempo, todos os dias.
Aos poucos fomos notando que sua casa ia retomando a forma de antes, como se nunca houvesse desmoronado. O velho estava ainda mais neurótico com a sua mania, ele mergulhava procurando pedaços de madeira e usava esses pedaços pra reconstruir seu casebre...
Se isso por si só já não fosse digno de internação, a situação ficou cada vez mais caótica. Agora ele começou a pescar e a viver só dos peixes que conseguia. Quando diversas vezes os vizinhos tentavam o ajudar, ele dizia:
- Mas Jaú é o melhor peixe do mundo. Vamos, provem também dele...
- Eugênio você sabe muito bem que esse leito é contaminado, não pode comer nenhum peixe daqui, se te falta dinheiro nós te doamos... Mas por favor nos deixe te ajudar...
Ele só negava e negava. Até o dia em que escamas começaram a aparecer em seu corpo, chamando a atenção de todos os vizinhos. "Homem Jaú" ficou apelidado agora o velho Eugênio. E não demorou para os garotos começarem a infernizar a vida dele, um dia quando se preparava para mergulhar, foi recebido por pedradas de alguns três pivetinhos, e essa cena se repetia por um tempo, até que ele os ameaçou dizendo:
"Ahh é? Brinquem mais, brinquem mais! Todos vocês vão virar Jaú, que nem meu filho. Cambada de imprestáveis!!"
Não deu outra, as escamas verdes e oleosas começaram a aparecer nos mesmos meninos. Daí foi uma confusão, a prefeitura veio analisar e concluiu que a causa daqueles sintomas, se davam pela contaminação do leito do rio. Uma empresa que jogava lixo contaminado na água foi investigada, mas até lá, muitas pessoas creram que senhor Eugênio realmente podia lançar maldição nas outras pessoas.
Algum tempo depois, quase que simultaneamente, os garotos foram transformados em Jaús pela madrugada. Eles já acordaram em suas camas mortos e transformados. Os parentes os jogaram no rio, e depois disso ninguém queria ficar perto do Eugênio, porém ele mesmo não havia ainda se transformado, e isso aterrorizava ainda mais quem estava acompanhando tudo.
Minha mãe me implorou para nunca mais chegar perto dele, e se o visse, ser muitíssimo educado para que também eu não fosse transformado em Jaú, e disse as mesmas palavras a meu irmão mais novo.
O clima nas Palafitas nunca esteve tão estranho, a diversão havia dado lugar para uma monotonia triste e enlutada, as vezes era mais divertido ficar na escola do que brincar no rio, e este por sua vez, também parecia estar cedendo ao clima estranho, literalmente. Havia numa distância de dois quilômetros depois da vizinhança, uma pequena indústria que soltava diariamente dejetos no rio, e aos poucos a água foi pegando um cheiro muito incômodo e repulsivo, nem as crianças mais largadas queriam nadar lá. O único que continuava com suas atividades de mergulho, era o velho Eugênio, que em nada lembrava o velho chato de antes, agora parecia ainda mais neurótico e possuído por uma obsessão profunda com o rio.
Estavam planejando matar o velho, uma vez que não conseguiram expulsar ele da vizinhança. Ouvi de um malandro, um primo ou um sobrinho, sei lá de quem se tratava, que naquela noite sequestraria ele e daria um jeito no desgraçado.
Dito e feito, três homens abordaram o velho Eugênio e o amarraram. Conforme se aproximavam de um matagal e se afastavam da água, mais o velho soava e já estava todo oleoso, como um peixe. Ele foi levado sob constante ameaça e tortura, o batiam e o cortavam com um canivete. O velho não esboçava reação, como se sua mente já não fosse mais a mesma.
O nome do carrasco era Douglas, e tinha em sua mão um facão e em sua mente, uma dúvida cruel.
- Como é que nois vai te matar, seu veio macumbeiro? Te picar, te queimar vivo no pneu, ou estourar sua cabeça? Pra mim filho do diabo tem que ser queimado, que é pra nem ter velório...
O velho não esboçava reação, mas Douglas parecia muito agitado, era a primeira vez que mataria alguém e suas mãos estavam muito hesitantes. Vendo o velho soado como se estivesse em uma sauna, por um momento pensou que aquilo era medo e isso de certa forma o fez ficar confiante.
- Tu sabe o nome do menino que você jogou a praga do Jaú? Era Vinícius, o meu irmão mais novo... Ele não fez nada pra merecer aquela desgraça, você destruiu minha família, entende? Agora vai ter que pagar pelo que você mesmo plantou. Você não passa de um convarde, mal te cortamos e você já está suando de medo... Não sabia que demônios podiam sentir medo.
Nada do velho Eugênio responder, na verdade agora, começou a tremer e a ficar em estado febril. Os homens o prenderem em uma árvore, e começaram diversas torturas. Tomado pela raiva, Douglas estendeu o facão e em um só golpe decepou Eugênio. A cabeça dele rolou no chão rígida e sem expressão, com o sangue manchando o solo e o facão de Douglas.
Quando pensaram que o serviço foi finalizado, enquanto até preparavam o fogo para queimar os restos mortais do cadáver. O corpo de Eugênio começou a se balançar e a se debater nas cordas como se fosse um peixe. Sua cabeça antes sem vida começou a emitir um barulho estranho, como o som de um constante resmungo. Apavorados, um dos homens saiu correndo em direção ao carro. Douglas com o facão em punho tentou bater no corpo remexendo mas estava muito assustado. "Deu ruim, deu ruim" disse o terceiro comparsa pedindo para que seguissem o que fugiu.
Douglas gritou pelo fósforo, o outro tremendo deixou cair no chão. Foi a sentença de morte deles. O corpo de Eugênio já se soltara das cordas frouxamente apertadas e se jogou em cima de Douglas. A parte do pescoço decapitada banhava de sangue o carrasco, e o suor oleoso começou a cair por cima de seus braços e barriga.
O outro que ficou sem reação, ainda continuava procurando fósforos, achou um e quase que ateia fogo no velho e no seu amigo.
Sem o que fazer, não viu quando a cabeça de Eugênio se aproximou usando as tripas do pescoço como pequenas patas, e cuspiu em sua perna, saliva que começou a queima-lo como ácido.
Douglas foi nocauteado com muitos socos no queixo e não ficou consciente para ver a cabeça de seu Eugênio fugir junto de seu corpo, não correndo, mas sim se debatendo no chão a alta velocidade como um verdadeiro animal aquático.
Ele ficou uns 5 minutos nocauteado, quando acordou viu seu amigo segurando a perna de dor e em meio a muitos gritos. Depois pôde ver uma luz forte que se aproximava rapidamente, por sorte era aquele primeiro que fugiu, mas agora estava de volta com o carro. Ele desceu do automóvel e olhou para Douglas com uma expressão de terror.
Sua face direita estava desfigurada como o rosto escamoso de um peixe, até os olhos lembravam os olhos de uma sardinha. Seus braços estavam oleosos e com um cheiro horrível, mas o pior mesmo eram as pernas que estavam completamente transformadas em uma cauda de peixe.
"Porra você também!" Foi a última frase que ele ouviu até voltar a ficar inconsciente. O outro teve que amputar o pé tempos depois no hospital, e Douglas foi internado e depois de morto por asfixia, o seu corpo foi doado para uma universidade renomada fazer pesquisas.
As investigações apontaram que foi uma forma rara de tumor causado por intoxicação e poluição, aquela indústria foi apontada como a culpada indiretamente pela contaminação do leito do rio, através do descarte incorreto de lixo tóxico e foi penalizada.
Até olhar aquela paisagem novamente não me traz mais saudades, enfim minha mãe conseguiu uma casa melhor longe daquela precariedade e tristeza. Fomos sem nenhuma saudade desses tempos.
Quanto ao senhor Eugênio, suspeito que não tenha perdido seu hábito de nadar por aí, pode estar ainda no fundo do rio, ou até mesmo ter procurado um outro lugar para viver... Ou quem sabe... Tenha finalmente assumido sua forma final de homem-Jaú, quem sabe? O que sobrou foi uma lenda aterrorizante entre os moradores daquele local, e até os dias de hoje, comer Jaú se tornou um sinônimo de miséria e espanto entre todos.