LADO A LADO COM O SERIAL KILLER. JACKIE, O ESTRIPADOR..
Londres, 1888. O jovem Alfred Stone saltou do navio Morning Star. O pequeno navio estava abarrotado de passageiros, a maioria pobres procurando uma vida melhor na capital inglesa. A mochila nas costas era sua única bagagem. O quepe tradicional de um imigrante irlandês. A cabeça repleta de sonhos de liberdade e fortuna na Londres da revolução industrial. -"Olá, Londres. Sou Alfred, das terras verdes da Irlanda. Muito prazer." Disse o moço, olhar fixo no rio Tâmisa poluído. A noite caiu. Um bar. O barman com cara de poucos amigos. -"Onde... primeiramente boa noite. Onde posso me hospedar, amigo?" O barman segurou o riso, olhando a triste figura do viajante maltrapilho. -"Prefere algum hotel de luxo junto ao palácio real ou algo menos luxuoso, meu jovem?" Os presentes riram. -"Entendi. Muito espirituoso. Simples. Muito simples." O barman apoiou os braços no balcão de madeira rústica. -"Vá para Whitechapel, na periferia. Lá é o reduto de imigrantes irlandeses e refugiados judeus! Vai achar uma pensão, uma espelunca ou na pior das hipóteses, terá uma rede num beco sujo pra dormir." O jovem se curvou. -"Agradecido. Que rumo eu tomo pra chegar em Whitechapel?" Um dos homens que tomavam cerveja foi até a porta. -"Siga a direita. Vá reto até a taberna da caveira. Umas vinte quadras adiante, vai ver as docas. Não tem erro. Quando não ver nenhuma mansão ou prédio limpo, estará em Whitechapel." O rapaz ajeitou o quepe. -"Obrigado. Muito sucinto e animador!" Após uma longa caminhada, ele chegou ao distrito londrino. A névoa tradicional, as ruas e vielas escuras. As ratazanas e um cheiro horrível. A cidade convivendo com doenças. Um fluxo intenso de imigrantes. Alfred foi até uma pensão. -"O que quer, rapaz?" Disse o dono da estalagem, com cara de sono. -"Um quarto pra dormir." O outro bocejou. -"Não há vagas, já é quase meia noite. Sinto muito." A porta se fechou atrás dele. Assim se sucedeu em outras três pensões. O estômago dele roncou. Tinha um pedaço de pão duro na mochila. Uma moça lhe acenou, do outro lado da rua. -"Não quer se divertir com Mary Ann, forasteiro?" Ele tirou o quepe e a cumprimentou. -"Boa noite, senhorita. Eu preciso apenas de um lugar pra dormir." Ela ergueu o vestido, deixando os joelhos a mostra. Ela era linda. Ele se lembrou dos conselhos de seu tio Bob. -"Já estive em Londres, pequeno Alfred. Fuja das prostitutas. Há mais de sessenta bordéis na periferia. Vá direto para as fábricas." A moça veio ao seu encontro. -"Gostei de você. Pode dormir nos becos, nas redes. Antes do sol nascer terá que despertar ou a polícia o expulsa a pontapés." Alfred sorriu. -" Grato, senhorita. Sou Alfred, da Irlanda." Ele corou. Ela tinha um perfume enebriante. -"Sou Mary Ann. Trabalho aqui na casa rosa." Ele se afastou ao ver um grupo de quatro homens se aproximando. Eles entraram na casa rosa. Ele viu quando Mary Ann entrou. Finalmente os becos. Uma multidão de estrangeiros e mendigos disputavam as redes. Alfred sorriu. -"É assim que Londres recebe seus visitantes?" Um velho o ajudou. Tinha barba longa e um solidéu, característico dos judeus. -"Alí, filho. Tem uma rede vazia." Alfred se curvou, agradecido. O velho saiu de sua rede. -"Não. Assim não, moço. Durma sobre a sua mochila pois o que mais tem em Whitechapel são bêbados e ladrões." Alfred seguiu o conselho do homem. Morfeu, o deus do sono, logo agiu e o rapaz dormiu pesadamente. Os primeiros raios de sol não o despertaram. Alfred acordou com as bengaladas do velho judeu nas suas pernas. -"Acorde, a Scotland Yard vem aí. Estou indo procurar emprego nas fábricas!" Alfred saiu da rede. -"Posso ir junto? Não conheço a cidade." O velho concordou. -"Ótimo. Passaremos em frente das mansões, no centro. Encontraremos comida nas lixeiras." Alfred e o velho saíram do beco. -"Simon. Me chame de Simon." O velho se apresentou. -"Sou Alfred, da Irlanda." Simon fez uma careta. -"Você me atrasou, rapaz. Saio antes do sol nascer. A essa hora as filas de emprego estão grandes. Temos um longo caminho a percorrer." A conversa entre eles se intensificou. Alfred sentiu as pernas doerem. Admirou a vitalidade de Simon. -"Já fiz de tudo em Londres, irlandês. Trabalhei nas docas, nas fábricas de sabão e até fui açougueiro. Um judeu matando e esquartejando um porco? Sim, já fiz isso pra não morrer de fome. Brasil, é lá que eu quero ir. Daqui a quatro meses, um navio partirá para a América do Sul. Um grupo de judeus irá nele. Espero estar vivo até lá." As filas nas fábricas. -" Muito novo. Não há vagas!" Diziam a Alfred. -"Muito velho. Não há vagas!" Diziam a Simon. O centro da cidade. Os palácios e torres centenários. Uma multidão nas ruas. Simon se distraiu e deu um esbarrão num homem elegante. -"Minha perna. Por Abraão!" Gritou, enquanto o outro saía de cima dele. -" Me perdoe, meu caro." Alfred levantou Simon. O judeu o puxou pelo braço. -"Um policial. Vamos entrar na catedral." Alfred nada entendeu. Eles se misturaram a multidão. -"Não é judeu?" Sussurrou. Simon se ajoelhou. -"Silêncio. Disfarce." Puxou Alfred para perto dele. O casaco longo. Um sinal com os olhos. Alfred viu uma carteira. -"Está recheada. Vamos poder almoçar hoje, irlandês. Tudo pra não morrer de fome, já disse." Alfred estava admirado com a sagacidade de Simon. Eles saíram da igreja. Simon amarrou a barba e tirou o casaco. -"Guarde o quepe. Estão procurando um velho e um rapaz de quepe. Aquele almofadinha já deve ter avisado a polícia." Eles atravessaram a cidade. Uma pensão frequentada por judeus. Alfred e Simon almoçaram alí. O velho falava numa língua estranha, quando encontrava alguns amigos. -"Pode ir se quiser, irlandês. Nos vemos a noite, no beco." Alfred foi deixado de lado por Simon, mais atencioso com seus amigos judeus. Alfred, se sentindo um estranho no ninho, saiu da pensão. Uma longa caminhada. O jovem irlandês ficou um bom tempo admirando algumas crianças brincando no parque. A noite chegou. Ele andou pelas ruas de Whitechapel. Lá estava ela, em frente a casa rosa. -"Mary Ann." Disse a si mesmo, admirando a beleza da moça. Um grupo de homens saiu da casa. Alfred se dirigiu ao beco. Uma, duas, três noites e Simon não apareceu. Alfred ia sozinho até às fábricas, procurando emprego. Uma semana depois. Alfred conseguiu trabalho nas docas. Era cansativo. Tinha um pouco de dinheiro para pagar uma cama de pensão em Est End. -"Você aqui, rapaz?" Ele se virou. Estava na mesma pensão de Mary Ann. -"Olá, Mary Ann. Vou dar uma volta pelo bairro. A gente se vê." Alfred estava cansado de caminhar. Uma pequena barbearia perto de Whitechapel. Ele deixou o corpo cair na calçada, aproveitando a sombra do toldo. -"Saia daí, rapaz. Está atrapalhando a passagem dos clientes." Disse o barbeiro ao jovem. Alfred se pôs de pé. -"Eu já vou sair, cavalheiro." O barbeiro o mediu da cabeça aos pés. -"Preciso de um ajudante. Você é forte." Alfred se entusiasmou. -"Que bom. Estou livre para trabalhar." O barbeiro estendeu a mão. -"Sou Aaron." Alfred o cumprimentou. O barbeiro tinha a mesma idade dele. Cabelos e olhos castanhos. Com o tempo, Alfred viu o trabalho aumentar. Não só varria os cabelos dos clientes, como também lavava os banheiros e limpava todo o salão. Aaron era de poucas palavras. Revelou a Alfred que tinha vinte e três anos e era polonês. Havia dois quartos pequenos, nos fundos do salão. Um deles era privativo, vivia trancado. -"Porque não aluga esses quartos, senhor Aaron?" Perguntou Alfred ao barbeiro. -"Ficou louco, irlandês? Odeio esse bairro pobre, cheio de prostitutas e judeus. Odeio mulheres, entendeu?!?" Alfred se assustou. Aaron parecia outra pessoa. Ele tomou água e se virou, mais calmo. -"Me desculpa, irlandês. Bem, se quiser, pode ocupar o quartinho branco. Descontarei de seu salário." Alfred sorriu. -"Eu quero, certamente. Obrigado, senhor Aaron." O barbeiro girou a navalha no ar, com a mão esquerda. -" Não me chame de senhor, temos a mesma idade, irlandês. Preciso de você no manicômio. Amanhã será dia de corte de cabelo e barba de setenta internos, em Winston." Alfred se assustou. -"Ficaremos o dia todo lá, senhor. Digo, Aaron." O barbeiro sorriu. -"Exato mas não se você me ajudar. Vai usar a máquina pra cortar cabelos. Aqueles miseráveis não se importam com a perfeição do corte. Primeiro teremos que amarrar os loucos com algemas nas cadeiras. Eles não param quietos e alguns têm que ser dopados." Aaron jogou uma peruca para Alfred. -"Coloque a peruca no manequim e treine. Basta que não corte nenhuma orelha." Alfred engoliu em seco. Aaron abriu os cadeados do quarto. -"Limpe tudo, vou descansar." Era fim de tarde quando Aaron se foi. -"Esteja antes das sete em Winston, irlandês." Disse Aaron, colocando a maleta na carruagem. Alfred passou a noite no quarto, nos fundos da barbearia. Era sujo mas era melhor que a pensão e outros cortiços onde estivera. Tinha privacidade. Uma longa caminhada até Wiston, no dia seguinte. O manicômio cercado por um jardim. O porteiro o encarou. -"Estou com Aaron Kosminski, o barbeiro. Temos muito trabalho." O porteiro abriu o pesado portão. Alfred foi revistado. Uma fila de internos com camisas de força. Os médicos e enfermeiros no salão. Aaron chegou numa carruagem. Ele pagou o cocheiro e entrou no manicômio, sem ser revistado pelo porteiro. -" Bom dia, senhor Aaron. Bom trabalho." Aaron cumprimentou os médicos. Ignorou as enfermeiras. Jogou um avental para Alfred. -"Mãos a obra. Venha desinfetar as mãos, irlandês. Vou te pagar bem por isso." Alfred se impressionou com a destreza de Aaron com a navalha e a tesoura. Uma parada para o almoço. -"Ainda não vi nenhuma orelha no chão, irlandês. Você é bom." Alfred viu o barbeiro sorrir. -"O príncipe Albert está na cidade. Muito estranho o filho da rainha Vitória. Ele costuma passear por Whitechapel. Isso é estranho." Concluiu Aaron. Eles voltaram ao trabalho. Era noite de trinta e um de agosto. Alfred passou em frente a pensão. Aaron tinha ido embora. Ele viu quando Mary Ann entrou, acompanhada de um homem de cartola. Alfred foi para a barbearia. Ele saiu de manhã. As pessoas nervosas, comentando sobre um assassinato no bairro. -"Umas das garotas da pensão. Uma prostituta assassinada." Disse um dos transeuntes. Alfred viu os policiais passando. Ele ia seguiu. O corpo de uma mulher. -"Era Mary Ann Nichols." Disse um dos policiais. Alfred viu o corpo de longe. Soube que a moça teve a garganta cortada, os órgãos internos retirados. O rosto foi mutilado. O rapaz estava incrédulo e triste. Os jornais destacaram o crime. -"Uma testemunha disse ter visto a vítima conversando com um homem com um deerstalker, típico chapéu de caçadores ingleses. Mary Ann tinha saído a procura de clientes para pagar a pensão. Ela foi encontrada por volta de três e meia da madrugada." Comentou um policial com o dono de uma pensão. Alfred ouviu a conversa. Na barbearia, Alfred ouviu barulho no quarto do lado. -"Aaron ainda não chegou. Devem ser ratos." Alfred fechou a barbearia e foi até as docas. Dia oito de setembro. Outra mulher encontrada com a garganta cortada, em Whitechapel, as seis da manhã. Mutilada, os órgãos internos retirados. Os moradores do bairro assustados. A polícia investigando a morte de Annie Chapman. Uma prostituta que tinha saído atrás de clientes. -"Quem as matou foi a mesma pessoa e conhecia de anatomia. Um açougueiro, um médico talvez?" Disse um dos policiais, próximo a Alfred. Londres tinha um assassino em série? Um comitê de vigilância, formado por moradores, patrulhavam o bairro a noite. Procuravam o esquartejador, o assassino. Aaron chegou a barbearia. Jogou o deerstalker sobre a cadeira. -"Bom dia, irlandês. Temos dois clientes da realeza. Por favor, faça um chá." Alfred notou que Aaron estava mais quieto que o normal. Ele olhava para a rua. Estava incomodado com alguma coisa. Os jornais sensacionalistas mostravam cartas de supostos assassinos de Whitechapel. Londres tinha um serial killer. A polícia suspeitando de açougueiros. -"Ele assinou Jackie numa carta." Disse uma prostituta a Alfred, em frente a casa rosa. Dia trinta de setembro. Alfred estava sem sono. Decidiu andar pelo bairro. Era meia noite quando viu Simon no beco. -"Procurando uma rede, velho judeu?" O homem se virou. -"Irlandês!? Dia dez irei para o Brasil, sabia? Brasil. Vida nova e riqueza para Simon." Ele deixou o punhal cair. -"Sempre ande armado, irlandês. Roupas novas. Está trabalhando, meu jovem!?" Simon se afastou sem se despedir. Ele sumiu na escuridão da rua. Alfred viu Aaron saindo da barbearia e entrando numa carruagem. O jovem entrou para dormir. Um final de semana. De manhã, as pessoas nervosas. Os policiais. Os jornalistas. Duas mulheres encontradas mortas. -"Elizabeth Stride e Catherine Eddowes. Mortas entre uma hora e uma hora e quarenta e cinco da madrugada. Os mesmos requintes de crueldade dos crimes de Mary Ann e Annie Chapman." Ouviu Alfred de um policial. -"Sempre está por aqui, rapaz! Eu o vi na cena do crime de Mary Ann." Alfred foi algemado. Levado a delegacia com outros dez suspeitos, todos imigrantes. Alfred omitiu ter se encontrado com Simon na noite dos crimes do dia trinta. Omitiu o fato de ter visto Aaron também. O inspetor dissera que tudo indicava para um assassino canhoto. Lembrou que ambos, Simon e Aaron, eram canhotos e ágeis com tesouras e navalhas. Aaron mais habilidoso que Simon, embora o judeu tenha surrupiado a carteira com velocidade admirável. -"Dispense o senhor Alfred, guarda. Os peritos disseram que Jackie, o estripador é canhoto, pelas direções dos cortes nós corpos. Esse irlandês não é nosso assassino." Alfred ficou três dias preso. Ele encontrou a barbearia com a fechadura trocada. Foi até a casa de Aaron. -"O senhor Aaron está na Polônia. Não temos notícias dele." Disse o porteiro. Alfred se instalou num cortiço em Whitechapel. No dia nove de novembro a polícia encontrou o corpo de Mary Jane Kelly. O mesmo modus operandi de Jackie, o estripador. Os mesmos requintes de crueldade. Outra prostituta de Whitechapel. Eram cinco vítimas agora. A polícia e os jornais chamaram as cinco vítimas de As cinco canônicas. Alfred, dois dias depois, foi até a delegacia. Disse tudo sobre Simon e Aaron ao inspetor. O policial sorriu. -"Dizem as más línguas que o estripador é o príncipe Albert, meu rapaz. Temos quarenta suspeitos, inclusive escritores e pintores famosos. Vá para casa!" Alfred procurou por Simon. O judeu partira para o Brasil, como dissera. Alfred arrombou a porta da barbearia. O quarto de Aaron. Ele quebrou os cadeados. Uma cama, uma mesa e uma cadeira apenas. Tudo limpo. Nenhum sinal de que o estripador estivera ali. Alfred acampou em frente a casa de Aaron. Ele viu o rapaz sair de uma carruagem, elegante como sempre. Alfred tinha amigos e contatos no cais. Nenhum navio chegara da Polônia, nas últimas semanas. Logo, Aaron não tinha saído da Inglaterra. Alfred perguntou em todo o bairro e descobriu que Aaron tinha sido visto em Whitechapel. Ele conhecia bem as ruas e vielas do bairro. A Europa toda estava em polvorosa com as mortes brutais do serial killer de Londres. Alfred trabalhou muitos anos nas docas. Conheceu Jade, uma garçonete irlandesa. Eles se casaram em 1903. A barbearia de Aaron se transformou num bar. Outras seis mortes aterrorizaram a cidade mas não foram ligadas a Jackie, o estripador. Em 1919, Alfred quis visitar Aaron. Soube que o jovem polonês tinha sido internado num hospício, onde morreu. -"Para mim, Aaron e Jackie eram a mesma pessoa!" Disse a si mesmo o irlandês. A identidade do estripador nunca foi descoberta. As investigações continuam, mesmo após tanto tempo. O mistério continua. FIM