A MULHER QUEIMADA

Os espíritos têm o dom de se deixarem ver pelos vivos, por uma ou mais pessoas ou por nenhuma, assim como por outros espíritos. E isso não depende da evolução espiritual ou por serem “do bem”, depende do tempo em que permaneceram nessa condição, sem reencarnarem, experimentando e treinando seus dons. Por isso alguns espíritos podem mover objetos, tocar pessoas, e observar o que quiserem, sem que o vejam ou percebam sua presença. Naquele dia no ônibus, posicionei-me no banco logo atrás de onde estava sentada, junto à janela, a bonita morena, de origem colombiana. Do meu posto de observação, vi quando o homem com um furo de bala de revólver na testa, por onde um fio de sangue escorria, entrou na próxima parada, passou sem girar a roleta e sem pagar passagem, e sentou-se ao lado da moça. Ela não o viu, apenas teve a impressão de que alguma coisa roçou seu braço, pois passou a mão no ombro e deu um estremecimento de arrepio.

O ônibus circulava. Do lado de fora, uma aglomeração chamou sua atenção. Percebi que ela viu, de relance, um homem, todo ensangüentado, atrás do volante de um carro parado junto à calçada. Mais à frente embarcou outro passageiro.

– O que aconteceu ali? – indagou o motorista, sobre o acontecimento na estrada, ao jovem que acabara de entrar no ônibus.

– Um sujeito resistiu ao roubo de seu carro e levou um tiro bem no meio da testa – respondeu o rapaz.

A moça preparou-se para desembarcar. Levantou-se e passou através do corpo do homem, como se não houvesse ninguém ali, tocou a campainha e desceu no ponto seguinte.

Enquanto caminhava, uma lufada de vento trouxe uma folha de papel e colou-a em seu rosto. Foi assim que ela percebeu o ocorrido. Mas, na realidade o que aconteceu foi que o homem magro e alto, vestindo terno cinza e gravata, que caminhava a seu lado, sem que ela o visse, chapou em seu rosto o pedaço de papel, com a mão espalmada como se fosse uma leve bofetada. Ela pegou o papel e já o estava amassando para colocá-lo na lixeira mais próxima, quando percebeu nele uma frase escrita à mão, em letras grandes.

VOCÊ É A PRÓXIMA

Era evidente que aquilo não podia ter alguma coisa a ver com ela – foi o que, naturalmente, pensou – talvez se tratasse de um aviso dado a alguém que estivesse esperando para ser atendido em um posto de saúde, estabelecimento bancário, ou coisa parecida, e a pessoa que o recebeu, obviamente, o deixou cair. Não acreditou que o tivessem jogado no chão, pois naquela cidade, quando a polícia vê alguém jogar papel no chão, aplica-lhe uma multa. A moça acabou de amassar o papel e pôs na lixeira mais próxima.

* * *

O relógio marcava 3:25 quando ela chegou à recepção do consultório do doutor Henry James McCord, conceituado psicanalista de Los Angeles.

– Magali Vidal – anunciou-se para a recepcionista. – Estou marcada para três e trinta. – disse, enquanto se preparava para se sentar em uma das cadeiras da sala.

Sentou-se bem ao lado de uma mulher com um dos ombros e a metade do rosto queimados e a roupa chamuscada, apesar de todas as outras cadeiras estarem desocupadas.

Não permaneceu ali, sentada, mais do que cinco minutos, ao lado da estranha mulher que não a olhou nem um instante.

– Senhora Magali! – chamou, a recepcionista – A senhora pode entrar.

Qualquer pessoa que tivesse visto aquela mulher queimada esperando ali, sentada na sala de espera de um psicanalista e não em um posto de pronto-atendimento, teria estranhado, assim como Magali não ter reagido, de nenhuma forma, ao fato de ter sido chamada antes da mulher. Diante da atitude distanciada e despreocupada da recepcionista, era sinal de que nem ela nem a cliente recém-chegada estavam vendo aquela criatura.

Deitada no divã do consultório, a morena de cabelos pretos, ondulados e compridos até os ombros, confessou que à vezes sentia a presença de espíritos, mas não podia vê-los. Mas nem sempre podia ter certeza, pois pareciam se manifestar sempre de maneira diferente.

Quando criança, toda vez que estava executando alguma tarefa e coisas caiam, se quebravam e ela dizia: “Não fui eu”, ninguém acreditava. Como poderia não ter sido ela, se estava sozinha? Outra vez, quando subiu em uma árvore, caiu e quebrou um braço, ela afirmou que havia sido empurrada. Dessa vez não estava só. Mas, quando os amiguinhos foram acusados, ela os defendeu: “Não foram eles”. Mas, se não tinha sido nenhum deles, quem poderia tê-la empurrado? E ela era sempre acusada de negligente e desastrada.

Enquanto falava com os olhos fixos no teto do consultório, Magali pensou ter sentido uma respiração bem junto de sua boca. Ela não disse nada naquele momento para não parecer que estava inventando coisas para convencer o médico. Um homem de cabelos muito pretos, caindo sobre o rosto, estava sentado na beira do divã, ao seu lado, debruçado sobre ela, com o nariz quase tocando o dela. Nem ela nem o doutor Henry podiam vê-lo.

Com a pele meio escura, parecendo suja e oleosa, o homem baixou a cabeça na direção da mão direita da moça, que ela mantinha repousada sobre o peito, e passou a ponta da língua, de leve, quase sem tocá-la. Ela pareceu sentir uma coceirinha, e coçou as costas da mão.

Ao esgotar-se seu tempo, Magali levantou-se, pagou a consulta e saiu. Ao passar na recepção, despediu-se da atendente. A mulher queimada a seguiu. Entraram juntas no elevador. Sem saber que não estava sozinha, Magali começou a cantarolar alguma coisa, baixinho, enquanto olhava para os números dos andares que se acendiam no visor do elevador.

* * *

Na rua, a mulher a seguia, sempre um passo atrás. Magali parou diante da faixa de pedestres, esperando o sinal luminoso para atravessar a rua, e a mulher queimada parou bem atrás dela.

Quando se aproximava um caminhão em alta velocidade, a estranha mulher pôs as duas mãos nas costas de Magali e a empurrou com força, bem na frente do enorme veículo, que arrastou seu corpo por mais de vinte metros até conseguir parar. O sinal luminoso fechou para os carros. Poucas pessoas atravessaram a rua. A maioria dirigiu-se até à frente do caminhão para ver o acidente.

Eu não quis ir ver o corpo da moça atropelada. Devia estar em péssimas condições. Obviamente, não teria escapado com vida de um acidente tão horrível. Mas o que é um corpo? Praticamente nada. Apenas matéria perecível. O importante é o espírito, que continua existindo após a morte e, além de poder observar acontecimentos e acompanhar pessoas sem ser visto, pode também se vingar de alguém ou até matar, impunemente. Por que eu não impedi que isso acontecesse a Magali? Porque eu posso

“ver”, mas não “prever”. Prever é para os espíritos mais evoluídos, como os santos e os anjos. Mudar os acontecimentos, então, só Deus pode.

A mulher de rosto queimado desceu o meio-fio e começou a atravessar a rua, sem pressa, com seus olhos fixos em nada. Parecia apenas ter cumprido algum desígnio dos céus... de Deus... do Diabo... ou, simplesmente, da natureza – depende da crença de cada um. Eu, por exemplo, acho que foi apenas maldade feita por um espírito do mal. Os vivos não estão livres disso. De serem atacados por espíritos malignos, por pura satisfação pessoal do próprio espírito, acostumado a maldades durante sua vida terrena.

A mulher queimada caminhava sobre a faixa de pedestres, calmamente. Quem não tinha o dom de vê-la, passava através de seu corpo.