ELEUTÉRIO, O LOBISOMEM

No início dos anos 40, em um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, vivia um sujeito chamado Eleutério, que, segundo diziam, “virava” lobisomem, mas, até então, ninguém havia provado nada. Era um sujeito de poucas palavras, que trabalhava em uma granja, onde tinha um quarto para dormir.

Quatro jovens amigos (três rapazes e uma moça), voltavam de um espetáculo no circo recém-armado na cidade. Era noite de lua cheia, de quinta para sexta-feira, ocasião em que, segundo a crença popular, uma pessoa amaldiçoada, ou que padecesse do mal da licantropia, seria influenciada pela lua cheia a se transformar (ou se convencia estar transformada) em lobisomem. Era, portanto, uma noite típica, daquelas que, pela presença da enorme lua cheia pairando no ar, as pessoas, no mínimo, pensavam em coisas desse tipo, principalmente aquelas influenciadas por histórias de terror, com os monstros da distribuidora Universal Filmes, famosos na década anterior.

Estavam todos bem vestidos, pois esse era o costume. Os rapazes usavam ternos, e dois deles estavam de chapéu – Oswaldo, preferia exibir seus cabelos bem penteados e lustrosos, com boa brilhantina. A moça usava vestido e sapato baixo.

Alberto, o mais velho e mais brincalhão do grupo, propôs fazerem um teste, a fim de confirmar, ou não, o boato em relação a Eleutério virar ou não lobisomem. Iriam para a casa de Alcyr, o mais jovem do grupo, pois a casa dele tinha um quintal grande, e os pais haviam viajado, pendurariam, no varal de secar roupa, uma baeta vermelha – que era uma espécie de manta –, e ficariam esperando, olhando pela fresta da janela. Dizem que o lobisomem ataca quando vê a cor vermelha – disse Alberto. – Se existir mesmo algum lobisomem pelas redondezas – continuou –, e ele se sentir atraído pelo tecido vermelho e o rasgar com os dentes, provavelmente ficarão fiapos entre eles.

Assim sendo, eles poderiam, na manhã seguinte, verificar se Eleutério apresentava vestígios de fiapos vermelhos entre os dentes.

– Ele parece um sujeito educado – intercedeu Alcyr. – Não acredito que seja ele.

Hercília, a tímida representante do sexo feminino dentro do grupo, discordou, apresentando seu argumento:

– Tem um poema inglês que diz: “Even a man who is pure in heart and says his prayer by night, may become a wolf when the wolfbane blooms and the autumn moon is brigth”.

– E o quer dizer? – quis saber Oswaldo, o mais grandalhão, porém o mais jovem dos três rapazes. Hercília traduziu:

– “Mesmo o homem que é puro de coração e diz suas preces à noite, pode se tornar um lobo quando a mata-lobos floresce e a lua de outono brilha”.

– É, estamos em abril – concordou Oswaldo.

– Não é por eu ser do signo de Áries, mas o céu de abril é o mais bonito – gabou-se Alcyr.

– O que é “mata-lobos”? – perguntou Alberto.

– É o nome popular das flores de acônito, uma planta que, mal utilizada, pode ser venenosa, mas tem o poder de afastar o lobisomem, assim como o alho que, segundo dizem, pode repelir os vampiros – informou a moça.

– Onde você aprendeu tudo isso? – quis saber Alcyr.

– Está no filme “O Lobisomem”, com Lon Chaney Jr. – disse Hercília.

- Menina instruída! – ironizou Alberto. – Era uma nora assim que minha mãe queria. E continuou, brincando: – Para quem não viveu nem mesmo uma vida inteira, você é uma pessoa inteligente.

– Essa frase não é sua, é? – perguntou Hercília, com um olhar de descrença.

– Não. É do Conde Drácula – respondeu Alberto, mostrando os dentes, enquanto se aproximava do pescoço da moça, sendo recebido com um carinhoso “chega pra lá”. A julgar pelos olhares maliciosos, trocados pelos outros dois rapazes do grupo, havia uma paquera séria por trás daquela brincadeira.

– Eleutério toma café da manhã todos os dias no bar do Mefistófeles, na esquina da Rua Silva Pinto – lembrou Alberto, aproveitando para debochar do nome do dono do estabelecimento.

– O nome do “simpático” é Derlióstenes – corrigiu Hercília. – Mas todo mundo o conhece como Derly.

– Derlióstenes! – criticou Alberto. – Quem é que põe um nome desses em um filho?. Será possível que nesse bairro só tem gente de nome feio? Eleutério... Derlióstenes... Hercília... – brincou, não querendo encarar a amiga.

– É? Pois eu ouvi dizer que sua mãe tem o “lindo” nome de Hemerência – rebateu Hercília.

Todos riram, mas Alberto ficou calado, fingindo-se aborrecido.

– Nós só vamos ver fiapos vermelhos entre os dentes de Eleutério, se ele não limpar os dentes pela manhã – disse Oswaldo.

– E você acha que um sujeito igual a ele limpa bem os dentes? – perguntou Alberto, com ironia.

Mas quem teria uma manta vermelha que pudesse deixar destruir, se fosse caso?

Minha mãe tem uma – lembrou Hercília. – Podemos usar porque já está velha – completou.

– Quem? Sua mãe? – brincou Alberto. – A anta ou a manta? – completou, e, ao mesmo tempo, protegeu a cabeça com as mãos, pois já sabia que iria receber

(e recebeu mesmo) vários cascudos dos dois amigos, pelo abuso.

Todos riram, até mesmo Hercília, que não se ofendeu com a brincadeira. Eles formavam um grupo alegre e engraçado. Estavam sempre brincando e contando piadas. Eram muito unidos. Amigos de verdade.

Alberto morava sozinho em um quarto alugado. Tinha vindo da cidade de Itaperuna para trabalhar no Rio de Janeiro. Oswaldo morava com os pais, mas nem tentaria fazer uma bagunça daquelas em casa, pois os pais não deixariam.

Apesar de ter concordado com o plano e de fornecer a manta vermelha, Hercília não quis participar daquela aventura.

– Eu prefiro saber das notícias amanhã – disse a moça. Foram até a casa dela para deixá-la em segurança, pegaram a manta vermelha e foram os três para a casa de Alcyr, aquele que os pais tinham viajado, e onde podiam agir com mais liberdade.

* * *

Assim que chegaram na casa, foram logo pendurar o tecido vermelho no varal, pois já estava próximo de meia-noite.

– Acho melhor eu ir para a minha casa – disse o grandalhão Oswaldo, preocupado, passando a mão na testa para enxugar o suor que, em suas costas, já ensopava o paletó.

- Já é quase meia-noite. É perigoso você sair sozinho por aí – lembrou Alcyr.

– Quer que eu vá com você – perguntou Alberto. – Não – disse Oswaldo –, porque você vai ter que voltar mais tarde ainda. Eu moro perto e chego rapidinho em casa, à pé.

Dessa forma, os outros dois o deixaram ir. Alcyr e Alberto ficaram aguardando os acontecimentos. Devido à tensão em que estavam, parecia que os minutos não passavam. Quando Oswaldo saiu, o relógio marcava onze horas e cinqüenta e oito minutos. Deu meia-noite, e nada. O relógio marcava dois minutos depois de meia-noite, quando começaram a ouvir, ao longe, os latidos dos cães da redondeza, como se estivessem acossando algum animal. Os latidos foram se aproximando. Ficando mais e mais próximos.

Olhando pela fresta da janela entreaberta, com a lua cheia clareando bem todo o terreno, os dois puderam ver que um enorme animal quebrou algumas ripas da cerca e entrou acossado pelos cães. Era uma espécie de lobo enorme, andando apenas nas patas traseiras. Passou pela cerca como faria um humano: primeiro uma perna, depois a outra. Caminhava curvado. Era como se o monstro tivesse visto a colcha vermelha de longe, pois entrou e foi direto na direção dela, mas não fez isso apressadamente. Ia devagar. Às vezes se punha de quatro e caminhava como um cão ou lobo comum. Balançava a cabeça de um lado ao outro, olhando em volta. Nem sempre atacava os cães. Era como se não estivesse se importando muito com eles, que o perseguiam em alvoroço, pois eram pequenos demais para oferecer um perigo real. De vez em quando, dava um tapa em um deles e o jogava longe, como para provar sua força e superioridade.

- Eu estou todo arrepiado – disse Alcyr, tremendo de medo.

– Silêncio! – pediu o outro. – Ele pode perceber que estamos aqui.

À medida que o animal se aproximava, puderam vê-lo melhor. Era mesmo um lobisomem, enorme e peludo. Tinha o focinho sujo de sangue, possivelmente, de um dos cães. Não tinha patas, tinha mãos e pés, peludos e monstruosos como todo seu corpo. Uma espécie híbrida de homem e lobo, pois os ombros se salientavam como os de um atleta. Quando chegou em frente à manta vermelha, ergueu-se em duas pernas. Era do tamanho de um homem grande e forte, com mais de dois metros de altura, e devia pesar quase duzentos quilos. As mãos eram muito grandes e tinham dedos longos e unhas enormes. O bicho não tinha cauda – o que era mais uma característica humana.

Usando as garras e os afiados dentes, ele estraçalhou, com raiva, o tecido, como se aquela cor realmente o incomodasse. Em seguida, voltou a se colocar nas quatro patas e olhou na direção da janela onde os dois rapazes estavam. Deve ter percebido que estavam ali, olhando-o, e começou a vir na direção deles. Rapidamente os garotos fecharam a janela, e Alcyr começou a urinar nas calças. Ficaram encolhidos, um de cada lado da janela, com o ouvido encostado na madeira. Perceberam a respiração do bicho, fungando nas persianas da antiga, porém resistente, janela, farejando a presença deles.

– É melhor a gente não ficar aqui – sugeriu Alberto, já puxando o outro pela gola do paletó.

Não era bom ficar no quarto com aquele bicho ali fora, apesar da janela ser forte. Foram se afastando bem devagar para alcançar a porta. Como se tivesse percebido lá de fora, o movimento dos dois, o animal deu um rugido fortíssimo e atacou a janela com as garras. Arrebentou a pesada janela como se ela fosse feita de papelão ou isopor, e pulou para dentro, onde foi quebrando tudo. Os dois correram para fora do quarto e, rapidamente, fecharam a porta à chave. – Essa porta não vai agüentar – gritou Alberto, já correndo para fora da casa, e logo sendo acompanhado pelo amigo.

Se a janela, que era bem mais resistente, tinha sido destroçada, o que dizer da porta? Saíram para a rua correndo e foram bater na casa da amiga Hercília, que ficava a um quarteirão dali. A mãe da moça era uma mulher viúva e bastante acessível, pois abriu a porta e permitiu a entrada dos dois àquela hora da noite.

- Podem subir – chamou Hercília da porta de seu quarto, no alto de uma escadaria, no segundo andar da casa.

Os rapazes sentaram-se no chão e ficaram ali tremendo de medo. Contaram para ela o que aconteceu. Ela jogou para eles alguns travesseiros e cobertas e os dois ficaram ali mesmo, no chão. Alberto ainda conseguiu dormir um pouco, mas Alcyr, colocou apenas um travesseiro para proteger as costas e permaneceu sentado, acordado a noite toda. No dia seguinte, sexta-feira, todos tinham que ir para o serviço. Não ia ser fácil depois de uma noite daquelas.

* * *

Quando amanheceu, avisaram à amiga que iriam ao bar onde Eleutério sempre tomava seu café da manhã. Hercília era filha única. Uma moça tímida e muito calada, do tipo que fica vermelha com qualquer brincadeira. Era uma amiga de verdade, capaz de fazer tudo por eles, porém, mais uma vez, preferiu servir apenas de suporte para aquela empreitada.

– Sinto muito – disse a moça. – Eu não vou acompanhar vocês. – e completou: – Eu não gosto de entrar naquele bar.

Detesto aquele homem que trabalha lá, mas qualquer coisa que vocês precisarem de mim, eu estarei aqui. É só me procurar.

Os dois saíram quase correndo. Quando chegaram ao bar, Eleutério já estava lá, sentado, fazendo sua refeição. Era um homem magro alto, envelhecido, de pele ressecada e muito enrugada, meio acinzentada e sem vida. Parecia ser uma pessoa doente e aparentava ter uns cinqüenta anos, apesar de, segundo diziam, não passar dos quarenta. Seus olhos eram de um castanho tão claro, que se aproximavam do amarelo, o que lhe davam um ar de maldade por trás da aparência calma.

– Café com pão e manteiga – pediu Alberto, aproximando-se do balcão.

– O meu, com leite – preferiu Alcyr.

– Você já viu? – perguntou Alberto ao amigo – a roupa do sujeito está suja, e eu acho que é titica de galinha. – e continuou: – Segundo a lenda, a pessoa, antes de se transformar em lobisomem, tira toda a roupa do corpo e se esfrega em fezes de animais.

– Que maldição! – lamentou Alcyr.

Depois lembrou que o cara trabalhava na granja e devia dormir por lá mesmo, por isso, talvez estivesse sujo de fezes de galinha.

– A mulher dele deve ser uma delas – disse Alberto, de gozação.

– É, agora a gente ri, mas ontem à noite estávamos nos borrando de medo.

O problema agora era fazer Eleutério sorrir e mostrar os dentes, antes de terminar o café e sair.

Nenhum dos dois rapazes tinha relógio, e estavam perdendo a hora da condução para o trabalho.

– O senhor poderia me dizer que horas são? – perguntou Alberto ao dono do bar.

O homem era um tipo grandalhão, mal encarado e mal humorado, que parecia não gostar de responder a perguntas, e esta foi uma delas – deixou o jovem sem resposta. Também, pelo jeito, não gostava muito da presença deles. Depois de colocar no balcão, as xícaras com o café e os pães, sem nenhuma gentileza, o dono do bar virou as costas e foi lavar uns copos. Era um sujeito moreno, de traços feios e abrutalhados. Tinha uma vasta cabeleira preta e lisa, com costeletas que terminavam abaixo da orelha.

– Sujeitinho antipático! – criticou Alberto, entre os dentes, sem deixar o homem ouvir.

Alcyr pensou em realizarem uma encenação para ver se Eleutério ria e mostrava os dentes. E combinou umas coisas, falando ao ouvido do amigo. Com tudo acertado, os dois pegaram seus lanches e se deslocaram do balcão para uma das mesas. Nesse momento, Alberto fingiu tropeçar em uma cadeira no caminho e caiu, de frente, jogando tudo longe: xícara, pires e o pão com manteiga. Na queda, derrubou também a cadeira, fazendo um estardalhaço. Soltou um palavrão, enquanto se esparramava no chão.

Terá sido isso mesmo que combinaram? Foi tudo tão natural, que não pareceu de propósito. Acabou sendo mesmo engraçado.

Eleutério, que era um homem muito sério, deu uma gargalhada, mostrando bem os grandes dentes amarelos. Mas, para surpresa da dupla, não havia nenhum fiapo de tecido vermelho entre eles.

Os dois rapazes levantaram as cadeiras, sentaram-se e ficaram em silêncio por alguns momentos, refletindo. Será que Eleutério se preocuparia em retirar os fiapos de tecido dos dentes, depois de voltar ao seu estado normal? Ou será que tudo isso é folclore, e bicho nenhum, que rasgasse um tecido com os dentes, ficaria com fiapos visíveis entre eles? Será que o lobisomem que muita gente dizia ter visto nas redondezas, e que eles dois confirmaram na noite anterior, que realmente existia, não era o Eleutério, como todos pensavam? E, se não era ele, alguém tinha que ser, e era alguém que morava perto, pois chegou até a casa de Alcyr em cinco minutos, considerando-se que a transformação tenha ocorrido à meia-noite, de acordo com o que reza a lenda.

Aproveitaram o momento para dar uma olhadela nas unhas do suspeito. Eram unhas sujas, pareciam duras e calcificadas, mas não eram muito longas. Chegaram à conclusão de que isso era o de menos importância, já que toda a aparência física ficava alterada durante o processo de transformação.

De repente, como se algum botão imaginário ligasse os dois ao mesmo tempo, um só pensamento lhes veio à mente: a imagem do amigo suando a ponto de ensopar as costas do paletó, e querendo correr para casa. Começaram a conversar em cochichos.

– Será que é o Oswaldo? – sugeriu Alcyr – Será que ele fingiu que estava com medo só pra ir embora e esconder sua condição? Ou será que ele nem sabia que isso acontecia com ele? – concluiu.

– Dizem que isso é, às vezes, uma coisa inconsciente – reforçou Alberto. – A pessoa pensa que teve um pesadelo e saiu andando feito sonâmbulo. Quando volta a si, acha que simplesmente acordou nu, na rua.

Pagaram a conta, que incluiu um valor a mais pela louça quebrada e foram na direção da casa do amigo. Já estavam atrasados para o trabalho, mas isso agora já não tinha mais importância.

* * *

Ao contornarem a esquina, avistaram um aglomerado de pessoas em volta de um corpo caído na estrada, com o rosto e o tórax cobertos por uma folha de jornal. Chegando mais perto, perceberam que era um homem, deitado de costas em uma poça de sangue. Pelos sapatos e as roupas, sentiram que conheciam aquela pessoa.

– Ah! Não. Não pode ser – disse Alcyr, pondo a mão na cabeça, já calculando de quem se tratava.

Alberto abaixou-se e levantou a ponta do jornal que cobria o rosto do homem e viu que se tratava do amigo. O lado esquerdo de seu pescoço estava dilacerado e faltando um grande pedaço.

– Deve ter sido atropelado de madrugada – disse uma senhora.

– Considerando a hora que Oswaldo saiu de perto de nós, não haveria tempo suficiente para o lobisomem tê-lo atacado neste ponto, que fica a uns cinco minutos da sua casa – disse Alberto em voz baixa, junto ao ouvido do amigo –, e depois chegar ao terreno na hora em que chegou – concluiu.

Se alguma força sobrenatural, mágica, misteriosa, extraterrestre ou o que quer que fosse, pudesse recuar o tempo, apenas alguns minutos, até o momento da falsa queda, e os dois amigos, ao invés de ficarem atentos aos dentes de Eleutério, resolvessem, dessa vez, olhar para o rosto feioso do dono do bar, que, apesar de estar de costas lavando os pratos, voltou-se para olhar o ocorrido e soltou uma gargalhada debochada – de quem sabia que pagariam o que quebraram – teriam percebido, até bem visíveis, entre seus grandes dentes pontiagudos, os esperados fiapos de tecido vermelho.

Talvez tivessem uma segunda chance também para perceber que, naquele exato momento, um cão, com sua grande sensibilidade auditiva, uivou nas redondezas do bar, mas seu uivo ficou parcialmente encoberto pelo barulho da louça quebrando, os risos e o palavrão soltado na hora da falsa queda.

Assim que os rapazes saíram do bar, Eleutério e Derlióstenes se olharam. O segundo tirou do bolso um pedaço do tal tecido vermelho e ergueu com as duas mãos, como se fosse um troféu. Em seguida, os dois deram boas gargalhadas.

Em uma pequena elevação, do outro lado do bairro, dois cães, com sua enorme sensibilidade auditiva, soltaram uivos melancólicos. Estariam reconhecendo sua inferioridade hierárquica em relação àqueles dois seres situados em algum ponto privilegiado na evolução da raça? Estariam tentando se comunicar à distância para localizar e reunir outros membros do grupo? Mas eles também uivam quando percebem a presença de alguma fêmea no cio na área.

* * *

Noite escura. Uma mulher, vestindo um casaco preto e longo, caminha rápido pela calçada da rua deserta e mal iluminada. Seus sapatos de salto, produzem um “toc-toc” que ecoa na noite silenciosa. Ela aperta o passo. Seus olhos, instintivamente, encontram a lua-cheia. A mulher cambaleia e se apóia, com a mão direita, em um poste de luz. Sua mão, branca e bonita, com longas unhas pintadas de vermelho vivo, começa a demonstrar a metamorfose que se processa em seu corpo. Pêlos escuros surgem nas costas da mão e sobre os dedos. Suas unhas vão se transformando em garras afiadas.

A mulher recolhe a mão, rapidamente, retoma o equilíbrio e corre sem rumo, perdendo-se na noite.