LUZES NO POÇO

– Quando você puser dinheiro em casa, eu deixo você exigir uma roupa específica pra eu lavar e passar – disse Alzira ao marido – Por enquanto, você vai vestir a que tem. Eu não sou sua empregada – concluiu, saindo pela porta da cozinha, que dava para os fundos do quintal, com uma chaleira na mão para pegar água no poço, que ficava, mais ou menos, a dez metros da casa.

Já passava de meia-noite quando ela pendurou a chaleira na torneirinha, por onde saia um fio de água sem muita força, e ficou esperando, com as mãos na cintura, batucando com o pé no chão como se acompanhasse o ritmo de uma música imaginária. Era pura tensão pela discussão com o marido. A noite estava silenciosa. O poço não era do tipo artesiano. Era rústico, tinha um anel de cimento e uma carretilha com corda e balde, com a opção de se pegar água em pequenas quantidades em uma torneirinha fixada em um cano que ia até o fundo. A água dali, que subia pelo cano por uma bombinha manual, tocada à manivela, não servia para beber nem para cozinhar. Podia-se até tomar banho com ela, se quisesse, mas o cheiro não era bom. Aquela parte da cidade de Rio das Ostras tinha sido um mangue que foi aterrado para loteamento, por isso a água só servia mesmo para molhar as plantas. Como ainda não havia água encanada naquele local, era preciso encomendar um caminhão pipa de vez em quando para encher a cisterna, e bombear para a caixa d’água, pelo menos para cozinhar e tomar banho. Beber mesmo, só água mineral. A água, na pequena chaleira, era para umedecer a roupa que ela estava passando à ferro.

– E pode parar de resmungar, que eu já peguei uma camisa qualquer – gritou o marido, chegando até a porta da cozinha.

Ao perceber que os resmungos, que ela também estava ouvindo, não eram do marido, Alzira apavorou-se. – Ah! Não é você, Florêncio? – gritou ela, puxando a chaleira, com tanta força, que quase arrancou a torneira do lugar.

Correu para dentro de casa e entrou esbaforida, fechando, depressa, a porta.

– Eu não disse pra você – falou balançando o dedo indicador na direção dele – que aquelas duas luzes que eu vi, circulando em volta das bananeiras, e que foram morrer dentro do poço, era assombração? Eles estavam conversando dentro do poço – completou assustada. – Que assombração nada! – disse o homem, irônico – Naturalmente, eram vaga-lumes.

– Vaga-lume pisca, seu imbecil! Aquelas luzes não piscavam – a mulher estava muito nervosa. – E quem você acha que estava resmungando? – perguntou ao marido. – E eu lá quero saber! Talvez, alguém passando na rua.

* * *

Na noite seguinte, após o jantar puseram duas cadeiras na varanda dos fundos da casa, e foram se sentar. A noite estava quente e, naquela parte do quintal sempre corria uma brisa.

De repente, viram uma luzinha passando entre as árvores.

– Olha lá – disse Alzira chamando a atenção do marido.

– É um vaga-lume. Está piscando.

Ela concordou e continuaram olhando. Daí a pouco, mais duas pequenas luzes pareciam brincar entre as folhas das árvores. Ficaram observando e perceberam que não piscavam. As luzes passearam por entre as folhas das bananeiras, fizeram um giro mais aberto e mergulharam no escuro do poço.

– Acredita em mim agora? – perguntou Alzira.

– Por que você deixou o poço aberto? – respondeu Florêncio com outra pergunta.

– Para que você visse.

– Se ventar ou chover, vai sujar a água.

– Eu agora estou preocupada é em saber que luzes são essas.

Alzira começou a sentir frio e esfregou os braços.

– Vamos entrar que eu estou com medo – disse, puxando o marido pelo braço.

– Vou fechar a tampa do poço.

Florêncio e Alzira já passavam da meia idade e não tinham filhos. Compraram aquela casa com algum dinheiro que haviam economizado, juntando o que ela ganhava, costurando para fora, com o que o marido conseguia, consertando rádios em casa. Depois de se instalarem na nova residência, ele organizou sua pequena oficina em um canto da sala, onde havia uma janela que dava para a lateral da casa. Por aquela janela ele atendia as pessoas e recebia as encomendas de serviço. Separou sua oficina do interior da casa com uma parede de madeira, construída por ele, e colocou uma porta que abria para dentro da sala. Ali ele passava o dia consertando velhos sintonizadores, tocadiscos e antigos gravadores de fita magnética. Alguns que ele mesmo sabia que nunca viriam buscar. Esse era também o seu passatempo. Sempre trabalhou sozinho, sem ajudantes. Na época áurea do rádio, chegou a juntar dinheiro, mas, com a chegada da televisão ao Brasil, as pessoas foram perdendo o interesse pelo rádio. Alzira costurava para fora e era, no momento, quem tinha mais serviços e recebia por eles. Era ela quem, praticamente, passou a manter a casa. Ela falava aquelas coisas para o marido, do tipo: “quando você puser dinheiro em casa, você pode exigir”, mas reconhecia que ele, durante um bom tempo arcou com tudo sozinho e ainda conseguiu juntar dinheiro para ajudar na compra da casa.

Estavam morando ali há menos de um mês e ainda não conheciam bem os vizinhos, mas resolveram sondar, pelas redondezas, para ver se alguém sabia dizer alguma coisa sobre os antigos moradores. Ficaram sabendo que naquela casa morou um homem com sua esposa, porém, a última vez que ele foi visto, parecia estar deixando a casa. Depois, uma empresa de mudanças veio retirar os móveis. Achavam que a mulher o tinha abandonado, por não agüentar sua agressividade e violência. Parecia que batia nela, pois ouviam as brigas, com muito barulho, coisas quebrando e ela chorando. Não ficaram ali muito tempo nem fizeram amizade com nenhum vizinho. Ninguém sabia nem o nome deles. Alzira e Florêncio pediram informação sobre a aparência dos dois e souberam que a mulher era uma loura bonita e bem feita de corpo e que o marido era alto, forte, calvo e tinha bigode e cavanhaque, o que não era muita coisa.

* * *

Certa tarde, minutos antes das dezoito horas, alguém bateu palmas no portão. Alzira foi atender. Era uma moça humilde, mas muito bonita, morena, de cabelos lisos e compridos até abaixo dos ombros. Parecia uma índia. Vestia um vestido pobre e sapatos baixos, bem usados.

– Meu nome é Jurema – identificou-se a moça. – Eu soube que vocês estiveram buscando informações a respeito do casal que morou aqui, e gostaria de conversar com vocês.

Alzira pediu para ela entrar. Sentaram–se no sofá da sala, uma ao lado da outra. Florêncio, atraído pela voz da esposa, chegou até à porta da oficina, tirou os óculos, olhou rapidamente, balançou a cabeça em tom de reprovação e voltou ao trabalho. Sua mulher estava de costas e não o viu. – Você toma um café? – perguntou a dona da casa. – Já está pronto.

– Não, obrigada. Eu não tomo café. – agradeceu a jovem, timidamente. – Eu tenho gastrite.

Diante disso, Alzira descansou as mãos cruzadas sobre os joelhos e se preparou para ouvir o que a moça tinha a dizer.

– A última vez que vi meu irmão, ele me disse que iria se afastar por uns tempos – disse Jurema. – Que eu não o procurasse. Depois ele entraria em contato.

Alzira ouvia com atenção, sem saber bem quem era o irmão da moça. Achou que fosse o ex-dono da casa. – Ele era amigo de Waltércio, o ex-dono dessa casa, mas parece que estava se envolvendo com Helena, a mulher dele.

A dona da casa começava a entender a história, e ouvia em silêncio, sem querer interromper.

– Nélio é meu irmão mais novo e eu me preocupo muito com ele. É um bom rapaz. Terminou o curso de teatro, tem uma carreira promissora pela frente e eu tenho medo que ele esteja se envolvendo com pessoas de má índole, o que pode estragar a vida dele. Tudo isso – continuou a moça. – aconteceu há três meses, e eu estou ficando preocupada com ele.

– O que soubemos foi que esse tal Waltércio mudou-se, quando a esposa já o tinha abandonado. – contou Alzira. – Eu vou deixar meu telefone para o caso de vocês terem alguma notícia do meu irmão.

Alzira foi pegar um papel e uma caneta. Quando tentou entregar para a moça anotar o número, ela começou a ditar para Alzira escrever. Em seguida se despediu e saiu. Alzira acompanhou-a até o portão.

Quando voltou, Alzira entrou na oficina do marido para comentar o fato.

– Você viu essa moça? Ela conhece os antigos moradores daqui.

– Eu pensei que você estava falando sozinha. Você tem mania disso.

– Ah! Então não quero mais conversa.

* * *

Na noite do dia seguinte à visita de Helena, o casal foi despertado por um barulho muito forte dentro da casa. Levantaram-se e foram verificar o que era. Quando entraram na cozinha, viram a porta que dava para a varanda dos fundos, arrombada e, na frente da porta, estava um homem alto e forte com uma marreta em uma das mãos e uma bolsa à tiracolo. Ele tinha as características do ex-dono daquela casa, conforme os vizinhos informaram: era alto, forte, calvo, tinha bigode e cavanhaque.

O sujeito tirou um revólver do bolso do casaco e subjugou o casal, amarrando os dois em duas cadeiras, uma de costas para a outra, com uma corda que trazia na bolsa. Pegou também uma larga fita adesiva e os amordaçou. Depois, puxou uma cadeira e sentou-se, olhando para os dois.

– Vocês estão fuxicando por aí, metendo o nariz onde não foram chamados, não é? – perguntou o grandalhão. – Mas eu vou satisfazer a curiosidade de vocês. Sabem por quê? Porque vocês vão ter o mesmo fim que eles tiveram.

Mas, antes, eu quero contar uma história de amor.

O homem se levantou e fechou a porta da cozinha que ele havia arrombado com a marreta. A porta não tinha mais fechadura, mas ficou encostada no portal. Voltou a sentarse diante do casal. Amordaçados, olhavam para o homem, assustados. Pareciam querer falar com os olhos, enquanto tentavam, disfarçadamente, soltar a corda dos pulsos. Contou que, há cinco meses atrás, Helena conheceu um sujeito chamado Nélio, na empresa de transportes onde trabalhava e começaram a se encontrar em motéis, durante o horário de expediente. O rapaz não era empregado da empresa, era apenas um vendedor de peças para caminhões. Helena já estava sendo ameaçada de demissão por tantos afastamentos do trabalho. Ela e seu amante, Nélio, armaram um plano para fugirem juntos. Combinaram de ir, no carro dela, até sua casa para que ela arrumasse as malas, enquanto o marido estivesse no trabalho.

– Porém eu já estava desconfiado, e voltei para casa na hora. Matei os dois e joguei os corpos no poço do fundo do quintal e saí de casa como se estivesse abandonando minha esposa.

O homem contava tudo com extrema naturalidade. – Gostaram da minha versão? – perguntou o homem. – Vocês não gostariam de conhecer a versão do amante? Claro que sim – ele mesmo respondeu. – então ouçam. Nélio e Waltércio participaram de um roubo de 100 milhões de Reais, porém Waltércio fugiu com todo o dinheiro. Alugou essa casa em Rio das Ostras, onde escondeu o dinheiro, e arranjou um emprego perto de casa. – Helena não sabia de nada e nem conhecia Nélio, mas Nélio a conhecia. Já a tinha visto na companhia de Waltércio. Encontrou-a, casualmente, em São Paulo visitando parentes. – enquanto dizia isso, o bandido tirou os sapatos, que tinham uma sola tipo plataforma, que o deixava, mais ou menos, dez centímetros mais alto.

– Seguiu-a até seu local de trabalho, apresentou-se como fornecedor de peças para veículos e passaram a sair juntos. – ao dizer isso, retirou dois enchimentos de dentro do casaco que o deixavam bem mais corpulento.

– Depois de alguns encontros, convenceu-a de que estava apaixonado por ela, e combinaram a fuga.

Com as unhas na testa, o bandido retirou a careca postiça. A partir daí, passou a contar a história na primeira pessoa.

– Ao chegar em casa com ela, forcei-a a chamar o marido – disse, enquanto descolava do rosto o bigode e o cavanhaque. – Quando ele chegou, eu amarrei os dois assim como vocês estão, obriguei-o a dizer onde estava o dinheiro, se não eu matava Helena. Depois, amordacei-os e os matei com marretadas na cabeça. Prendi um ao outro pelos tornozelos e os arrastei até o poço, jogando-os lá dentro. Limpei o sangue do chão, peguei a sacola com o dinheiro, que estava escondida sob o as tábuas do piso da sala, coloquei o disfarce e saí, no carro de Waltércio.

O carro de Helena, que ficara estacionado na garagem da casa, uma noite Nélio o levou, para parecer que havia sido roubado e não despertar suspeitas dos vizinhos.

– Agora eu vou ter que matar vocês também, porque eu detesto gente enxerida.

Florêncio e Alzira tentavam, desesperadamente, se livrar das cordas.

Àquela hora já passava de meia-noite. Começaram a ouvir o barulho de uma corrente sendo arrastada no quintal, intermitentemente. Apesar de estar amordaçado, o casal contorcia-se, fazendo ranger as cadeiras. Nélio pediu silêncio. O som foi se aproximando da varanda dos fundos da casa.

Ao atingir o piso de madeira da varanda, o arrastar da corrente passou a ser acompanhado de duas pancadas surdas, quase simultâneas, como duas pisadas fortes de pés descalços nas tábuas. Aquilo aconteceu mais três ou quatro vezes, de forma compassada e lenta, até parar diante da porta da cozinha. Houve uma pausa de cinco segundos mais ou menos. Em seguida, ouviram-se quatro batidas na porta, que se repetiram após mais um período de silêncio. Nélio começou a ficar apavorado e quebrou a lâmpada da cozinha com o cabo da marreta, deixando o cômodo em total escuridão.

A porta da cozinha foi-se abrindo, lentamente. Dois vultos, iluminados apenas pelas costas, pela luz da lua, estavam ali de pé, com uma corrente unindo os dois, presa por duas braçadeiras, uma no tornozelo de cada um. Um, era o vulto de um homem; o outro, de uma mulher. As roupas esfarrapadas, estavam em tiras.

Nélio encostou-se na parede oposta à porta, com a mão no peito, como se estivesse sofrendo um enfarte, deixando cair no chão a corrente, que já havia retirado da sacola para prender os pés de Alzira e Florêncio. Pegou o revólver e atirou uma, duas... cinco vezes, até esvaziar o tambor. As balas atingiam os dois corpos sem nenhum efeito. Continuou a acionar o gatilho, desesperadamente, sem munição. Pegou uma lanterna e iluminou o casal recémchegado. Eram dois corpos descarnados, com pedaços de tecido apodrecido, em algumas partes do corpo; e apenas pedaços de pele dependurados, em outras. Os cabelos eram poucos, apenas alguns fios sobre os ossos, parcialmente expostos, do crânio. Não tinham lábios e muito pouco tecido nas faces. Seus rostos estampavam um permanente sorriso fúnebre, com todos os dentes à mostra.

A dupla macabra entrou devagar, arrastando sua corrente pelo piso de cerâmica da cozinha. Cada um pegou em um dos tornozelos de Nélio e o arrastaram, lentamente, para fora.

O homem não reagia. Seu coração já não lhe permitia. Havia perdido as forças. Depois de alguns segundos, Florêncio e Alzira ouviram da cozinha um grito horrível e o baque do corpo na água do poço.

O casal levou um susto enorme ao ser despertado por dois vultos batendo em seus ombros na cozinha escura. Ainda era noite. Tinham adormecido ali, sentados. Chagaram a pensar que os mortos haviam voltado, mas eram dois policiais, chamados pelos vizinhos após ouvirem os tiros e os gritos.

Já era dia quando a equipe do Corpo de Bombeiros começou a retirada dos corpos do fundo do poço. Os policiais conversavam com alguns vizinhos, colhendo informações.

Alzira enfiou a mão no bolso do avental e encontrou o papel com o telefone de Jurema.

– Eu vou ligar para aquela moça que esteve aqui anteontem – disse a mulher, entrando na casa.

O marido foi atrás dela, com vontade de impedi-la, mas parou na porta da cozinha e ficou olhando e ouvindo.

– Alô! Jurema? – perguntou Alzira, ao telefone.

– Quem está falando? – atendeu uma voz, do outro lado.

– Aqui é Alzira. Você deixou um número de telefone e pediu que ligasse, caso tivesse notícias de seu irmão.

– Aqui não é a Jurema. Quando foi isso?

– Anteontem, à tarde.

– Impossível, senhora. Jurema morreu há dois anos, de câncer no estômago.