O Tripulante Desconhecido (CLTS14)
[Conto vencedor da 14ª edição do Concurso Literário de Terror e Suspense do Recanto das Letras]
Se teus princípios te deixam triste, podes estar certo de que estão errados.
(Robert Louis Stevenson)
Quando os seres humanos embarcam em suas naves rumo a destinos nas estrelas, acreditam estar levando apenas sua ciência e seus sonhos. Mas a luz que portam, não é maior que as trevas das quais fogem. E a mente que sonha, também tem pesadelos.
Roddy. Era dessa maneira que a tripulação da Orpheus chamava Rodolfo Silva, o único astronauta brasileiro da tripulação. Um homem singular. Desde muito cedo revelara uma habilidade matemática extraordinária. Aos dezessete passara para o Instituto Tecnológico da Aeronáutica e, em poucos anos, do ITA à NASA, como promissor engenheiro aeroespacial.
Mas essa história começa um pouco antes desses momentos gloriosos.
Amazônia, trinta e dois anos antes de Silva embarcar como astronauta na Orpheus. Um garoto de catorze anos, olhos vivazes e traços delicados está em uma canoa com seu avô nas águas de um estreito igarapé. O velho rosado, de postura altiva e barba hirsuta se orgulhava da inteligência brilhante do neto, mas queria ensiná-lo algo mais. É inteligente sim, mas é muito frágil, precisa tornar-se forte”. Horas antes ele punira o neto com bofetadas e agora metralhava palavras terríveis porque o garoto era um caçador medíocre.
Horas depois, se afogando nas águas tóxicas daquelas palavras, o menino percebeu alguma coisa no igarapé. “Não olhe”, algo lhe sussurrou na consciência, mas ele ignorou. E ao olhar, um movimento incomum veio crescendo das profundezas para a superfície até que por fim, emergiu.
O grito aterrorizado podia ser ouvido por quilômetros de floresta e o que ele viu nas águas daquele igarapé seria rejeitado por sua memória pelo resto da vida. Daquele dia se lembraria apenas da expressão de horror do avô tombando na água, o sangue se misturando às águas barrentas do igarapé, o olhar do velho desaparecendo nas profundezas.
Rodolfo fugiria às pressas daquela mata, numa fuga desesperada que nunca mais pararia. Dali ao ITA, depois à NASA e, por fim, ao espaço, onde ironicamente seria muito mais fácil a coisa encontrar novamente o homem.
***
Três décadas depois Rodolfo era uma das mentes brilhantes a bordo da “Orpheus”, um projeto ambicioso de uma iniciativa transnacional com o objetivo de levar humanos a Europa, satélite de Júpiter, onde dezenas de sondas comprovaram extensivamente a existência de um imenso oceano congelado. Europa era sem dúvida lugar melhor para a humanidade depois que a pouca água de Marte provou ser o planeta vermelho um mundo bem mais desafiador.
“Um brasileiro indo para Europa”, Roddy ria quando pensava que este fora o sonho da maioria dos seus ancestrais nos últimos seis séculos. Mas a Europa para onde Roddy rumava era outra. Lá, o colonizador seria ele.
Quando a missão partiu, o mundo inteiro parou para assistir. No Brasil foi feriado, houve discurso presidencial exaltando “Um herói levando nossa bandeira ao espaço”.
Ele contava quarenta e seis anos de idade e nenhum relacionamento duradouro. Sem filhos, sem amigos. Enquanto os olhos perdiam-se no degradé do azul ao preto, enquanto a Orpheus deixava para trás a atmosfera terrestre, a mente pensava nos inúmeros sacrifícios necessários para uma pessoa sair da Amazônia ao espaço.
Um dia, porém, quando acabavam de deixar para trás a face prateada da Lua, tudo mudou.
- Roddy, cheque o Suporte à Vida – dizia o comandante.
Ele checou todos os itens. As respostas prontas, porém, estancaram em silêncio quando ele se deparou com algo que deveria estar lá, mas não estava. A voz desceu uma ladeira de silêncio em direção a um mutismo preocupado que fez o homem arregalar os olhos e acelerar o coração. Alguns números não batiam e algo estava mortalmente errado: o cálculo de trajetória. Eles nunca chegariam a Europa.
A base em Houston cometera um erro catastrófico. Com objetivo de evitar ao máximo os incontáveis asteroides entre Marte e Júpiter, estabeleceram uma trajetória que passaria ao largo do destino pretendido. Eles se extraviariam no espaço e em algum momento, os suprimentos acabariam. E depois... o inferno.
Roddy nada revelou de sua descoberta, preferiu certificar-se e ser previdente. Emitiu um pedido de socorro à Terra, mas infelizmente o vento solar causou interferência na resposta. A paz do homem se foi.
***
Quando Ceres e seus milhares de asteroides despontassem do lado de fora da Orpheus tudo pareceria assustador. Haveria morte passando bem perto dos olhos deles, mas Houston calculara bem e as imensas rochas não passariam de gigantes mansos pastando nas estrelas, apascentados pela matemática.
Como uma fuga para uma existência insípida e um futuro terrível, Roddy deixou-se apaixonar pela doce voz da Doutora Persy, que diariamente monitorava o ritmo crescentemente desregulado dos batimentos do homem. E ela não demorou a descobrir que também o amava. Era, porém, uma mulher comprometida com sua liberdade. E Roddy não lidou muito bem quando sua conquista espacial agora passava às mãos de outro conquistador, um francês delicado, de sorriso fácil.(“que nem parece homem”, dizia uma voz rouca na mente do astronauta)
“Sou um homem moderno”, dizia a universidade em sua cabeça.
Mas...
Vai mesmo perder pra este marica falando francês? – dizia a voz de alguém, bem mais velho, bem mais antigo... profundo e escuro, como fundo de igarapé. Concentrou-se nos afazeres. Amando Persy, odiando o francês.
Tinha pesadelos frequentes. Num deles, era Roddy quem descia para as profundezas do igarapé, puxado pela coisa que veio do fundo. Seu avô lhe estendia uma pesada chave de metal, daquelas que se usa para reparos na nave. Ele agarrava a ferramenta e voltava para o barco. Mas o movimento brusco fazia o avô cair na água e outra vez ele revivia com aquela terrível lembrança. Acordou suando frio, sentindo o corpo flutuar como se o sistema de gravidade artificial fraquejasse por alguns segundos.
Achou aquilo estranho e foi até a sala de comando checar. O comandante e o engenheiro chinês dormiam profundamente lá. Tudo parecia bem.
Toda a tripulação dormia. Um pressentimento sombrio, porém, lhe dizia não ser ele o único andando acordado por aqueles corredores. A porta que levava à cozinha fora esquecida aberta e ele teve a impressão de ver alguma coisa se mover lá dentro. Com o coração batendo forte e a testa suando descontroladamente, foi até lá e acendeu a luz.
Nada. Estava sozinho.
A calma do homem era uma estrutura lentamente sendo minada pela água barrenta de um igarapé. E o renomado Doutor Silva começou a falhar em suas atribuições.
- Silva, estou perdendo a paciência com você. Terceira vez que você deixa passar irregularidades nos sistemas de suporte. Droga, Silva! Quer matar a gente? Bota a cabeça no lugar ou vou tirar você daí e despejá-lo de volta à Terra como um pacote de merda.
A partir dali os sorrisos do astronauta desapareceram de seu rosto como água sugada por solo seco. Não mais falava. O homem ressentido mergulhou de vez no seu drama. Eles tão rindo de você, esses gringos, dizia a voz do avô na mente. É claro que isto ia acontecer, você entende de espaço mas não sabe nada de mulher... perdeu pra bicha francesa... que vergonha!
Porém...
Dia após dia lá estava a voz do avô, o homem firme, necessário para tempos de incerteza.
Vá em frente, você consegue... você é um homem, fique firme.
Mas o velho nos pensamentos não era o único visitando Roddy.
Enquanto suava compulsivamente revisando os cálculos de trajetória, torcendo para estar errado, ele outra vez sentiu-se observado e teve a certeza de algo muito estranho ter fugido da vista dele. Do outro lado do vidro da cabine, Fobos, lua de Marte, com sua face deformada olhava para ele. Roddy sentiu algo de muito ruim ali, uma presença estranha dentro da nave. O homem engoliu seco, ouviu os passos. Não olhou para trás. A presença, contudo, esgueirou-se e voltou a se esconder quando a voz do francês chegou cantarolante puxando conversa.
Semanas depois o capitão começava a desconfiar de algo. Solicitava com frequência os cálculos de navegação e cada dia parecia estar mais próximo da verdade. Suprimentos começavam a escassear.
Meses se passaram. Marte e a Terra agora eram pontinhos luminosos deixados para trás, um vermelho, o outro azul. Júpiter já podia ser visto como uma pequena esfera contando uma história mentirosa de que os aguardava em breve. Secretamente Roddy pedia socorro.Ao avô.
Eles sempre acharam que brasileiro era só futebol e carnaval, daí você apareceu. Você é mais aberração que alienígena pra esses caras. Aquela americana feminista te trocou por aquele francês bicha. Você perdeu, guri.Você fracassou.Eles te desprezam. Te querem lá fora... despejado como “pacote de merda”, um pacote de merda enrolado num pano verde e amarelo.
- CHEGA! – gritou em português.
E ouviu algo. Uma coisa feita de sombras se esgueirou como um vulto, e ele teve a certeza de ver algo muito diferente de humano passando no final do corredor. Tomado pelo impulso de sobrevivência e a determinação do homem forte, Roddy lançou-se naquele corredor gritando para todos SALVEM-SE! E buscou um lugar onde pudesse se esconder até pensar em alguma coisa.
Lembrou-se do avô. Dessa vez não de sua voz. Mas de sua morte.
***
A primeira porta que viu foi a da sala de equipamentos. A autopreservação o fez enxergar uma chave de metal do tamanho de um braço. Lembrava-se daquela chave, de algum lugar.
(Sobreviva!)
Trancou-se na sala de equipamentos, se escondendo no escuro, por detrás de uma caixa de peças de reposição.
Silêncio. Apenas o coração batendo com uma força que parecia querer explodir as artérias do pescoço.
Ouviu passos.
A maçaneta da porta girou. A luz pálida do corredor invadiu o lugar por um filete tímido.Então ele viu mãos enormes abrirem a porta até o canto. A silhueta abominável da criatura despontou diante do astronauta contra a luz do corredor. A criatura olhou para o lado e emitiu um som na direção do corredor.Roddy achou ter visto todos os dentes de uma coisa primitiva, faminta por carne humana. O ser mergulhou no escuro do recinto com passos confiantes e firmes, balbuciando na direção de Roddy.
Acuado e sem opções, ele segurou firme a pesada chave e avançou. Mas falhou.
O monstro o segurou pelo pescoço, o levantou e disse alguma coisa numa língua que ele não compreendia. Estava acontecendo, ele temeu a vida toda por aquilo. Sem forças, Roddy viu o mundo escurecer e se foi.
***
Extasiada, a criatura estrangulou o homem até que ele perdesse todas as forças. Os gritos e o barulho da pesada ferramenta de metal caindo ao chão fez-se ouvir por toda a nave.Logo dois tripulantes chegaram, mas não encontraram nada além de silêncio e um corpo ensanguentado ao chão.
O recinto estava mal iluminado, um dos homens rapidamente tentou acudir a vítima. Olhou ao redor, à procura de quem teria feito aquilo. Algo se escondia nas sombras e quando o outro acendeu a luz, um par de olhos terríveis o fitava com desejo de matar.
Em um dos dormitórios no mesmo corredor, Doutora Persy se preparava para iniciar seu turno olhando-se no grande espelho que usava para manter-se a mulher mais linda do espaço. Seu namorado francês amarrava o cadarço das botas. Eles ouviram gritos desesperados vindos dali de perto. O francês correu até a porta, mas antes ela se abriu com violência o arremessando contra a parede metálica. De início não viu o que era, caíra desorientado. O ser emitiu um ruído visceral, menos assustador que o de um urso, porém muito além de qualquer som humanamente esperado.
O homem viu a fera avançar sobre Persy, babando e carregado de um ódio especialmente violento contra ela. Temendo por sua vida abandonou a companheira à própria sorte, tentando fugir dali. O monstro, porém, o alcançou ainda no corredor e o peso de algo extremamente pesado afundou em sua cabeça. Tombando ao chão sua última visão foi a de uma criatura que evocava seus horrores mais viscerais.
Comandante Hemingway e o engenheiro chinês ouviram o barulho da confusão vindo além dos corredores. Se levantaram de pronto, o engenheiro indo à frente, deixando cair a xícara de chá no chão da nave. Quando a porta da sala de comando se abriu, o homem avançou pelo corredor, seguindo um rastro de sangue. Subitamente algo que parecia uma barra de ferro, voou em sua direção,acertando-o em cheio. Zelando por sua vida, o comandante voltou correndo para a sala de comando, mas a porta não se fechou a tempo.
A coisa entrou.
- Eu não sei se você consegue me entender, - disse Hemingway buscando contato – me diga o que você quer. Por favor, eu não... não quero morrer.
Disse isso e se encolheu apavorado. A criatura desferiu vários golpes, primeiro destruindo o painel, depois a cabeça do comandante.
Pelas costas, o médico da tripulação carregava uma seringa com um poderoso sonífero. O homem conseguiu espetar a agulha nas costas da criatura, mas infelizmente não logrou sucesso em preservar sua vida. A criatura avançou sobre o médico, os dentes buscando o pescoço, mas alcançando apenas a orelha, que arrancou numa única mordida.
A criatura tinha fome e o sangue do médico foi seu festim enquanto o sonífero não fazia efeito. Saiu cambaleando dali, vagando desorientada pelos corredores. O monstro grunhia, rosnava, as costas largas e curvadas como um animal pré-histórico, em pesadas passadas buscando esconderijo.
Então o escuro engolfou o monstro.
***
Barulho de estática.
O astronauta abriu os olhos; a pouca luz piscava convulsivamente iluminando as paredes metálicas do lugar. Estava na câmara de descompressão, a uma escotilha do abismo.
Havia sangue pelas paredes e um rastro denso que se estendia em direção ao corredor. A chave estava ao lado, repousando numa poça. Ele a pegou, mas a ferramenta deslizou de volta ao chão, o barulho metálico ecoando pela nave. Quando a luz do corredor tocou o metal, Roddy viu que a chave pingava sangue.
O pressentimento sombrio de ter sido o único sobrevivente lhe visitou. Ou, o que pareceu pior, estar sozinho com a criatura numa nave à deriva no espaço.
Mas a realidade seria algo muito pior.
***
Ele passou ao corredor. Na outra ponta o corpo do francês jazia todo ensanguentado, a mandíbula destruída e os dentes espalhados pelo chão. Apesar do desprezo que nutria por aquele homem, aquilo era terrível de se ver.
Esgueirou-se cautelosamente através daqueles corredores, o tum-tum-tum do coração batendo com força, quase explodindo no peito. Viu os corpos de seus companheiros em estado lastimável e não sabia se sentia-se abençoado ou abandonado por Deus por ser o único ainda de pé.
Não podia deixá-los ali, apodrecendo. No espaço, o funeral de um astronauta era entregar o corpo às estrelas, mas Roddy, agora sem a tripulação, sentia-se livre para rejeitar o que considerava um ato bárbaro. Tomou suas próprias decisões. E fez o funeral de todos do modo que considerava mais apropriado.
Contudo, apesar da nobreza dos seus sentimentos, não estava sozinho. E se ele queria um funeral apropriado, outro alguém gostou muito de saber que aqueles corpos não seriam entregues ao espaço.
Seriam preservados numa geladeira esperando um improvável sepultamento na Terra.
***
Lembrou-se de Persy. Aguentaria vê-la? Mesmo assim, precisava encontrá-la.
O dormitório, intuiu acertadamente. Ele fez o longo caminho até lá, com o coração angustiado. A porta estava entreaberta, a maçaneta completamente destruída. O homem caminhava a passos curtos, o porrete metálico na mão direita pronto para entrar em ação. Do lado de dentro, também havia barulho de estática, luz e escuro se alternando. Ele empurrou a porta.
O que o homem viu sob a luz convulsiva quase o fez vomitar. O que era aquilo? Aquele rosto que um dia ele amou estava irreconhecível. Nada além da bandeira americana manchada de sangue no uniforme identificavao ser encantador que um dia se chamou Persy.
Então...
O coração disparou, todas as glândulas da pele jorraram suor como comportas de hidrelétrica...
E o arrepio de quando o inferno está à espreita.
Ele ergueu o olhar adiante, mais além no quarto. E lá estava, o monstro, diante dele.
Tomado de ira, Roddy avançou para dentro do dormitório num grande salto jogando toda sua vida contra seu maior inimigo. A criatura também avançou, com seus olhos insanos, sua expressão de pura ferocidade. Em segundos as paredes metálicas daquele lugar veriam, no choque entre o homem e a criatura, a pesada ferramenta de metal descer com a violência de um trovão contra o espelho. Enquanto milhares de pequenos fragmentos espalhavam-se como uma chuva de asteroides de vidro.
Ao longo dos frios e metálicos compartimentos daquela panela de pressão espacial, ecoariam horripilantes gritos primais que as escuras cavernas paleolíticas há muito haviam encerrado no silêncio das eras.
Das cavernas... ao espaço.
***
Apesar de não conseguir chegar a Europa, felizmente a Orpheus não se extraviou em direção às profundezas do sistema solar. Júpiter, como um pai (ou um avô) severo mas ainda assim protetor, capturou a nave em sua órbita e ela ficou lá, por meses orbitando o majestoso planeta. Tempo suficiente para uma nova missão, a Euridice, chegar.
A tripulação da Euridice tinha duas grandes missões: estabelecer uma base em Europa e encontrar sobreviventes da Orpheus.Ninguém, contudo, acreditava naquela possibilidade.
- É muito tempo em órbita, aquilo lá é um túmulo – dizia o comandante da Euridice.
Sim, era um túmulo. Lúgubre, fétido e escuro em quase toda parte. Mas um túmulo com uma voz.
E esta voz respondeu.
***
Quando as complexas operações de acoplagem felizmente terminaram com total sucesso, os astronautas da Euridice ganharam os corredores mal iluminados da Orpheus,obrigados pela gravidade artificial a pisarem naquele chão lastimavelmente imundo.
- Estamos aqui – disse um deles, retirando o capacete para melhor se fazer ouvir.
Os homens passaram pelos corredores, atravessaram o que deveria ser a cozinha. O lugar estava imundo e o cheiro revirava o estômago. Armários com as portas escancaradas, sujeira por toda parte.
Então eles ouviram alguma coisa. O barulho vinha da sala de comando. O que eles viram os deixou estarrecidos.
O que havia ali decididamente não era humano. Pelo menos, não deveria ser para que eles continuassem se reconhecendo como... humanos.
Junto aos montes de fios soltos e peças quebradas pelo chão, uma criatura estava sentada sobre os tornozelos comendo algo que seres humanos não comem. Não, não comem, definitivamente não comemos! Estava sem as roupas espaciais, nu, cabelos e barba desgrenhados, os olhos arregalados e ameaçadores, as mãos recolhendo e levando à boca as partes por meses cuidadosamente congeladas e estocadas daquilo para o qual o astronauta brasileiro acreditou estar dando um funeral apropriado.
Diante do grupo de resgate estava a criatura não-humana que aterrorizava meninos e homens nas histórias de ficção científica; o licantropo dos tempos antigos, das histórias de fogueira. Ali estava ele, libertado das profundezas do homem. Roddy, o astronauta; Roddy, o monstro. Não era gigante, não tinha presas, não tinha garras. Apenas fome, fúria e uma mente cujos princípios foram devorados pela necessidade.
A criatura sorriu sordidamente do que via como a fragilidade dos homens civilizados à sua frente. Ergueu-se, as mãos sujas, os olhos côvados e a boca cheia de dentes manchados de sangue.
Os homens foram ao espaço encontrar seus sonhos. Mas onde há sonhos... os pesadelos espreitam. E nas grandes jornadas dos heróis, sempre existe... o Monstro.
[Conto vencedor da 14ª edição do Concurso Literário de Terror e Suspense do Recanto das Letras]
Se teus princípios te deixam triste, podes estar certo de que estão errados.
(Robert Louis Stevenson)
Quando os seres humanos embarcam em suas naves rumo a destinos nas estrelas, acreditam estar levando apenas sua ciência e seus sonhos. Mas a luz que portam, não é maior que as trevas das quais fogem. E a mente que sonha, também tem pesadelos.
Roddy. Era dessa maneira que a tripulação da Orpheus chamava Rodolfo Silva, o único astronauta brasileiro da tripulação. Um homem singular. Desde muito cedo revelara uma habilidade matemática extraordinária. Aos dezessete passara para o Instituto Tecnológico da Aeronáutica e, em poucos anos, do ITA à NASA, como promissor engenheiro aeroespacial.
Mas essa história começa um pouco antes desses momentos gloriosos.
Amazônia, trinta e dois anos antes de Silva embarcar como astronauta na Orpheus. Um garoto de catorze anos, olhos vivazes e traços delicados está em uma canoa com seu avô nas águas de um estreito igarapé. O velho rosado, de postura altiva e barba hirsuta se orgulhava da inteligência brilhante do neto, mas queria ensiná-lo algo mais. É inteligente sim, mas é muito frágil, precisa tornar-se forte”. Horas antes ele punira o neto com bofetadas e agora metralhava palavras terríveis porque o garoto era um caçador medíocre.
Horas depois, se afogando nas águas tóxicas daquelas palavras, o menino percebeu alguma coisa no igarapé. “Não olhe”, algo lhe sussurrou na consciência, mas ele ignorou. E ao olhar, um movimento incomum veio crescendo das profundezas para a superfície até que por fim, emergiu.
O grito aterrorizado podia ser ouvido por quilômetros de floresta e o que ele viu nas águas daquele igarapé seria rejeitado por sua memória pelo resto da vida. Daquele dia se lembraria apenas da expressão de horror do avô tombando na água, o sangue se misturando às águas barrentas do igarapé, o olhar do velho desaparecendo nas profundezas.
Rodolfo fugiria às pressas daquela mata, numa fuga desesperada que nunca mais pararia. Dali ao ITA, depois à NASA e, por fim, ao espaço, onde ironicamente seria muito mais fácil a coisa encontrar novamente o homem.
***
Três décadas depois Rodolfo era uma das mentes brilhantes a bordo da “Orpheus”, um projeto ambicioso de uma iniciativa transnacional com o objetivo de levar humanos a Europa, satélite de Júpiter, onde dezenas de sondas comprovaram extensivamente a existência de um imenso oceano congelado. Europa era sem dúvida lugar melhor para a humanidade depois que a pouca água de Marte provou ser o planeta vermelho um mundo bem mais desafiador.
“Um brasileiro indo para Europa”, Roddy ria quando pensava que este fora o sonho da maioria dos seus ancestrais nos últimos seis séculos. Mas a Europa para onde Roddy rumava era outra. Lá, o colonizador seria ele.
Quando a missão partiu, o mundo inteiro parou para assistir. No Brasil foi feriado, houve discurso presidencial exaltando “Um herói levando nossa bandeira ao espaço”.
Ele contava quarenta e seis anos de idade e nenhum relacionamento duradouro. Sem filhos, sem amigos. Enquanto os olhos perdiam-se no degradé do azul ao preto, enquanto a Orpheus deixava para trás a atmosfera terrestre, a mente pensava nos inúmeros sacrifícios necessários para uma pessoa sair da Amazônia ao espaço.
Um dia, porém, quando acabavam de deixar para trás a face prateada da Lua, tudo mudou.
- Roddy, cheque o Suporte à Vida – dizia o comandante.
Ele checou todos os itens. As respostas prontas, porém, estancaram em silêncio quando ele se deparou com algo que deveria estar lá, mas não estava. A voz desceu uma ladeira de silêncio em direção a um mutismo preocupado que fez o homem arregalar os olhos e acelerar o coração. Alguns números não batiam e algo estava mortalmente errado: o cálculo de trajetória. Eles nunca chegariam a Europa.
A base em Houston cometera um erro catastrófico. Com objetivo de evitar ao máximo os incontáveis asteroides entre Marte e Júpiter, estabeleceram uma trajetória que passaria ao largo do destino pretendido. Eles se extraviariam no espaço e em algum momento, os suprimentos acabariam. E depois... o inferno.
Roddy nada revelou de sua descoberta, preferiu certificar-se e ser previdente. Emitiu um pedido de socorro à Terra, mas infelizmente o vento solar causou interferência na resposta. A paz do homem se foi.
***
Quando Ceres e seus milhares de asteroides despontassem do lado de fora da Orpheus tudo pareceria assustador. Haveria morte passando bem perto dos olhos deles, mas Houston calculara bem e as imensas rochas não passariam de gigantes mansos pastando nas estrelas, apascentados pela matemática.
Como uma fuga para uma existência insípida e um futuro terrível, Roddy deixou-se apaixonar pela doce voz da Doutora Persy, que diariamente monitorava o ritmo crescentemente desregulado dos batimentos do homem. E ela não demorou a descobrir que também o amava. Era, porém, uma mulher comprometida com sua liberdade. E Roddy não lidou muito bem quando sua conquista espacial agora passava às mãos de outro conquistador, um francês delicado, de sorriso fácil.(“que nem parece homem”, dizia uma voz rouca na mente do astronauta)
“Sou um homem moderno”, dizia a universidade em sua cabeça.
Mas...
Vai mesmo perder pra este marica falando francês? – dizia a voz de alguém, bem mais velho, bem mais antigo... profundo e escuro, como fundo de igarapé. Concentrou-se nos afazeres. Amando Persy, odiando o francês.
Tinha pesadelos frequentes. Num deles, era Roddy quem descia para as profundezas do igarapé, puxado pela coisa que veio do fundo. Seu avô lhe estendia uma pesada chave de metal, daquelas que se usa para reparos na nave. Ele agarrava a ferramenta e voltava para o barco. Mas o movimento brusco fazia o avô cair na água e outra vez ele revivia com aquela terrível lembrança. Acordou suando frio, sentindo o corpo flutuar como se o sistema de gravidade artificial fraquejasse por alguns segundos.
Achou aquilo estranho e foi até a sala de comando checar. O comandante e o engenheiro chinês dormiam profundamente lá. Tudo parecia bem.
Toda a tripulação dormia. Um pressentimento sombrio, porém, lhe dizia não ser ele o único andando acordado por aqueles corredores. A porta que levava à cozinha fora esquecida aberta e ele teve a impressão de ver alguma coisa se mover lá dentro. Com o coração batendo forte e a testa suando descontroladamente, foi até lá e acendeu a luz.
Nada. Estava sozinho.
A calma do homem era uma estrutura lentamente sendo minada pela água barrenta de um igarapé. E o renomado Doutor Silva começou a falhar em suas atribuições.
- Silva, estou perdendo a paciência com você. Terceira vez que você deixa passar irregularidades nos sistemas de suporte. Droga, Silva! Quer matar a gente? Bota a cabeça no lugar ou vou tirar você daí e despejá-lo de volta à Terra como um pacote de merda.
A partir dali os sorrisos do astronauta desapareceram de seu rosto como água sugada por solo seco. Não mais falava. O homem ressentido mergulhou de vez no seu drama. Eles tão rindo de você, esses gringos, dizia a voz do avô na mente. É claro que isto ia acontecer, você entende de espaço mas não sabe nada de mulher... perdeu pra bicha francesa... que vergonha!
Porém...
Dia após dia lá estava a voz do avô, o homem firme, necessário para tempos de incerteza.
Vá em frente, você consegue... você é um homem, fique firme.
Mas o velho nos pensamentos não era o único visitando Roddy.
Enquanto suava compulsivamente revisando os cálculos de trajetória, torcendo para estar errado, ele outra vez sentiu-se observado e teve a certeza de algo muito estranho ter fugido da vista dele. Do outro lado do vidro da cabine, Fobos, lua de Marte, com sua face deformada olhava para ele. Roddy sentiu algo de muito ruim ali, uma presença estranha dentro da nave. O homem engoliu seco, ouviu os passos. Não olhou para trás. A presença, contudo, esgueirou-se e voltou a se esconder quando a voz do francês chegou cantarolante puxando conversa.
Semanas depois o capitão começava a desconfiar de algo. Solicitava com frequência os cálculos de navegação e cada dia parecia estar mais próximo da verdade. Suprimentos começavam a escassear.
Meses se passaram. Marte e a Terra agora eram pontinhos luminosos deixados para trás, um vermelho, o outro azul. Júpiter já podia ser visto como uma pequena esfera contando uma história mentirosa de que os aguardava em breve. Secretamente Roddy pedia socorro.Ao avô.
Eles sempre acharam que brasileiro era só futebol e carnaval, daí você apareceu. Você é mais aberração que alienígena pra esses caras. Aquela americana feminista te trocou por aquele francês bicha. Você perdeu, guri.Você fracassou.Eles te desprezam. Te querem lá fora... despejado como “pacote de merda”, um pacote de merda enrolado num pano verde e amarelo.
- CHEGA! – gritou em português.
E ouviu algo. Uma coisa feita de sombras se esgueirou como um vulto, e ele teve a certeza de ver algo muito diferente de humano passando no final do corredor. Tomado pelo impulso de sobrevivência e a determinação do homem forte, Roddy lançou-se naquele corredor gritando para todos SALVEM-SE! E buscou um lugar onde pudesse se esconder até pensar em alguma coisa.
Lembrou-se do avô. Dessa vez não de sua voz. Mas de sua morte.
***
A primeira porta que viu foi a da sala de equipamentos. A autopreservação o fez enxergar uma chave de metal do tamanho de um braço. Lembrava-se daquela chave, de algum lugar.
(Sobreviva!)
Trancou-se na sala de equipamentos, se escondendo no escuro, por detrás de uma caixa de peças de reposição.
Silêncio. Apenas o coração batendo com uma força que parecia querer explodir as artérias do pescoço.
Ouviu passos.
A maçaneta da porta girou. A luz pálida do corredor invadiu o lugar por um filete tímido.Então ele viu mãos enormes abrirem a porta até o canto. A silhueta abominável da criatura despontou diante do astronauta contra a luz do corredor. A criatura olhou para o lado e emitiu um som na direção do corredor.Roddy achou ter visto todos os dentes de uma coisa primitiva, faminta por carne humana. O ser mergulhou no escuro do recinto com passos confiantes e firmes, balbuciando na direção de Roddy.
Acuado e sem opções, ele segurou firme a pesada chave e avançou. Mas falhou.
O monstro o segurou pelo pescoço, o levantou e disse alguma coisa numa língua que ele não compreendia. Estava acontecendo, ele temeu a vida toda por aquilo. Sem forças, Roddy viu o mundo escurecer e se foi.
***
Extasiada, a criatura estrangulou o homem até que ele perdesse todas as forças. Os gritos e o barulho da pesada ferramenta de metal caindo ao chão fez-se ouvir por toda a nave.Logo dois tripulantes chegaram, mas não encontraram nada além de silêncio e um corpo ensanguentado ao chão.
O recinto estava mal iluminado, um dos homens rapidamente tentou acudir a vítima. Olhou ao redor, à procura de quem teria feito aquilo. Algo se escondia nas sombras e quando o outro acendeu a luz, um par de olhos terríveis o fitava com desejo de matar.
Em um dos dormitórios no mesmo corredor, Doutora Persy se preparava para iniciar seu turno olhando-se no grande espelho que usava para manter-se a mulher mais linda do espaço. Seu namorado francês amarrava o cadarço das botas. Eles ouviram gritos desesperados vindos dali de perto. O francês correu até a porta, mas antes ela se abriu com violência o arremessando contra a parede metálica. De início não viu o que era, caíra desorientado. O ser emitiu um ruído visceral, menos assustador que o de um urso, porém muito além de qualquer som humanamente esperado.
O homem viu a fera avançar sobre Persy, babando e carregado de um ódio especialmente violento contra ela. Temendo por sua vida abandonou a companheira à própria sorte, tentando fugir dali. O monstro, porém, o alcançou ainda no corredor e o peso de algo extremamente pesado afundou em sua cabeça. Tombando ao chão sua última visão foi a de uma criatura que evocava seus horrores mais viscerais.
Comandante Hemingway e o engenheiro chinês ouviram o barulho da confusão vindo além dos corredores. Se levantaram de pronto, o engenheiro indo à frente, deixando cair a xícara de chá no chão da nave. Quando a porta da sala de comando se abriu, o homem avançou pelo corredor, seguindo um rastro de sangue. Subitamente algo que parecia uma barra de ferro, voou em sua direção,acertando-o em cheio. Zelando por sua vida, o comandante voltou correndo para a sala de comando, mas a porta não se fechou a tempo.
A coisa entrou.
- Eu não sei se você consegue me entender, - disse Hemingway buscando contato – me diga o que você quer. Por favor, eu não... não quero morrer.
Disse isso e se encolheu apavorado. A criatura desferiu vários golpes, primeiro destruindo o painel, depois a cabeça do comandante.
Pelas costas, o médico da tripulação carregava uma seringa com um poderoso sonífero. O homem conseguiu espetar a agulha nas costas da criatura, mas infelizmente não logrou sucesso em preservar sua vida. A criatura avançou sobre o médico, os dentes buscando o pescoço, mas alcançando apenas a orelha, que arrancou numa única mordida.
A criatura tinha fome e o sangue do médico foi seu festim enquanto o sonífero não fazia efeito. Saiu cambaleando dali, vagando desorientada pelos corredores. O monstro grunhia, rosnava, as costas largas e curvadas como um animal pré-histórico, em pesadas passadas buscando esconderijo.
Então o escuro engolfou o monstro.
***
Barulho de estática.
O astronauta abriu os olhos; a pouca luz piscava convulsivamente iluminando as paredes metálicas do lugar. Estava na câmara de descompressão, a uma escotilha do abismo.
Havia sangue pelas paredes e um rastro denso que se estendia em direção ao corredor. A chave estava ao lado, repousando numa poça. Ele a pegou, mas a ferramenta deslizou de volta ao chão, o barulho metálico ecoando pela nave. Quando a luz do corredor tocou o metal, Roddy viu que a chave pingava sangue.
O pressentimento sombrio de ter sido o único sobrevivente lhe visitou. Ou, o que pareceu pior, estar sozinho com a criatura numa nave à deriva no espaço.
Mas a realidade seria algo muito pior.
***
Ele passou ao corredor. Na outra ponta o corpo do francês jazia todo ensanguentado, a mandíbula destruída e os dentes espalhados pelo chão. Apesar do desprezo que nutria por aquele homem, aquilo era terrível de se ver.
Esgueirou-se cautelosamente através daqueles corredores, o tum-tum-tum do coração batendo com força, quase explodindo no peito. Viu os corpos de seus companheiros em estado lastimável e não sabia se sentia-se abençoado ou abandonado por Deus por ser o único ainda de pé.
Não podia deixá-los ali, apodrecendo. No espaço, o funeral de um astronauta era entregar o corpo às estrelas, mas Roddy, agora sem a tripulação, sentia-se livre para rejeitar o que considerava um ato bárbaro. Tomou suas próprias decisões. E fez o funeral de todos do modo que considerava mais apropriado.
Contudo, apesar da nobreza dos seus sentimentos, não estava sozinho. E se ele queria um funeral apropriado, outro alguém gostou muito de saber que aqueles corpos não seriam entregues ao espaço.
Seriam preservados numa geladeira esperando um improvável sepultamento na Terra.
***
Lembrou-se de Persy. Aguentaria vê-la? Mesmo assim, precisava encontrá-la.
O dormitório, intuiu acertadamente. Ele fez o longo caminho até lá, com o coração angustiado. A porta estava entreaberta, a maçaneta completamente destruída. O homem caminhava a passos curtos, o porrete metálico na mão direita pronto para entrar em ação. Do lado de dentro, também havia barulho de estática, luz e escuro se alternando. Ele empurrou a porta.
O que o homem viu sob a luz convulsiva quase o fez vomitar. O que era aquilo? Aquele rosto que um dia ele amou estava irreconhecível. Nada além da bandeira americana manchada de sangue no uniforme identificavao ser encantador que um dia se chamou Persy.
Então...
O coração disparou, todas as glândulas da pele jorraram suor como comportas de hidrelétrica...
E o arrepio de quando o inferno está à espreita.
Ele ergueu o olhar adiante, mais além no quarto. E lá estava, o monstro, diante dele.
Tomado de ira, Roddy avançou para dentro do dormitório num grande salto jogando toda sua vida contra seu maior inimigo. A criatura também avançou, com seus olhos insanos, sua expressão de pura ferocidade. Em segundos as paredes metálicas daquele lugar veriam, no choque entre o homem e a criatura, a pesada ferramenta de metal descer com a violência de um trovão contra o espelho. Enquanto milhares de pequenos fragmentos espalhavam-se como uma chuva de asteroides de vidro.
Ao longo dos frios e metálicos compartimentos daquela panela de pressão espacial, ecoariam horripilantes gritos primais que as escuras cavernas paleolíticas há muito haviam encerrado no silêncio das eras.
Das cavernas... ao espaço.
***
Apesar de não conseguir chegar a Europa, felizmente a Orpheus não se extraviou em direção às profundezas do sistema solar. Júpiter, como um pai (ou um avô) severo mas ainda assim protetor, capturou a nave em sua órbita e ela ficou lá, por meses orbitando o majestoso planeta. Tempo suficiente para uma nova missão, a Euridice, chegar.
A tripulação da Euridice tinha duas grandes missões: estabelecer uma base em Europa e encontrar sobreviventes da Orpheus.Ninguém, contudo, acreditava naquela possibilidade.
- É muito tempo em órbita, aquilo lá é um túmulo – dizia o comandante da Euridice.
Sim, era um túmulo. Lúgubre, fétido e escuro em quase toda parte. Mas um túmulo com uma voz.
E esta voz respondeu.
***
Quando as complexas operações de acoplagem felizmente terminaram com total sucesso, os astronautas da Euridice ganharam os corredores mal iluminados da Orpheus,obrigados pela gravidade artificial a pisarem naquele chão lastimavelmente imundo.
- Estamos aqui – disse um deles, retirando o capacete para melhor se fazer ouvir.
Os homens passaram pelos corredores, atravessaram o que deveria ser a cozinha. O lugar estava imundo e o cheiro revirava o estômago. Armários com as portas escancaradas, sujeira por toda parte.
Então eles ouviram alguma coisa. O barulho vinha da sala de comando. O que eles viram os deixou estarrecidos.
O que havia ali decididamente não era humano. Pelo menos, não deveria ser para que eles continuassem se reconhecendo como... humanos.
Junto aos montes de fios soltos e peças quebradas pelo chão, uma criatura estava sentada sobre os tornozelos comendo algo que seres humanos não comem. Não, não comem, definitivamente não comemos! Estava sem as roupas espaciais, nu, cabelos e barba desgrenhados, os olhos arregalados e ameaçadores, as mãos recolhendo e levando à boca as partes por meses cuidadosamente congeladas e estocadas daquilo para o qual o astronauta brasileiro acreditou estar dando um funeral apropriado.
Diante do grupo de resgate estava a criatura não-humana que aterrorizava meninos e homens nas histórias de ficção científica; o licantropo dos tempos antigos, das histórias de fogueira. Ali estava ele, libertado das profundezas do homem. Roddy, o astronauta; Roddy, o monstro. Não era gigante, não tinha presas, não tinha garras. Apenas fome, fúria e uma mente cujos princípios foram devorados pela necessidade.
A criatura sorriu sordidamente do que via como a fragilidade dos homens civilizados à sua frente. Ergueu-se, as mãos sujas, os olhos côvados e a boca cheia de dentes manchados de sangue.
Os homens foram ao espaço encontrar seus sonhos. Mas onde há sonhos... os pesadelos espreitam. E nas grandes jornadas dos heróis, sempre existe... o Monstro.