Olhos Malvistos

Corri para o quarto. Juro por Deus, senti, de relance, a respiração asquerosa daquele ser ao meu ouvido. Por vezes tentei me desvincular do mal, mas à medida que envelheço o mal em mim apenas se solidifica. Já tentei tudo, mas hoje, após ser perseguido novamente, criei coragem. De hoje não passa! Peguei uma bebida que estava há muitos dias no quarto e de posse do objeto que me livraria do mal, senti pela primeira vez que minha vida poderia ter paz.

Para ter a paz que eu queria, meu olhar perderia sua luz. Eu estava certo de que ao perder a visão, o demônio que me perseguia iria sumir. Não lembro quando comecei a vê-lo, muito menos em que momento se apoderou de mim. Só sei que não suportava mais. Estava imerso completamente no universo insano, prova disso é o que estava prestes a fazer.

Nervoso! Eu estava muito nervoso, porém decidi que meu ato tresloucado seria visto por mim em um futuro próximo como um ato de misericórdia. Após sentir essa ideia latente, não pude “dormir” até pô-la em prática. Não conseguiria viver mais um minuto sequer vendo aqueles muitos seres sobrenaturais e aterrorizantes. Pensei bem antes, de fato pensei. Minha vida seria mais complicada, mas estava completamente decidido a romper a luz que me permitia ver o sol, pois era a mesma que me jogava no inferno. Meus olhos eram a porta do mal que me possuía, traíram-me mostrando seres que nunca quis ver e o momento de eles pagarem por isso era chegado.

De frente para o espelho vi meu corpo cadavérico, sinal de aparência quase infernal, meus olhos de peixe morto denunciavam que em mim a vida se esvaía, não nego. Olheiras escuras ficaram permanentes em meus olhos. Meu rosto magro denunciava que nos últimos dias não me alimentara direito, a falta de nutrientes cobrou de mim um alto preço.

Nos últimos dias, fui atormentado por um demônio vermelho, ele estava acossado a mim. Sua presença me fazia querer a morte, mas por mais que eu quisesse me libertar desse mal, sentia que precisava saber o que é viver. Estava prisioneiro dos meus olhos, cativo dos olhos malignos que me forçavam a enxergar o que não queria.

Embebi um lenço na bebida e passei no objeto de luz, a tesoura. Sentei-me de frente ao espelho, respirei fundo… Tomei quase meia garrafa da bebida de uma única vez. Abri muito bem o olho direito. Mirei a ponta da tesoura direto na minha pupila e com toda força que possa imaginar finquei-a para libertar-me do mal. Uma dor excruciante e terminal se apoderou de mim, senti um queimar sem igual e desmaiei.

Quando recobrei a razão, pensei que não teria coragem de continuar com a tortura necessária. Tomei todo o restante da bebida e enquanto fazia uma tentativa de curativo senti que poderia de fato morrer. Apunhalei a tesoura no outro olho, o sangue jorrou quente. Eu estava totalmente anestesiado. Não sei qual mazela me fez adormecer, mas não senti dor. Se alguém me visse daquele jeito fugiria, pois de fato eu estava possuído.

Senti um frio na espinha, alguém estava no meu quarto, mas pela primeira vez não fugi, eu não podia vê-lo e por mais que estivesse com medo senti uma paz. Esse sentimento durou pouco, pois os meus sentidos adormecidos acordaram. Um hálito fétido baforou em meu rosto, fiquei imóvel, completamente paralisado e por mais que tentasse meus músculos não se moveram. Não pude correr. Uma risada macabra ecoou no meu quarto e fez todo o meu corpo se arrepiar, soltei um gemido de lamento do fundo de minha alma, e fiquei completamente sufocado pelo espanto.

Senti algo grotesco tocar-me a pele. Algo gelado repleto de ondulações e escamas. Esse toque deixou um líquido pegajoso e nojento no meu braço. Um cheiro de enxofre tomou conta do quarto impossibilitando-me de respirar direito. Tateei minhas mãos na mesa, buscando o copo com água, bebi-o de uma única vez. Confesso que meu estômago revirou por completo. Um gosto amargo, gosto de sepultura, tomou conta do meu paladar e meu pobre organismo repeliu o pouco que continha em meu estômago.

Minha luz cessou, entretanto, no fechar dos olhos malignos, os meus quatro sentidos se intensificaram de uma forma surreal. Jamais pensei que isso aconteceria. Descobri da pior forma que meus olhos não eram o mal, perder a visão apenas intensificou, não pude vê-los, mas passei a senti-los com perfeição. No meu estômago, um fogo avassalador queimou-me de dentro para fora como se algo corrosivo me destruísse. Meu coração bateu de forma desesperada! O que realmente eu ingeri? Um gosto de ferrugem se acentuou em minha boca, vomitei algo diferente, imaginei ser sangue. O que eu ingeri? A risada medonha se pronunciou novamente, e eu, e eu...

Daniele Pereira
Enviado por Daniele Pereira em 21/02/2021
Reeditado em 19/08/2022
Código do texto: T7189605
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