Abriu o tabuleiro e espalhou as peças
 
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            — Coitado daquele que ousar se interpor entre uma onça e seus filhotes — Dra. Ângela lembrava das palavras do delegado, referindo-se a ela. Tomava um banho e mentalizava: As vozes... por que não se calavam? 
 
          No armário encontrou o que procurava: o adugo. Comprou-o num impulso. Teria que aprender o jogo. Abriu o tabuleiro e espalhou as peças.
       
        O pequinês subiu na cama. Olhou para o jogo com desdém. Então, caminhou na ponta das patas e cheirou uma das pedrinhas.

          — Sua vez, Momo? — a médica procurava raciocinar enquanto movia as peças, repassando cada lance:
 
 
 
          Ao erguer a cabeça, o delegado viu a médica entrar no escritório:
          — Quero lhe mostrar algo — e pousou um osso sujo sobre a escrivaninha. — Parece o fêmur de uma criança. Não creio que tenha sido uma morte natural. — Aqui — apontou, aproximando-se da luz.
           O delegado via a ponta esfacelada, mostrando marcas de dentes. Pegou os óculos; esforçando-se para ver o que a mulher mostrava. Ela removeu uma crosta de terra com a unha e ele percebeu a fenda cuneiforme.

             — Onde o encontrou?
           — No terreno de casa. Não sei de onde veio. Dois cães de rua o disputavam e quando se enrolaram num emaranhado, ficou esquecido e o peguei.  
            — Algum outro?
         — Procurei... Os cães podem tê-lo trazido de qualquer lugar.
 
 
          A polícia escavou uma área demarcada. Dias depois, os resultados da busca:
           — Mais dois esqueletos. Mortes violentas.
           — Três crianças? — Dra. Ângela perguntou.
          — Sim. O legista acha que entre oito e dez anos. Deve ter acontecido há uns cem anos.
            Ângela, em silêncio, absorvia cada informação.
            — Cem anos... Então, não há com o que preocupar.
       — É uma estranha coincidência. Naquela região está sempre acontecendo algo de ruim. Foi assim que começou tudo na última vez — a voz masculina trazia preocupação.
         — Não se pode interpretar todo ato como se a história estivesse se repetindo — ela queria confortá-lo.
           — Há algo de errado com esse lugar. Não sei o que é...
 
 
 
         Raíssa subiu na van sem olhar para trás, atravessou o corredor entre os bancos e sentou-se.
           Ocupo apenas um cantinho de seu universo, Dra. Ângela lamentou. Sabia que isso aconteceria: o afastamento da filha, a luta por independência. A transformação ocorreu, como se uma boa menina tivesse saído de casa certo dia e uma estranha tivesse voltado no seu lugar.
 
        Final das aulas. Raíssa deu uma olhada para os colegas. Agarravam as canetas como armas. Bombas a ponto de explodir.
           — Bundão! — E, mais insultos.
      — Cala a boca?! Mandei parar! — chutou a carteira, espalhando os objetos.
 

          O sinal e uma enxurrada pelos corredores. A jovem caiu de costas, varrendo poeira, quando um outro lhe deu um esbarrão. Ela se levantou e o segurou pela alça da mochila. Puxou-a com tanta força que ambos ficaram roxos, mas continuaram a sacudir os braços, bufando como touros selvagens.
         Dois professores correram para separar. Era a quarta briga em dois dias. Não estavam conseguindo controlar os adolescentes.
 
 
           Feira de Ciências.  De repente, um, dois, três disparos... A caixa de som tombou, houve um guincho ensurdecedor e fagulhas elétricas. As luzes se apagaram. A escuridão cheirava a suor e medo. E sangue.
 
         Os policiais encontraram o caos no salão. A lâmpada de emergência acabara de ser acesa: além da caixa caída, o ponche entornado, misturado a sangue, formava uma piscina. Metade dos alunos se aglomerava contra uma parede e outros, perto da porta.
           O aluno-atirador ainda segurava a arma.
          — Não atirem! — A voz do sargento se perdeu em meio aos estampidos. Um segundo depois, todos reagiram ao mesmo tempo.
 
          Um telefonema e Ângela foi buscar a filha. A chuva caía rápido, obscurecendo a visão do prédio e, através da cortina branca vaporosa, figuras fantasmagóricas a guiavam. Estacionou, colocou a mão para fora do vidro... sentiu o toque e ouviu:
         — Você é pura energia! Vai conseguir!  — Uma figura sutil se afastava pela rua, quando Raíssa bateu a porta do Focus.
            Dirigiu para casa, tentando dialogar, mas foi impossível:
        — Não enche! Pare... de gritar! — a mãe chocava-se com a intensidade da fúria e...
      — Você está sangrando... — a garota, tocou o lábio superior, olhou para os dedos e balançou a cabeça. Desceu correndo do carro e se trancou no quarto.
 
 
 
Inácio Bié
          O velho descobriu-se deitado sob um cafeeiro. Tinha saído para capinar, com o sol ainda à altura da paineira. Se então o astro estava acima da árvore, significava que esteve caído ali por uma hora, talvez.
          Cabeça dolorida, mãos dormentes, calça molhada de urina, sangue na camisa. A enxada tombada ao lado, a lâmina enterrada. Demorou um tempo até registrar e considerar o peso de tais observações:
             Meu Deus, outra vez não!

       Voltou para casa devagar, esperando que a mente se desanuviasse. Apoiando na pia, olhou-se no espelho: o cabelo grisalho estava duro com o sangue coagulado.
 
           A empregada o encontrou caído no banheiro e chamou a ambulância.
 
       Três semanas transcorreram. Tonto, com a visão desfocada, Inácio ouvia da médica:
               — Tem chance de recuperação completa.
             — Um homem como eu não pode ter uma vida normal.
           — Podemos controlar os ataques. Talvez acabar com eles. Tiramos de sua cabeça um parasita morto, preso em um cisto...
          — Todos têm medo de mim. O monstro da cidade. Quando eu tinha catorze anos, assassinei minha família.
             — Não sofra assim. O senhor se culpa pelo que aconteceu há muito tempo. Não podia se controlar — a médica nutria a lógica. — ...convulsões, brutalidade são sintomas da sua doença.
            — Não precisa mentir, doutora.  Sei o que fiz — inspirou e expirou devagar.
 
 
 
No ambulatório
           Espasmos nervosos, pescoço enrijecido, metade do rosto manchado de... de onde vinha aquele sangue?
             A médica ouviu o gorgolejar. Deitou o rapaz de lado, virou-lhe o rosto: Havia líquido retido na garganta, mas apenas um fio de sangue saiu, misturado com saliva. O som de asfixia aumentava...
             — É o veneno do demônio no corpo — uma enfermeira sussurrou.
          O paciente não se moveu. As sombras sob seus olhos pareciam azuis e tão escuras quanto hematomas. Parecia que já estava morto.
        Dra. Ângela apertou-lhe a barriga com força, pressionando a caixa torácica. O motivo da obstrução foi expelido...

          Quando ela viu o que era, recuou: um verme se debatia para a frente e para trás em meio a uma espuma rosada de sangue e muco. Outro escorregava para fora do nariz, contorcendo-se em volteios brilhantes enquanto tentava sair. A doutora estava tão chocada que nada mais fez senão olhar, enquanto aquilo escapava e escorregava para o chão, enrodilhado, uma extremidade erguida como a cabeça de uma cobra.
          — Que diabos é isso? — por fim se manifestou.
      — Está brilhando... — uma enfermeira se ajoelhou na poeira e, lá no fundo, duas linhas verdes se moviam, formando arabescos.
          — É a represa. A maldição — alguém lamentou.
          — Costumam nadar lá? — Dra. Ângela indagou.
          — Sim. E no regato que a sustenta — foi a resposta.
 
 
          Parecia à médica um território familiar, agora. A língua áspera, as amígdalas, a úvula pendurada como uma trêmula aba de carne rosada. E aquele cheiro de cinzeiro usado. Os mesmos sintomas. Até sua filha.

          A médica avaliou a informação dos assassinatos. E somou a ela a contagem de glóbulos incomum em outros pacientes. Dava conta de que, talvez, existissem outros casos de infecção parasitária em Tiuquê. Isso explicaria o comportamento violento de uma hora para outra — estava incrédula. Deixou passar alguma pista vital? As tomografias, os exames de laboratório — precisava rever tudo.  Uma estranha excitação crescia. Sentiu as mãos se fecharem, o sangue subir para o rosto.
 
              Tuiquê. Vinte mil habitantes. Um lugar limpo, decente, onde todo mundo se conhecia. O tipo de gente que vai à igreja e frequenta a associação de pais e mestres. Agora, implodia.
 
 
 
Pesquisas
         — Procuramos padrões na natureza, certo? — a secretária falou — Bem, em vários períodos o rio Tiuquê inundou, e houve danos ao longo das margens... Houve episódios de inundações catastróficas, como em 1919, 1966 e 1998 e...
             — ...a chuva parava, ficava estranhamente quente, com temperaturas recordes. Em janeiro, começava a acontecer... — Dra. Ângela completou.
            — Sim. Encontrei o óbito de cinco familiares registrados no mesmo dia, janeiro de 1919. Talvez a origem daqueles ossos.
      — Não se trata de uma rebelião. São pessoas enlouquecendo, matando animais, amigos, parentes. A mesma coisa vem acontecendo há anos. — A médica repassava cópias de jornais velhos, com manchetes de agressões.
         — Há algumas semanas, a doutora se lembra de que mencionei os indígenas, que eles se recusavam a se estabelecer perto do rio.
          — Sim. Consideravam o lugar doente. Vimos até a origem do nome Tiuquê: ty, significa água e iuK, podre.
          — Tem mais. A represa foi construída sobre um cemitério indígena. Cochicham sobre uma maldição.
 
 
 
         Dra. Ângela não entendia como aquilo podia estar acontecendo. Despertara em um universo paralelo, onde gente conhecida, estava se comportando de um modo que ela não compreendia. Lá estavam todos aqueles jovens, emanando tanta fúria que o ar ao redor deles parecia vibrar. Lá estavam os adultos, soturnos, fazendo uma série de perguntas, compreendendo a perigosa natureza do drama que se desenrolava.

           Ela reuniu todos os fatos ocorridos, deste que se mudara para o local. Oito meses... Tinha um lance incompleto. Vozes assombrosas lhe ressoavam na mente, impulsionando.
 
               A primeira coisa em que pensou foi em alguma droga: metanfetamina, anfetamina, cocaína... ou outra. Os exames nada apontaram.

               Suspensão repentina da Ritalina? Impossível. Nem todos envolvidos a usavam.

                 Uma pílula, uma injeção ou, até mesmo, uma planta de algum tipo: esteroides, certas vitaminas, testosteronas? Algum tipo de hormônio? Produtos químicos ou produzidos por criaturas vivas? Estes, em particular, criavam o desejo de matar. Mas, como teriam conseguido qualquer um desses produtos?
 
             Vazamento de produtos químicos? Tinta fosforescente, por exemplo.

           Então, uma menina lhe contou sobre os cogumelos. Todos os comiam. Fizeram disso um ritual. Coma um cogumelo, prove que é forte.

            Depois as rãs que se enterravam lá embaixo, na lama. Presas, eliminando matéria.
 
               Voltou até a ideia do sobrenatural:
            — Feiticeiros — comentou um habitante — fogueiras nas plantações. É a noite sagrada deles. O Ano Novo Sombrio. E, logo, começavam os incidentes.
          A doutora não via nada de engraçado na conversa. Sempre houve, em cada lugar, pessoas solitárias que se tornaram objetos de anomalias que requerem explicação. Fascínio que se tornava obsessão.
 
             Em certo momento, as pesquisas se concentraram no velho Inácio. Morava a dois quilômetros do rio. Bastava um vazamento em sua antiquíssima fossa, um ano de inundações, e ovos podiam ser levados ao rio.
         Uma elegante explicação lógica, pensava. Não é uma epidemia de loucura ou uma maldição centenária. É uma larva parasitária alojada no cérebro humano. O inchaço, a raiva.

          — Todo mundo da cidade vem aqui — era repetido. Tinha que ser um fenômeno natural. Uma bactéria ou algas nas águas poderiam causar os ataques de fúria. Ela mesma havia visto um redemoinho de luz verde flutuando. Não sólido, mas líquido. Mudava de forma, como uma mancha de óleo. E a luminosidade verde se desintegrava.

        Como seria tudo em janeiro? Ela tentava imaginar o quadro orquestrado pelos mortos: a chuva caindo, a lama transformada em uma brilhante lâmina. O lago vivo, um único organismo que se expandia.  
 
 
 
A projeção
            Primeiro uma forte sensação de energia passando por cada osso. Ângela olhou para baixo e viu o próprio corpo em vigília. A alma flutuava. O mesmo toque e a viagem:
             Ela era uma caçadora. Não tinha medo de se perder. E, havia as vozes e o espectro que a guiavam. O pequeno guatapará, envolto pelo luar, girou em direção ao regato. Mais alguns passos e entraram nele.  Velocidade antinatural. Meio carregados pelo vento e meio, pelas folhas mortas.

           Alcançaram a fenda na pedra, escondida entre arbustos. No chão, um desenho chamou sua atenção. O jogo da onça! Seria uma marcação?

 
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              Um ressalto e entraram pela estreita abertura até uma câmara mais larga. Ângela ouvia o pingar da umidade, via fios de água brilhando nas paredes, sentiu o calor gerado pela decomposição.
           Os olhos vermelhos do bicho brilhavam como fogo quando focaram um aglomerado de vermes, como uma medusa de muitos tentáculos, oscilando na pedra molhada. Os mesmos já conhecidos.
            Furiosa, ela se agachou, pegou uma pedra e atirou-a contra as estrelas verdes. A pedra ricocheteou no teto da caverna e bateu no chão com um estranho clangor. Uma leva de morcegos deixou a câmara.
 
 
 
           — Acorda, mãe! Mãe! — Raíssa agitava, em desespero, o corpo molenga em sono profundo.
          A mulher recobrava os sentidos lentamente. Permaneceu imóvel um instante, tentando processar o acontecido. A fonte, recordava. Encontrara a fonte do parasita: sempre que a caverna inundava, larvas eram levadas até o regato. E depois à represa. Um mergulho, uma involuntária inalação de água, e a larva encontrava hospedagem no humano.
 
           A doutora não vacilou.  Contou tudo na delegacia. Foi à onde conseguiu apoio e mão-de-obra. Ainda sem entender, ouvia dos soldados que esvaziaram o conteúdo de latas de gasolina no centro da caverna, bem embaixo da maior colônia de vermes, que pareciam sentir a proximidade do desastre, retorcendo-se freneticamente:
          — Ahiag̃ sozinho não é páreo para o poder do Mal. Por isso, enviou a doutora pelo mundo dos sonhos.
            — É um guardião da natureza.
            — Ele a guiou em forma de guatapará.
 
        Não sabia se era sonho, viagem astral ou deduções da lógica. Os fantasmas lhe fizeram um pedido. Ela os atenderia.
 
        Uma linha de fogo percorreu o túnel pelo pavio improvisado e a caverna, lá embaixo, explodiu em chamas. Reduzida a cinzas, camada sobre camada, espalhadas na entrada pelo vento. O cheiro de fogo no ar e se sobrepondo a ele, algo espesso — o cheiro de feitiço demoníaco.  
             Extinção instantânea da espécie. Os morcegos haviam fugido muito antes, abandonando os invertebrados.  
 
         Com a destruição da caverna, o motivo direto dessa epidemia de violência, e de todas as anteriores, permaneceria um mistério.
 
 
 
O engano
             Ângela não compreendia por que os fantasmas não estavam em paz... É que nenhum fogo neste mundo queima tanto, ou deixa tão pouco para trás.
 
            Um homem dava uma última olhada para a caverna explodindo. Certificou-se de que não esquecera nenhum detalhe. Uma caixa de espécimes, assim como algumas anotações, estava no porta-malas do carro, estacionado do outro lado da trilha.
          Alguém sabia desse hormônio e desses vermes... O cabeçalho de todos os exames pedidos: Labpharm. E todos os resultados negativos.  Deixaram a cidade passar pelo inferno.
       Logo, aqueles exemplares sobreviventes seriam alimentados nos laboratórios. O hormônio que aqueles vermes expeliam valeria uma fortuna em contratos, mas apenas se ficassem fora do alcance dos concorrentes.
 
               O tesouro, neste caso, era um hormônio produzido por um invertebrado único, um hormônio que causava o aumento da agressividade. Uma pequena dose era o que bastava para estimular um homem em uma batalha. Era uma poção mortal, com aplicações militares óbvias. Alto valor para quem soubesse negociar.
 
                    

 
TEMA: sobrevivência.