POR SOBRE OS MUROS DA COLINA - Parte I

Parte I

Frederico Collini jamais havia sido preso. O interior da viatura policial, os odores de coisa velha, a sensação de enjaulamento, tudo era novidade. Ele bem queria estar com as mãos livres das algemas para tocar as grades, medir a aspereza do ambiente. Mas era impossível no momento e se contentava em absorver pelos olhos, narinas e ouvidos tudo que lhe chegava em ondas cada vez maiores. Assim que se viu empurrado ali dentro, Collini captou o antigo cheiro de sangue. Aquilo sempre o empolgava. O sangue era vida, desde sua coloração radiante, espessura, odor e sabor. As roupas que usava estavam encharcadas do plasma vermelho, mas ele sabia que isso não tinha importância. Nada era significativo depois do que fizera. O mundo iria mudar, ele próprio não era o mesmo. Quando a viatura entrou numa curva mais obtusa, Collini foi arremessado contra o aço que lhe separava da humanidade. Bateu a cabeça fortemente e sorriu com a face voltada para cima notando o pequeno orifício no teto, muito provavelmente, resultado de uma bala perdida ou acertada. Quando o veículo parou e os policiais o retiraram sem muito cuidado, Collini ainda exibia leve sorriso. Isso causou ótimo efeito nos jornais que publicaram centenas de fotos do assassino preso em flagrante após eliminar cinco membros da mesma família que mantivera cativa por três dias.

- Doutor, o sujeito chegou - disse o homem assim que entrou na sala do delegado responsável pela área onde o crime fora cometido - mandei colocá-lo na cela um do corredor "C". Se o senhor quiser, mando trazer agora para depoimento.

- Não. O caso é simples, apesar de sujo. Deixa lá para ir se acostumando com o que lhe espera para o resto da sua vida miserável - enfatizou o delegado sem nem tirar os olhos da tela do computador - o que ele está fazendo, como reagiu ao ouvir os outros presos gritando?

- Nada, doutor. Sussurrou de volta e não fez mais nada.

- E sussurrou o que?

- "Não precisam me agradecer. Salvei vocês", algo assim, doutor.

Após alguns segundos, o delegado fechou os olhos enquanto ordenava: - Traz esse louco então, vamos terminar logo com isso.

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Frederico caminhava sossegadamente naquela tarde fria de outono. O inverno dava mostras de que seria rigoroso neste ano. As lojas situadas no centro da pequena Mountain Ville mal conseguiam atender aos inúmeros pedidos por casacos, botas e agasalhos forrados. Todos se apressavam em obter proteção o mais rápido possível. Exceto, Frederico. O clima não incomodava, muito menos o futuro. Havia decisão em seus passos e firmeza nos olhos. Quem o visse passar diria que o jovem estava destinado a grandes feitos. A enorme bolsa de couro em suas mãos, aparentemente pesada, não o desequilibrava, ao contrário, completava a dança dos seus passos, trazia equilíbrio e o completava. De quando em vez, Frederico baixava a vista para se confirmar que a carregava ainda, tamanha a simbiose entre ambos. E sorria, satisfeito consigo mesmo. Seu destino estava a poucas quadras.

Diante da casa antiga, ao estilo vitoriano, uma relíquia da cidade, Frederico estacou. As árvores em duplas fileiras que percorriam toda a calçada eram as únicas testemunhas do homem parado em frente à residência do sr. Valoire e família. Se elas, as árvores, possuíssem ouvidos, teriam escutado a voz de Frederico entoando palavras muito antigas em ritmo cadenciado. A cada volta dos estranhos fonemas em repetição, os pêlos de Frederico se eriçavam como se energizados por algo ou alguém trazido por aquele discurso hipnótico.

"Entre, faça o que tem que fazer, cumpra seu destino", foram as palavras que interromperam o rito. E Frederico avançou no jardim da casa, pisando no estreito caminho de pedras muito pequenas e brancas, quase flocos de neve endurecidos. Tocou suavemente na porta três vezes com a mínima intensidade possível, apenas o suficiente para se fazerem ouvidas. Ao notar que a cortina por trás da vidraça que enfeitava a porta se mexeu, Frederico olhou por sobre os ombros, viu as árvores lhe observando, a rua deserta, outras casas tão silentes que poderiam ser confundidas com lápides e se despediu do mundo que conhecia. Havia alegria nessa despedida, e também tristeza.

- Entre, esperávamos por você - disse-lhe a voz macia da srª Meredith Valoire. Frederico construiu o sorriso da melhor forma que pôde e entrou.

Assim que a porta se fechou, a vida voltou a funcionar no ambiente externo, algumas folhas caíram das árvores antes imóveis e houve barulho novamente. Ao longe, a sirene da fábrica da cidade anunciava o fim do turno dos trabalhadores. Iniciava-se a primeira das três noites de martírio.

(Continua ...)

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 18/02/2021
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