A Protetora - CLST 14
Saudade, foi difícil eu entender o que esta palavra queria dizer. Os “brancos” me explicaram, mas enquanto eu trabalhava de serviçal na comitiva, aprendi mesmo foi olhando os “bugres” enlaçados pelo pescoço, caminhando dias até a Capitania de São Vicente com suas cabeças baixas, pensativos, preocupados com aqueles que correram e ficaram caídos pela aldeia depois dos estampidos mortais dos caramurus, lumiando e despertando todos na calada da noite.
Saudade, a palavra é pequena demais pr`um sentimento tão grande e sempre que lembro dela isso me faz encher os “zóios d`água”. Fico assim... jururu. Oh saudade de minha mãe, Cunhãci!
O tempo esmaece a infantil memória e com o passar dos dias as imagens dela e de meu povo somem, só resta solidão. Homem que cresce sem família, sem identidade é igual Jacarandá sem raiz, não presta pra nada, nunca floresce. Por que eles a tomaram de mim? Por que tiraram tudo de mim?
Cresci na mata a serviço dos brancos após o extermínio da minha tribo, minha função era prover aquilo que a mãe natureza dispunha ao redor de nossos acampamentos. Embora fosse ainda garoto e não tivesse mais a minha mãe por perto, nunca me senti órfão ou desamparado. Parece até engraçado, mas sempre tive a sensação de acolhimento e carinho dispensados a mim pela mãe natureza. Na verdade, era estranha a forma que os Bandeirantes me tratavam. Eles costumavam ser rudes, ignorantes e violentos, mas quando encrespavam comigo algo no ar mudava, o vento soprava mais forte, os animais se agitavam, as frutíferas negavam alimentos, os peixes deixavam de fisgar, a água ficava barrenta e os nativos prisioneiros se encolhiam com as caras coladas ao chão como se rezassem para uma entidade temida cujo nome era dito aos sussurros e nem se conseguia ouvir direto. Isso sempre afastava os brancos e talvez por isso nunca me venderam como escravo, apenas me faziam permanecer na comitiva.
Assim era meu convívio com os Bandeirantes e com os índios itinerantes capturados por ele, nosso capitão, o temido Anhanguera, o algoz do povo nativo destas terras de Tupã. Sua reputação e histórias perturbavam a quem quer que fosse, só havia duas certezas ao permanecer em sua companhia, ou você lhe servia ou ele se servia de você. Ele e seus sertanistas não expressavam qualquer tipo de sentimento por mim, exceto desprezo, mas os índios gostavam de mim, me chamavam de Curumim. Alguns prisioneiros até brincavam dizendo que eu era protegido pela mata, pois eu era imune as picadas de insetos, imune aos ataques de pequenos bichos peçonhentos e o mais intrigante, eu nunca fui perturbado ou perdi noites de sono dentro da mata, nem por medo de onça ou por medo do Mapinguari. Pra mim nada era mais precioso que poder estirar a esteira de couro de capivara e admirar Jaci (Mãe Lua) e seus convidados num festejo celeste de luz lá no alto do negro céu.
Depois do massacre em minha aldeia passei a trilhar de Vila Boa de Goiás até a Capitania de São Vicente com eles, demanda após demanda. Os sertanistas subiam do litoral paulista rumo ao interior indômito. Eles procuravam vestígios dos “bugres”, espreitavam seus costumes, rituais e manias, tudo de longe. Mapeavam as trilhas e pontos de travessia dos rios, analisavam as armas artesanais dos nativos e se organizavam em grupos divididos, prontos pra dar o bote. Uns ficavam no acampamento, outros ficavam na cobertura com as “cospe-fogo” e o capitão com seus dois mais estimados matreiros sempre a frente. Mas, naquela noite, o capitão me ordenou que o seguisse. E eu fui, sem fazer ideia do que me esperava.
Seguimos em frente e logo avistamos uma aldeia, devagar fomos nos aproximando de braços abertos segurando balaios com quinquilharias. Se achegamos naquela populosa aldeia com sorrisos rasgados e mostrando boas intenções. Arapuca boa!
Assim, rapidamente, Anhanguera conquistava a confiança das “abas” (pessoas) e conseguia as informações sobre novas trilhas e tribos, veios d`ouro ou algo que lhe era interessante. Nosso capitão se preparou pra fazer sua mágica, começaria seu sórdido espetáculo.
Ouvi assuntar que quem inventou o truque foi um certo Bento, que de bento só tinha a graça do nome, por que de reputação era tão maléfico quanto Anhanguera, nosso capitão, o “Diabo Velho”.
No centro da aldeia, com a lua alta e cheia, Anhanguera sentou-se com o pajé, entre os dois ardia em brasa o angico, enquanto o pajé tomava o último gole de cauim. Ao redor, todo tabaréu se silenciou e o capitão proseou:
- Hoje tenho uma história que de boa só tem o milagre d`eu tá vivo. Logo que cheguei por aqui de Lisboa, tratei de garantir fartura e me embrenhei na mata. Com o podão, abri picada até subir a serra, onde brotava água da pedra que caia doce pra se salgar no mar. Já tinha pegado um preá e um teiú pra comer, só faltava o fogo, mas por azar começou a chover forte. Foi aí que percebi que por detrás do manto d`água que descia numa pedra, uma luz cintilava. Beirei entre a rocha e o manto gélido e cristalino que já descia mais feroz. Então, eis que uma gruta iluminada se revela e nela uma figura franzina, de cabelos longos e cinzentos que se aquecia ao lado da fogueira.
O capitão gesticulava e encenando, continuou:
- Me acheguei e o velho sem me olhar nos olhos permitiu que eu assasse os bichos e com a voz rouca pediu que eu pegasse um pouco d`água com sua caneca, e assim o fiz. Entreguei-lhe a caneca cheia e pude ver seus olhos negros, sem nem um traço de branco ou vida neles, ele disse que se chamava Cão Miúdo e perguntou se eu havia reparado que naquela serra, naquele mato, não havia muitos animais, pouca vida existia ali. Nessa hora, meu corpo tremeu, pois de fato nada avistei além daquilo que estava na fogueira. E ele disse, que tudo que ali passava ele mandava pro inferno para agradar o diabo e garantir seu retorno pra casa.
Anhanguera aproximou a cara perto da fogueira, deu um tom mais grave à sua voz e foi relatando o caso pausadamente:
- Eu estava petrificado... com medo. Não há nada no mundo que faça o Homem tornar-se mais penitente... do que o MEDO. E justamente por isso aceitei a proposta do velho. Toda vez que eu entrar no mato pra buscar riqueza... quando voltar... devo deixar algumas “vidas” pra ele naquela serra... - o silêncio imperava, todos concentrados nele - e pra selar o acordo ele pegou um graveto em brasa... tocou com ele na água da caneca... e a água ardeu em chamas.
Assim que o capitão terminou, o pajé zombou dizendo:
- Quando água queimar, pajé Galdino não mais índio será, branco se tornará.
Toda a aldeia dispara a gargalhar, não esperavam que a piada viraria tragédia...
Anhanguera nesse instante, riu também. Pediu ao pajé a cuia de cauim vazia para lhe mostrar seu truque e exclamou:
- Pois olhe bem pajé, meu amigo, fique atento. Garanto que ao invés de branca, sua carne ficará preta e o amanhecer jamais verás!
Com a cuia na mão se levantou, puxou do bornal uma garrafa daquela água, destampou-a, inclinando a cabeça para trás, derramou um trago na boca e cuspiu na fogueira levantando labaredas infernais. O “Diabo Velho” mostrava sua face com aqueles olhos negros sem vida. Encheu a cuia com a água da garrafa e atirou através das labaredas.
Foi horrível - Pajé Galdino em chamas gritou desesperadamente, sacudindo-se sem rumo, se escondeu na taba onde sapecou sem parar, espalhando o fogo por todo lugar.
Anhanguera e os homens que ali estavam assobiavam alto intimando aqueles que estavam com as “cospe fogo” na retaguarda para invadirem e saquearem a aldeia.
No meio daquela cena... tiros, gritos, horror... e eu ali, testemunhando a violência dos colonizadores, seu desprezo pela vida nativa, toda infâmia cometida e o jorrar torrencial de sangue.
Sem saber o que fazer me virei pra fugir e dei de cara com ele, Anhanguera.
- Diga mirim, isso lhe parece familiar? Mataremos todos. Hoje encerro minha demanda e adivinha qual vida sacrificarei para o Cão Miúdo?
Ele puxou uma faca e percebi o medo pesando sobre meus ombros, me pressionando... caí de joelhos ao chão. Ele vagarosamente caminhava em minha direção assobiando. Um passo, um assobio. Mais um passo, outro assobio. Neste instante o medo trouxe à tona toda lembrança de quando ele invadiu minha aldeia e matou Cunhãci. Chorei. Chorei, pois recordei daquele momento horrendo, quando eu criança assisti minha mãe caindo no mesmo truque da água ardente. Chorei, pois me lembrei de seu verdadeiro nome... Cunhãci foi o nome que os índios aprisionados me diziam, pois na língua tupi Cunhã quer dizer mulher e ci quer dizer mãe, mulher-mãe. Mas agora lembrava... lembrava o nome dela... minha mãe. A um passo de mim Anhanguera estava pronto para o último golpe, mas surgiu um assobio muito mais sinistro e estridente que o dele... Vinha da mata, e com o assobio ouviu-se o estalar de chicotes invisíveis, tão rápidos que mal sabíamos de que direção vinham as chibatadas, ninguém via. E agora os gritos eram dos sertanistas, conhecidos também como Bandeirantes, e quando tudo silenciou restava apenas Anhanguera e eu, que agora já sem medo retomava as forças para me erguer, enquanto ele com sua faca tentava avistar quem havia estalado o chicote, que ao tocar seus homens lhes partiram ao meio.
Silêncio... tão profundo quanto a escuridão que o acompanhava... a lua cheia foi coberta por nuvens pesadas, carregadas de vingança. A clareira foi sendo tomada por uma leve neblina. De repente saiu da mata uma silhueta feminina caminhando em nossa direção. Ao se aproximar, eis que surgiram pequenos vagalumes que em meio àquela escuridão emitiam esplendorosa luminescência revelando-a. E então eu vi... Eu feliz pude rever minha mãe enquanto Anhanguera agonizava tendo o chicote envolto ao pescoço. Ela me sorria, enquanto apertava o chicote. Era o fim de Anhanguera... era o fim da tirania. Eu finalmente pude matar a única coisa que poderia me matar... a Saudade. E antes de seu último suspiro, pude ouvir Anhanguera dizer o nome dela.
- Ca... Ca... Caipora!
TEMA: Folclore Brasileiro.