Inflexível - CLTS 14
"Não se conjuga viver sem emprestar do verbo o estofo que urde as lacunas de suas condições. São nelas que, assim, entendemos que não há óbice moral diante da necessidade, pois diante desta, esclareceu o Martelo, todo idealismo é inútil "
(Panteão de incômodos)
"Mãe dos males fatais à Sociedade,
Vidas, honras destrói, cismas fomenta,
Nutrindo n'alma as serpes da Maldade.
O próprio coração que come a alenta,
Vive afogada em ondas de ansiedade,
Da frenética raiva se alimenta"
(Francisco Joaquim Bingre).
***
Qual o sentido da vida? Ao arrepio de todas as respostas metafísicas, imiscuídas em filosofia séria, amparadas por conjecturas literárias da mais alta competência , ancorada na poesia dos melhores poetas, sabemos qual é. E, a reposta torce-nos o intestino, pois é óbvia e não permite elucubrações divinas. Acerta o alvo do realismo objetivo. E, somos espécie infantil. Queremos as fadas e os unicórnios. Incapazes de crescer ao mundano, inventamos. Entretanto, tripas e outros tecidos menos nobres, não deliberam aceitar nossas birras existenciais.
No fim, estamos fodidos pelo instinto. De ir além. Sobre a vida. Sobrevida .
***
Dalmei, rapaz de líricas convicções, costumava flanar na alegria observada em casos onde a certeza, mesmo, não é certeza alguma. Há quem disserte, porque sempre, anteparo da licença permitida aos peremptórios, há quem o faça, que tal característica, vista em Dalmei, concede ao questionável auspício da situação uma contradição, ainda que velada. Ou era para o usufruto do sujeito, ou era para usá-lo, como a rosca que não está alinhada ao diâmetro do seu destino.
Pois, então, não é que, na estória de Dalmei, a vida tentou-lhe dar outra volta, no parafuso de seus dogmas? E, non sequitür, espanou-lhe? Sim, você que mo acompanha, submeteu Dalmei àquela pressão sói esta senhora tem habilidade para. Creia, vossa mercê que, à sua mercê tem tudo o que é vosso.
Tendo sua generosa atenção, vou-lhes dizer como, ao cabo, forçoso consensual da narrativa, Dalmei foi barafustado daquilo que cria, cria como só quem crê, crê acreditar.
A paróquia fincava residência na pequena Moralópolis, um mimo no interior do país. Cidade provinciana que era, era dali que suas condutas deitavam, nos cidadãos, as normas cediças de sociedades severas na defesa de suas hipocrisias.
O edifício, branquinho, com a cruz em sua testa larga, apontando ao firmamento, alicerce de todos os pedidos em vão, imanava sua exigência inflexível. O séquito era cobrado lá estar, com a responsabilidade de um estômago fanático. O pároco, cura de indolente, como sugere o currículo, era questão de obediência cívica. E, Dalmei era o mais. Mister colocar, a epítome do esperado. Não havia adversário a lhe arranhar, sequer, a beatitude.
Mas, porque sempre há um mas em tudo, a vida não interrompe suas necessidades indefectíveis em função de nossos gozos existenciais. Não, senhor. Não, senhora. Juramos que é aí que ela recresce seus caprichos! E, foi assim com Dalmei, quando Dos Anjos veio. Veio e chegou! Como aquela epifania de seios fartos e glúteos apetecíveis! Envolta num manto de sacralidade que nos torna a haste rija e a glande intumescida!
No busto macio das conversas encetadas à saída da cerimônia eucarística, Dos Anjos ia protagonista. Dalmei, agora adjunto, deixava a nave da abadia prostrado por sensação ignara até ali. Doía uma dor imperscrutável às virtudes eclesiásticas de su'alma. Inchada pelo feno que ignora diagnóstico. Dalmei passa por Dos Anjos com olhar enviesado. Eivado daquela matéria diáfana que só o alvo sabe se tratar. E, Dos Anjos, espírito límpido, enxergou. E capitulou. Não devia. Mas, é a regra destes distintos.
Um réquiem era querido por Dalmei. Um maldito réquiem. Afinal, não o havia sido àquelas coitadas pústulas morais que outrora o flechavam em elogios ascéticos? E, o réquiem era só silêncio diante das súplicas, no entanto. Estava escondido em algum lugar da cabeça calva, inacessível a quem perdeu o que nunca encontrou? Dalmei infestava-se de um sentir lodoso, que grassava o intróito de sua angústia e contaminava aquilo já contaminado pela natureza. Dalmei socava com raiva o que se socaria com aplausos ministeriais!
Dos Anjos nasceu numa manjedoura, assinavam muitos. Outra coisa era impossível. E, olha que o impossível é matéria de possibilidade discutível, assim sugere a etimologia. Desde tenra infância era terno, destes a fazer correr a notícia em casa mesmo de desafetos históricos. Dos Anjos, o Dos Anjos? A pergunta pernoitava na cabeça de quem a elegia, e nem precisava soldo algum depois de levantar. Inda ganhava café. Dos bons! Na juventude , o padre daquele lugar, lugar donde vivia Dos Anjos, tentou telégrafo à Santa Sé, pois a juventude do rapaz era só milagre. Mocidade curtida por Deus e em companhia de Nosso Senhor, choravam todos ali.
E, não é, pergunta que amassa qualquer outra pretensão, que Dos Anjos caminhava noutra direção, então?
Pois, sim. Que, pois não já não se põe o suficiente.
Quando flagraram Dos Anjos persignando-se no sentido anti-horário, foi o apocalipse. Uma escatologia de botequim. Mas, uma. Ali eram irrevogáveis as conclusões que tem na suas premissas o único acordo possível. Nem Dos Anjos, o Santo Dos Anjos, tinha prerrogativa para deitar mudanças assim.
No ônibus, a caminho qualquer, pois este é o que se vai a frente de quem um caminho nem tem, Dos Anjos divagava. "Como pôde?".
Dalmei saiu cedo. Muito. Uma testemunha jurou: umas quatro e meia. AM! Resoluto, mas manso, motivo pelo qual os resolutos sempre parecem mais do que estão, deu voltas ao quarteirão. E, voltas. Outra testemunha, depois, que é onde as coisas acontecem, viria a falar, enquanto bebericava o que se beberica no bar do devoto Onofre: tantas vezes contornou a quadra, que vi dali sair um atleta!
As batidas à porta da igrejinha fremiam seu interior. Padre Justiniano assustou-se, atestaram muitos. Será a anunciação? Era Dalmei. Anunciando.
Padre, concede uma entrevista?
Meu filho, eu não. Mas, Deus, de quem sou arauto, sim. Sempre. E, olha lá se isso são horas!
Hoje, as beatas rezam o terço, enquanto cochicham ter passado duas horas até Dalmei deixar o edifício do Senhor. Quem viu, viu um Dalmei mais calmo. Quem não viu, viu um facínora. Afinal, que qualidade de pessoa podia tanta desgraça?
Como Justiniano não abria, abriram para ele. E, ele não abria porque estava aberto. Da abertura, contou Vargas, o PM, as tripas evoluiram numa trama cosida por arte quase sacra. Ou, algo assim. Como permite o arcabouço léxico do PM. Quem liga?
Uma semana atrás do famigerado, antes beato, e só o silêncio do desencontro. Nada de Dalmei. Talvez, soltavam uns, o próprio Diabo teve com ele, e indeferiu seu arrependimento. Porque gente mesmo se arrepende, não é? Um mês. Dois. Troca-se o cura. Sentimentos pelo eviscerado. E, o tempo fez seguir a vida.
Na praça, caniculares discussões envolviam os retóricos do senso comum. Era um mais que o outro, quando o outro mostrava mais que um. Era domingo. Crepúsculo. Saídos da homilia, punham em disputa suas convicções, bandeiras bolorentas de uma defesa datada. Dos Anjos era alçado a juiz. Dele seria parida a verdade. Estava ancorado por Ignácio. O novo sacerdote. E, sacerdote que é sacerdotes, alicerça até a mentira, que não passa de uma verdade esquecida de acontecer, já definiu o poeta. Dos Anjos, enfiado no debate, se preparava para lustrar sua sentença, com o verniz titubeante dos falastrões quando, essa circunstância de tempo que o advérbio anuncia desastre, um grito insurrecto viceja da penumbra ignorada pelas lâmpadas cansadas que ornam a reunião.
Estão imiscuídos na glória que me levaram, não é mesmo?! Ainda que uma enfiada no medíocre! Mas, era-me! Era-me, escumalha!
Dalmei salta à luz bruxuleante, com saliva belicosa espargindo aos seus, ensinando como espumar de cólera. Que professor, o medo sugeriu aos espectadores! A faca em uma das mãos rebola no ar, singrando o espaço e sôfrega por talhar. Dalmei avança avançando o avanço dos furibundos. Sanguissedento orientado pela estética da amência desmedida.
A malta é dispersada pelo terror gáudio, aquele um a peidar os cheiros que só o vaticínio a se cumprir garante. A rubrica dos condenados clareia o enxerto desarrazoado que cobrirá a lacuna da miséria que fricciona cada pele flácida a correr do fio que antevê cravar-se com auspício naquele a desafiar o alheamento catedrático de Dalmei e sua faca.
*****
Espalhado por entre os rins há uma sofreguidão canicular! É aí, num estilo didático plural, que nos permite o desejo entender não existir reticências diante de seus éditos. A eles cumpre obedecer. Insurgir é útil como um acordo moral anacrônico .
Sede prático, exclama ele! Ela. Todos. Infla-te de coragem e admita-se verme. O único fatalismo por conceito.
Vá, faze o arabesco de teu destino o que o destino engana-se ser motorista, e lede em suas margens claudicantes toda sombra daquilo que o tempo teceu com sua ordinária indiferença!
Epílogo
"Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.
Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?"
(Fernando Pessoa)