O Mineiro

  Matias recebia muitos e-mails e cartas. Natural, ele era praticamente um Sherlock Holmes contemporâneo – não exatamente em inteligência e personalidade, mas por resolver casos que ninguém mais conseguia. A carta do menino Vitor, entretanto, era diferente das outras.

  Vale do Nheengatu, Amazonas. Matias caminhava por uma linha de trem, cercado por um matagal. Ele sabia, pelo relato do menino (que tinha doze anos), que estava cheio de armadilhas. Pessoas haviam morrido por ali, porque a população local não queria que forasteiros se intrometessem em seus negócios. A ferrovia parecia o local mais seguro, e ainda garantia que ele não se perderia. Ao atravessar uma ponte sobre o ribeirão, seguindo ainda a linha de trem, chegou a um vagão abandonado, com manchas de sangue. Seria humano? Animal?

  Continuando pela ferrovia, encontrou restos de um corpo, mais especificamente duas pernas, que não pareciam ter sido cortadas há mais de 24 horas. Seguindo um rastro, encontrou o resto do corpo mais adiante, no mato. Vasculhou a área, procurando outra pista. Finalmente, colocou a mão direita sobre o corpo e mordeu, com força, o indicador da sua mão esquerda. As coisas ao seu redor se movimentaram como em um filme, e cenas, na forma de flashs, invadiram sua mente.

***

 

  Lá estava Vitor, amarrado a uma árvore. Havia também um velho acertando a cabeça de um rapaz – aquele cujo corpo estava ali – com um cassetete, várias vezes, até abrir seu crânio. Depois cortou as pernas dele com um facão, ensandecido em fúria. A seguir foi até Vitor, gritando coisas incompreensíveis e exalando as piores intenções. O velho era avô de Vitor, e o rapaz seu irmão mais velho.

***

 

  Quando Matias soltou o próprio dedo, a visão acabou. Refletindo sobre as coisas que viu, foi até a árvore onde Vitor havia sido amarrado, a poucos metros do corpo, e encontrou a corda, amarrada à árvore, na mesma posição em que o menino estava preso. Era como se o garoto simplesmente tivesse desaparecido e a corda permanecesse ali.

  Seguindo adiante, não muito longe dali, Matias chegou ao pequeno vilarejo. Parecia ter sido abandonado às pressas. Seja lá o que aconteceu depois, pelo que ele podia ver, todos os seus vizinhos desapareceram de repente. Havia, por exemplo, uma pilha de tijolos ao lado de um carrinho de mão, mostrando um trabalho claramente interrompido.

  Matias vasculhou o local por alguns minutos. A noite estava se aproximando, o que não era bom. Achou algumas marcas de sangue e sinais de luta, mas nada conclusivo. No alto de um outeiro próximo, havia uma igreja e um cemitério, onde não encontrou nada diferente. Caminhou até uma marca de sangue, e fez o mesmo procedimento: mão direita na evidência, dedo indicador esquerdo entre os dentes. Apertando com força, os flashs do passado começaram.

***

 

  Viu um homem e uma mulher discutindo, bem ao lado de onde ele estava. Eram os pais de Vitor. Viu com eles meia dúzia de pessoas, agarrando o menino para levá-lo ao cemitério.

***

  Matias voltou ao cemitério, que não era tão grande. Tocou em um dos túmulos, e pôde ver a continuação daquela cena.

***

  Vitor se debatia e lutava, gritando, enquanto seus vizinhos o arrastavam. Eles abriram em um dos túmulos uma tampa, revelando uma passagem secreta.

***

  Matias arrastou a tampa com dificuldade. Abaixo dela uma escadaria que dava em um tipo de cripta, com séculos de existência, muito anterior a todas as construções na superfície, exceto, talvez, pela igreja. Não era tão grande, explorou-a rapidamente com a ajuda de uma lanterna. Estava vazia, as paredes com diversas gravuras de animais. No meio uma mesa de pedra, com dois metros de comprimento e um metro e meio de largura.

  No canto, encontrou um alçapão, facilmente aberto, como se as dobradiças estivessem sempre sendo lubrificadas. Ele dava em uma escada caracol de ferro, bem instável, do tipo que balança toda quando alguém anda por ela. Lá embaixo, um túnel escuro e frio.

  Esquadrinhando com sua lanterna, Matias pôde ver que o teto tinha lâmpadas apagadas, mas que pareciam novas. O túnel parecia ser usado constantemente, era um tipo de mina. Não havia material de mineração em lugar algum, então provavelmente era uma mina abandonada, utilizada para outros fins. Certamente era o lugar em que Vitor havia dito ter entrado por uma passagem na floresta, onde acordou a entidade que ele chamou de O Mineiro.

  Inspecionando, Matias encontrou uma caixa de força. Foi quebrada com uma picareta, que estava jogada por perto. Havia sangue seco na ferramenta. Ele a pegou com a mão direita e mordeu o indicador esquerdo.

***

 

  O grupo arrastou Vitor para dentro das minas (as luzes estavam acessas). Sua mãe surtou de repente, babando e gritando “O Mineiro precisa dormir! O Mineiro precisa dormir!”, pegou na picareta e acertou a cabeça de alguém duas vezes. Antes que fosse controlada, acertou a caixa de força com uma fúria inumana, fazendo todas as luzes se apagarem. O pai de Vitor então lhe deu uma facada, sem qualquer remorso, e a estrangulou.

***

– Eles estavam loucos, todos eles. – Matias disse para si mesmo. – O Mineiro os estava tornando bestas alucinadas.

  Matias desceu mais e mais pelo túnel, que parecia girar em círculos enquanto se afastava da superfície, até chegar em um grande portão de ferro. Estava trancado com um cadeado pesado. Precisou atirar duas vezes para quebrá-lo. Ao abrir o portão e dar dois passos adiante, quase caiu em um buraco. Era o fim da mina. Apontou com sua lanterna para baixo para ver se podia enxergar algo, mas era profundo demais. Encostou no portão e usou sua habilidade nele.

 

***

  Havia uma dúzia de pessoas, iluminando o lugar com algumas poucas tochas. Tomaram o menino e arremessaram-no para dentro do buraco, sem pestanejar. Vitor berrou, mas seu grito foi interrompido de repente, e um silêncio sepulcral o substituiu.

  – O sacrifício foi feito! – Disse um homem. – Aquele que acordou o Mineiro foi entregue a ele. Agora ele pode voltar a dormir.

  A cena mudou então, para outro ponto mais distante do passado. Matias viu aquele mesmo homem, só que bem mais jovem, um rapaz com menos de dezoito anos. Com ele estavam três sujeitos mais velhos, dois pareciam ser seus parentes. Eles estavam invadindo a mina abandonada por meio de uma entrada na floresta.

  Outro salto no tempo, e os quatro estavam agora diante de uma sala dentro da mina com diversas pepitas de ouro armazenadas. O detetive ouviu tiros então, e os quatro saíram correndo.

  No flash seguinte, os quatro estavam em um acampamento na floresta, à noite, discutindo o que aconteceu, em volta de uma fogueira. Um deles disse ter visto um lobo, ou coisa parecida, saltando da escuridão do nada e tentou atirar nele, mas ele não controlava seu próprio corpo muito bem. Os outros três relataram também ter perdido o controle sobre o próprio corpo.

  Os três homens mais velhos pararam de falar de repente, em um tipo de transe, olhando para alguma coisa atrás do rapaz mais jovem. Os olhos deles esbranquiçaram, e o rapaz estremeceu. Olhou para trás lentamente, e deu de cara com o final de uma calça surrada. Ao olhar para cima, viu um homem gigantesco, com uma antiga roupa de minerador, cuja distância entre os pés e o joelho era maior do que a altura de um homem de pé. Ao olhar em seus olhos, o rapaz ficou em transe também. Então os quatro pularam no fogo e começaram a lutar, e tudo ficou confuso.

***

 

  Matias tirou o indicador esquerdo da boca de repente, pensando rápido. Havia acontecido antes, alguém havia despertado o Mineiro, e ele tomou as vidas deles. Mas o vilarejo inteiro desapareceu dessa vez, não só Vitor. O que houve? Só havia uma explicação possível: alguma coisa deu errado, e o Mineiro não voltou a dormir.

  O detetive se virou para sair, mas deu de cara com um par de joelhos bem na altura dos seus olhos. Ainda fez menção de reagir, mas o Mineiro foi mais rápido que ele, agarrando-o pelos ombros, erguendo-o vários metros acima do solo e jogando-o com uma força descomunal para dentro da cova. Durante a queda, por impulso, ele levou a mão direita (ao invés da esquerda) à boca, e mordeu com tanta força que seu dedo estalou, usando a outra face do seu estranho dom.

***

 

  Matias sacudiu a cabeça, meio confuso. Estava parado em um carro velho, no meio de uma estrada deserta. Sentia seu corpo bastante cansado, mas não o cansaço que vem de um esforço prolongado, o cansaço da velhice. Olhou seu próprio rosto pelo retrovisor e estava velho, bastante velho. Pior do que isso era que ele não se lembrava quem era, nem mesmo seu próprio nome, nem como fora parar ali.

  Ainda confuso, vasculhou o carro em busca de alguma explicação. No porta-luvas, encontrou uma velha fotocopia de uma velha carta, escrita décadas antes:

  “Oi, meu nome é Vitor Matias, e eu sou você. Meu corpo tem doze anos no momento que estou escrevendo isso, mas você deve estar lendo isso alguns anos depois de mim. Ou antes. Bem, você está confuso agora, e suas memórias falhando, por causa do seu dom. Morda seu dedo indicador esquerdo, e você vai ver coisas que aconteceram no passado relacionadas àquilo que está ao seu redor. Você não poderá escolher o que vai ver, mas geralmente será bem o que precisa. Morda o seu indicador direito, e você vai saltar para outro ponto no tempo e no espaço, no passado ou no futuro. Use essas habilidades com muito cuidado, porque elas podem alterar a realidade de uma forma imprevisível, e fazer muita bagunça. Já aconteceu de eu saltar muitos anos no futuro e ficar em um corpo jovem, ou encontrar outra versão de mim mesmo de um tempo diferente, ou saltar para uma época em que eu era criança, mas com um corpo de adulto, etc. Então somente use o poder da mão direita em caso de vida ou morte.

  Como eu disse, meu corpo tem doze anos no momento em que estou escrevendo isso, mas vivi diferentes momentos da nossa vida e consigo me lembrar bem deles. Não se preocupe, com o tempo você vai se lembrar também, até ter que saltar de novo. O que você precisa saber é que cresceu no Vale do Nheengatu. Aos doze anos, três dias no futuro em relação ao momento em que estou escrevendo essa carta, você acordou uma entidade chamada O Mineiro, bisbilhotando na floresta. Ele tem, entre seus poderes, a capacidade de fazer as pessoas surtarem e se tornarem maníacos assassinos e canibais. Os antigos chamam isso de “boca torta”.

  Durante essas idas e vindas por realidades paralelas, eu aprendi muita coisa. Para o Mineiro voltar a dormir, é preciso fazer um ritual e sacrificar a pessoa que o acordou. Ou seja, você precisa morrer. Então você deve ir até o Vale do Nheengatu na época correta, e eles vão fazer o ritual e te sacrificar para a entidade. Você não pode morrer de nenhuma outra forma, senão o Mineiro nunca mais voltará a dormir, e isso será catastrófico. Acontece que quanto mais os anos passam, conforme ele não consegue dormir, ele vai aumentando mais e mais o seu poder e a sua fúria.

  Se algo não for feito, essa entidade pode extinguir a raça humana. Só o teu sacrifício pode parar isso. Portanto, quando chegar a hora, você deve ir até o o Vale do Nheengatu e se entregar para que eles te sacrifiquem. Tenha cuidado, há muitas armadilhas na região do Vale, eles não gostam de forasteiros, várias pessoas morreram por tentar se aproximar. E não os culpe por isso, já que o Mineiro é uma força muito perigosa. Nós fizemos muito mal em acordá-lo. Agora, cabe a nós fazê-lo voltar a dormir.

Ass.: Vitor.”

  Ainda confuso, esforçando-se para lembrar-se de mais, Matias olhou ao redor. Tudo estava deserto. Parecia mesmo um cenário pós-apocalíptico. Deu partida com o carro. Na beira da estrada, apenas construções abandonadas. A gasolina no tanque estava pela metade, mas no banco de trás havia três garrafões cheios.

  Após viajar dois quilômetros pela estrada empoeirada, viu algo que chamou sua atenção: um posto de gasolina, com uma placa escrito “ESTAMOS FUNCIONANDO”. Temendo, Matias entrou no posto, olhou ao redor. Parecia ter sido limpo recentemente. Sacou seu revólver, aproximou-se de uma das bombas de gasolina.

  Ele levou seu indicador esquerdo à boca, mas antes que pudesse usar seu dom, sentiu uma mão tocá-lo por trás. Virou-se rapidamente e apontou a arma para o sujeito.

  – Oh, por favor, não me faça mal! – Suplicou o homem. Era baixinho, muito magro e franzino, meio sujo, cara de cachaceiro. Vestia um uniforme de frentista bem surrado. Tinha uma tatuagem de corvo verde no pescoço.

  – Desculpe, desculpe... – Matias disse, abaixando a guarda. – É que... o senhor me assustou.

  – Sinto muito. É que não passa ninguém por aqui há um bom tempo.

  – Por quê?

  – Como assim por quê? Você não sabe?

– Bem… não estou muito bem da cabeça.

– Por causa dos vampiros, cara. A maioria da população do Brasil morreu ou fugiu. Você não sabe mesmo de nada?

  – Não, minha memória… aliás, eu não faço ideia de onde estou. O Vale do Nheengatu fica por aqui?

 – Sim, você não está tão perdido assim, amigo. – O homem riu, satisfeito por ver alguém depois do que pareceu a Matias serem anos de solidão. – Siga vinte quilômetros adiante na estrada e vai chegar ao Vale.

  O homem ofereceu combustível a Matias, que recusou educadamente. Ele, obviamente, insistiu.

  – O problema é que eu não tenho dinheiro.

  – É algo bem comum hoje em dia. – O homem riu. – Me dê o seu sobretudo então.

  – Como?

  – Sim, o sobretudo pelo tanque cheio, que tal? Nesses tempos estranhos que estão chegando, uma boa roupa vale mais do que dinheiro.

  Meio a contragosto, Matias o deixou completar o tanque. Prosseguiu viagem pela estrada empoeirada, o caminho ainda totalmente deserto. As construções abandonadas foram logo substituídas por um matagal alto ao redor da estrada. Passados alguns quilômetros do posto de gasolina, o carro começou a perder força. O motor começou a fazer um barulho estranho, como se estivesse vomitando, e o carro morreu. Quando Matias saiu e abriu o capô, um cheiro de ovo podre e queimado atingiu suas narinas e o deixou zonzo.

  – Como eu fui cair em uma desgraça de truque tão velho?

  O detetive particular ficou parado por um tempo, a arma em punho, olhando em volta. Algumas memórias começaram a voltar, gradualmente. Lembrou-se do que aconteceu antes do último salto no espaço-tempo, de ter sido atacado pelo Mineiro. Após alguns minutos, colocou suas coisas na mochila e saiu andando. O sol queimando a cuca, ainda bem que deixou o sobretudo para trás.

Na beira da estrada, viu uma cabana de madeira com um caminhão estacionado ao seu lado. Desconfiado, aproximou-se e chamou. Foi respondido quase imediatamente. Um homem alto, muito magro, bastante pálido, vestido com roupas que pareciam quentes demais para o clima da região – inclusive luvas –, de modo a deixar apenas a cabeça descoberta. Tinha uma tatuagem ou pintura na nuca, mas do ângulo em que Matias estava não era possível ver exatamente o que era.

  – Olá! – O sujeito parecia desanimado. – Deixa eu adivinhar, você abasteceu seu carro em um posto de gasolina e ele acabou morrendo.

  – É, isso mesmo.

  – Nas últimas semanas vieram uns sete na minha porta contando essa história. Uma hora dessas eu vou lá e mato aquele sujeitinho sujo.

  – E ninguém denunciou à polícia?

  – Polícia? – O homem deu uma boa gargalhada. – Não ouço falar de polícia há muito tempo. Ah, minto, o último que sofreu esse golpe foi justamente um policial.

  – Bem, meu nome é Matias. Estou procurando o Vale de Nheengatu. Fica muito longe daqui?

   – Você já chegou, Vitor. Aqui é o Nheengatu.

  Matias sorriu.

  – O que procura por essas bandas? Algum parente?

  – Vim matar o Mineiro.

  O sujeito tremeu, denunciando-se. As vítimas da “boca torta” perdiam em parte sua cognição e acabam cometendo erros como esses. Por outro lado, o velho corpo de Matias já não respondia tão bem, de modo que ainda que ele tenha mirado a arma contra o homem primeiro, este conseguiu saltar sobre ele e golpear seu supercílio com tanta força que lhe causou um ferimento e o deixou um pouco zonzo. Ele apertou o gatilho, mas errou.

Outra pessoa agarrou Matias por trás e mordeu com muita força seu pescoço. Dentes humanos não são tão afiados, mas causaram-lhe uma dor atordoante. Quando o detetive se deu conta, haviam quatro pessoas ao redor dele, uma meteu-lhe uma faca na barriga, outra tomou-lhe a arma. Em um movimento rápido, Matias conseguiu soltar a mão direita e enfiar o dedo direito à boca, mordendo com força.

***

 

  Matias acordou com o calor da grande fogueira. Ele não se lembrava quem era ou o que estava acontecendo, mas havia dado um salto bem pequeno no tempo. Os “vampiros” o cercavam, mas ele não sabia o que eles eram. Para ele parecia apenas membros de algum tipo de seita, totalmente nus, com o corpo coberto de pinturas animais, todos muito magros.

  Enquanto sua visão focava, ele percebia sua real situação. Estava em uma mesa de pedra, amarrado com grossas correntes pelos pulsos e tornozelos, ao lado de uma fogueira. Havia pessoas crucificadas, com as tripas expostas, mas ainda vivas e gritando de dor. Elas também tinham as mesmas pinturas dos outros, o que o fez pensar que, se agiam daquela forma com os de seu próprio grupo, imagina o que fariam com ele?

  O cheiro horrível de carne carbonizada invadiu suas narinas. Vinha da fogueira. As pessoas ao seu redor bebiam sangue, se banhavam em tripas, faziam desenhos nas peles uns dos outros, enquanto emitiam um estranho cântico em um idioma indígena antigo em um ritmo frenético. Era um ritual. Uma menina, de mãozinhas esqueléticas, metia a mão nas vísceras de um homem empalado e se lambuzava em seu sangue. Perto dela, três meninos jogavam futebol com uma coisa que não parecia bem uma bola, porque tinha longos cabelos escuros.

  Velas vermelhas enormes estavam organizadas ao redor da mesa de pedra. Pétalas de rosas de diferentes cores espalhadas sobre a mesa e ao redor dela, bem como algumas ervas mal-cheirosas. Matias tentou se balançar e gritar, mas não podia se mexer direito ainda. Sua mente totalmente embaralhada. Parecia um pesadelo, ou o inferno.

  – Ei, olha! Ele acordou. – Disse uma voz feminina.

  – Eloá! – Outra voz feminina a repreendeu. – Continue invocando o Mineiro.

  Lágrimas de terror correram pela face enrugada de Vitor Matias. Algo pegajoso, liso e molhado, se arrastou pelo rosto dele.

  – Eloá! – Não faça isso, é nojento.

  – Desculpe, eu só queria saber como era o gosto das suas lágrimas.

  Houve uma pausa. O velho finalmente pôde ver melhor as duas adolescentes (uma loira e uma cabocla) conversando perto de sua cabeça.

  – Bem... – A loira dizia, meio envergonhada. – Qual é o gosto?

  – Parece água salgada.

  Elas riram e, em um movimento coordenado, deram um profundo arranhão no rosto dele, fazendo-o sangrar. Uma unha pegou no cantinho do seu olho direito, enchendo-o de sangue. Ele fechou ambos os olhos para se proteger. Um homem subiu a mesa de pedra, e ficou com os pés nos lados do tronco de Matias. Quando ele abriu os olhos, viu que o homem tinha uma faca na mão. Baixinho, nu, o corpo coberto de pinturas de corvos verdes, seu rosto parecia familiar. Matias não conseguiria se lembrar a tempo, mas era aquele frentista que o colocou numa armadilha. Quando o homem subiu sobre a mesa, os cânticos se tornaram mais intensos e selvagens.

  – Irmãos e irmãs. – Disse o falso frentista. – Hoje, finalmente, o nosso mestre vai descansar. Por muito tempo ele tem desejado isso, e até o presente momento tem sido impedido. Mas aqui está o sacrifício, ele veio às nossas mãos por conta própria. Hoje o ritual será feito. Hoje o Mineiro voltará a dormir.

  – Do que você está falando?! – Matias finalmente conseguiu falar. – Quem são vocês? Quem é esse Minerador? O que está acontecendo?

  – E o ritual, meus irmãos. – O homem ignorou Matias. – Consiste em devorar o sacrifício vivo.

  Houve intensa comemoração.

  – Quem gostaria de ser o primeiro?

  Uma menina foi a mais rápida, correndo para perto da mesa de pedra. A música parou, sendo substituída por uma ruidosa e ansiosa expectativa geral.

  – Que parte do corpo você quer, Rebeca?

  – A coxa!

  Alguém pegou a menina pelos cabeços e bateu com muita força sua testa na mesa de pedra, bem ao lado da cabeça de Matias, fazendo-a desmaiar.

  – Garota gulosa! – Gritou o homem que a agrediu. – Deve-se começar pelas partes magras, para que a vítima não morra tão rápido.

  – Exatamente! – Disse o homem trepado sobre a mesa de pedra, como um professor que acabou de ouvir uma resposta correta.

  – Eu quero a orelha direita. – Disse aquele que havia desmaiado a menina.

  – É pra já! – O churrasqueiro agarrou a orelha de Matias e, indiferente aos seus protestos, raspou sua faca afiada pela carne crua, cortando-a, e entregou ao homem, que chupou a orelha como uma bala e mastigou como um chiclete. – Quem gostaria do próximo pedaço?

  Todos se agitaram, o churrasqueiro apontou para a moça que lambeu o rosto de Matias.

  – Eu quero um dedo, eu adoro o som do ossinho quebrando na minha boca. – Ela disse, sorrindo animada. O homem, sorrindo também, apreciando aquele momento, agarrou o indicador direito de Matias, que se debatia, e o arrancou, não com a faca, mas com um puxão, deixando em seu lugar um jato de sangue. Entregou o dedo à moça que, vitoriosa, mordeu o indicador com toda força, ansiosa para ouvi-lo quebrar. No momento que o osso estalou, o corpo sobre a mesa de pedra desapareceu.

***

  – Aqui está, Dona Matias. – A parteira entregou o menino que acabara de nascer para sua mãe, ainda suada do trabalho de parto. – Eis o seu filho.

  Com um sorriso de orelha a orelha, a jovem mãe tomou o pequeno Vitor nos braços. Por alguns segundos ela ficou observando cada detalhe daquele corpinho nu e sujo, até que uma coisa fez com que o sorriso sumisse de repente de sua face. O menino não tinha o indicador direito.

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Confira outro conto sobre o Vale do Nheengatu aqui: https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/7122031