A RECOMPENSA
Como era difícil respirar. Cada parte do seu miserável corpo doía de uma maneira imensurável por conta do simples fato de tentar preencher os pulmões e continuar sobrevivendo. Dia após dia, noite após noite, por tanto tempo que até mesmo o seu nome já não fazia qualquer sentido. Seria insanidade imaginar que haveria no mundo uma dor semelhante a que experimentava, mas ele sabia que a imaginação era um devaneio, uma vez que aquele sofrimento, por pior que fosse não se comparava ao que era espalhada em certas noites.
Confinado àquele leito, tendo apenas uma minúscula janela como olhos para o mundo, ele percebia o ar noturno como um aliado na sua difícil tarefa de continuar vivo, por mais que a morte não fosse um benefício alcançável, ela era seu maior objeto de desejo.
O tubo conectado em sua veia conduzia um alento para as dores e falta de alimento. A imortalidade é uma utopia, o peso dos anos, a velhice, as enfermidades se acumulam num corpo frágil e doente, um recipiente para todos os agouros que não o matam, mas o fazem sofrer. Suas pernas sem movimentos atrofiavam-se em pele e osso. Pele enrugada, ferida e fétida. Osso corroído, poroso e frágil.
Em seus pensamentos desconexos e cada vez mais melancólicos, ele invejava suas vítimas, pois por mais que estas sofressem de uma maneira que ninguém merecia sofrer, sua dor, na maioria das vezes, não se estendia, e elas encontravam conforto nos braços da morte. As pessoas se enganam ao achar que ser um demônio é uma maldição, na verdade, ser humano nessas condições representa a verdadeira danação.
Mas havia uma solução, uma maneira que se apresentava capaz de por um fim em tudo. Por muito tempo ele procurou a resposta definitiva para todos os seus males, porém as últimas décadas lhe tomaram mais do que as esperanças, e, para conseguir se livrar de sua sina e conseguir repousar nos braços da dama da foice, ele precisava de ajuda, um auxílio para compensar a falta de...
...vitalidade. A garota completava o percurso de pouco mais de sete quilômetros ao redor da lagoa esbanjando vitalidade. Estampando um sorriso, ela conferia o cronômetro tendo a certeza de que havia superado a sua própria marca. Com as mãos na cintura, curiosamente, ela inspirava o mesmo ar noturno também como quem busca o auxílio de um companheiro. Do alto, o cartão postal lhe acena em despedida, era hora de voltar para casa, ela só não sabia que não conseguiria chegar, pois há muito estava sendo observada e, antes que pudesse alcançar o automóvel, uma pancada na cabeça envolveu sua mente com a mais completa...
...escuridão. O rapaz ainda não havia completado três décadas de vida, mas o tempo já havia preenchido seu coração com a mais perturbadora escuridão. Sem encontrar sentido em sua vida, ele viu tudo mudar com o emprego de enfermeiro. Ele odiava aquele velho maldito, mas a proposta que este lhe fizera fazia tudo compensar, pois no final todos os esforços empreendidos nos últimos dois anos valeriam à pena.
Aquela garota no porta-malas era a passagem para uma vida melhor, para uma existência mais significativa, mais prazerosa, por assim dizer. Em outra época talvez se importasse um pouco com o destino daquela pobre moça, mas, naquele momento, ela era apenas uma passagem para algo realmente grande, para o passo final e decisivo. Ele ansiava poder se ver livre de tudo o que o oprimia, daquele vazio que enchia seu peito com tanta...
...dor. O velho rasgou a garganta com um grito vindo da alma, se é que possuía uma, e esse grito surgido da própria dor, causou ainda mais dor, como um ciclo interminável e danoso.
Ciclos. Sua desprezível vida era regida por ciclos. E o que se iniciava com a plenitude em sua janela era meticulosamente perverso. Suas pernas, antes inertes, debatiam-se como chicotes vivos. O leito quebrado seria apenas mais um, mas os ossos partidos eram os mesmos. Estilhaçar, remontar, crescer, cada estalo com dor, muita dor. E gritos, muitos gritos. Ele sabia que naquele momento era tudo uma questão de...
...tempo. Ao encostar o carro na rua escura e ouvir os lamentos vindos do sobrado, ele sabia que tinha pouco tempo. Abriu a tampa do porta-malas, tomou a garota desacordada nos braços e subiu as escadas pela entrada dos fundos com a urgência a lhe guiar as pernas.
Com um chute, abriu a porta do diminuto aposento, jogando a garota no chão, trancando-a no interior. A morte sabia ser lenta e cruel quando queria, mas também caminhava a passos largos quando lhe era conveniente. Mas nunca, ou quase nunca, se importava com seus escolhidos. Pouco ligava para a aflição de suas mentes, para os seus corpos em...
...torpor. A garota recém desperta sentia sua alma em torpor. O velho, renovado por um revestimento que já não lhe causava mais dor, olhava para a jovem caída e um único objetivo passava por sua mente nublada. Agora não haveria mais tempo para retroceder, não haveria espaço para arrependimentos. Suas unhas riscavam o verniz do assoalho enquanto caminhava. Uma gosma esbranquiçada era deixada para trás, reflexo da ânsia em sua boca desejosa. Ele só queria aplacar o vazio, só esperava pelo...
...silêncio. O enfermeiro já havia se acostumado ao silencio que ocorria depois do desespero no quarto do seu empregador. Mas agora seria diferente. Ele lhe prometera que nessa noite, após o consumo da última vítima, a garota que fora cuidadosamente escolhida e indicada, tudo seria diferente. Sua recompensa seria a vida eterna. Uma nova vida de caça e vitória. No ínfimo momento de letargia que ocorria após a deglutição do último naco de carne, ele deveria entrar e ser absorvido pelo néctar da besta. Bastava uma leve...
...mordida. Mas não apenas uma, tampouco leve. O que o empregado encontrou quando abriu a pesada porta metálica fora uma sucessão de lacerações causadas por lâminas afiadas e vivas. Mas quem o atacava não era mais o velho patrão, aquele que, caído num dos cantos do quarto, abraçava aquela a quem tanto ansiava a...
...morte era o que buscava a garota. Morte e alimento. Sua mente confusa ansiava por isso e nada mais. Enquanto humana, só desejava terminar seus exercícios, o que lhe proporcionava a paz necessária para enfrentar as torturas das noites enluaradas, e voltar para a própria casa. Se trancar no porão com travas de prata. Evitar todo o...
...horror. Os olhos do enfermeiro experimentaram uma sensação pura e crua de horror. Ele não sabia, mas o velho demônio que o empregara nutria um único desejo em seu coração de fera e a maneira que ele julgava a mais decente de realizá-lo seria através dos dentes e garras de um semelhante. E, ao perceber a presença da garota em seus domínios, compreendeu que o momento havia chegado.
A perspectiva de uma recompensa é o que conduzia os antigos navegadores ao abraçar as águas desconhecidas, ou destemidos mineradores a perscrutarem o coração da terra ou, nesse caso, a jovens enfermeiros a fazerem pactos com demônios.