COVA DA ONÇA
Mesmo a contragosto, coube a mim a tarefa de fazer o levantamento dos pertences pessoais do meu avô. Não que tal tarefa fosse um fardo, longe disso, mas remexer aqueles objetos acendia ainda mais as lembranças que se negavam em deixar minha memória. Como eu gostava daquele velho! Um grande sujeito, apesar de ostentar, em certas ocasiões, um semblante amargo e um tanto o quanto triste.
A bem da verdade, não havia muita coisa a fazer no pequeno escritório. A estante já havia sido devidamente esvaziada, os livros, em sua maioria sobre medicina, recheavam meia dúzia de caixas médias sobre os tacos do piso. Os quadros também já estavam embalados em plástico bolha e fita adesiva, assim como o espesso tapete jazia na vertical, num dos cantos da saleta, enrolado por um grosso papel de cor parda.
A escrivaninha ainda se mostrava intacta, como se ainda estivesse aguardando que o velho repousasse os robustos braços em sua face de vidro. Sobre a mesa, havia um porta-retrato com uma fotografia amarelada emoldurada de modo cuidadoso. A imagem mostrava três garotos abraçados no alto de uma pedra, observando o pôr do sol, tendo a Baía de Guanabara ao fundo. Havia, também, uma estatueta de uns quinze centímetros reproduzindo os traços de um felino de grande porte, não dava para precisar de qual espécie seria, pois a tonalidade bronze parecia ter perdido, há muito, o brilho original. Além das ranhuras, parecia que a oxidação corrompera boa parte dos detalhes. Era estranho perceber o desleixo daquele objeto em especial, pois meu avô sempre fora meticuloso e extremamente detalhista em tudo. Reflexos do ofício, ele costumava dizer. De qualquer forma, embrulhei a peça em papel tipo seda e a coloquei na mochila.
Nas gavetas, além de blocos de receitas médicas, canetas, mapas antigos e muitas, muitas fotografias, havia uma pacote formado por vários maços de papel, cuidadosamente dobrados e amarrados por um barbante. Deduzi que se tratava de um sem número de anotações diversas. Joguei numa caixa, assim como todo o conteúdo das gavetas. No entanto, sob toda aquela variedade de coisas, havia um envelope, daqueles que se costumava utilizar em cartas, com os quadriculados em verde e amarelo por toda a borda. Estava lacrado. Selos do serviço de correios se espalhavam pela face pálida do papel. E, o mais surpreendente, estava endereçado a mim.
Movido pela curiosidade, alcancei uma lâmina para abrir correspondência, mais um dos objetos da gaveta, e tratei de romper o lacre do envelope. Meu avô sempre fora um contador de histórias, mas que eu me lembre nunca havia recebido nenhuma carta dele, nem mesmo um e-mail, ou uma mensagem de texto, o que seria o mais comum nos dias de hoje.
O papel não trazia o timbre do consultório do velho, na verdade era uma simples folha de caderno comum. A caligrafia limpa e bem torneada, algo bem diferente do que se costuma notar no folclore a respeito da profissão, se estampava em tinta azul. Comecei a ler:
“Meu neto, escrevo-te estas palavras porque nunca tive coragem para reproduzir em viva voz os tormentos que me perseguem há muito. Não desgostando de nenhum de seus irmãos ou primos, sempre tive certa predileção por você, por isso o escolhi para receber esta carta. Não é por nada em especial, mas quando olho para você, consigo enxergar a mim mesmo, não pela aparência, embora os traços em seu rosto me transportem para um passado muito distante. O que posso lhe assegurar é que suas atitudes e modo de ser quando criança correspondiam à mesma inquietação que me abraçava na mesma idade. Hoje, como homem feito, talvez você possa reconhecer certas peculiaridades nos episódios que contei a você e aos outros netos ao longo da vida. Porém, o que irei te contar agora, nunca contei a ninguém, pelo menos no que se refere aos detalhes acerca do meu incidente.
Em meados da década de trinta, eu não passava de um moleque descamisado e de calças curtas, com doze anos de idade e ideias absurdas na cabeça. Morava numa localidade chamada Cova da Onça, cujo nome se originava da quantidade de felinos que, segundo os relatos, habitavam toda a localidade na época da colonização portuguesa. De fato, não eram onças propriamente ditas, mas sim gatos-maracajás, uma espécie de menor porte, com pelos numa tonalidade escura de amarelo, também com manchas em forma de rosetas por todo o corpo.
O bairro, ou melhor, sub-bairro, se desenvolveu num vale entre dois morros. Um deles separava a localidade das águas da Baía, e o outro se conectava – ainda que de forma restrita – a uma outra área do bairro. Quando digo ligação restrita, refiro-me aos portões que lacravam as duas pontas da escadaria que marcava a superfície do morro tal qual uma imensa cicatriz. Era como se os moradores das casas espalhadas como pingentes ao longo das encostas habitassem um condomínio fechado.
Eu morava com uma tia na terça parte da escadaria, quase no topo do morro. E, ao contrário do que se possa imaginar, as residências – que ocupavam apenas o lado esquerdo de quem subia – eram bonitas, confortáveis e muito bem construídas. No lado direito não existia uma só moradia, mas para isso havia uma explicação. Toda aquela área, do sopé ao cume, bem como quase todo o quarteirão na parte baixa da localidade, pertencia a uma única pessoa, um bicheiro conhecido como Carlinhos Caçador.
A Casa do Bicheiro, como era conhecida a residência do sujeito, ocupava toda a área plana, da lateral da grande escadaria até a esquina de frente à praça. Naquela época, os contraventores faziam questão de se estabelecer em suas raízes. Na parte posterior da casa, a vegetação nativa se espalhava por todo o barranco até o alto do morro. Essa parte era delimitada por uma extensa mureta que seguia paralela por toda a escadaria. Mas, apesar de longo, o muro não passava de um metro de altura, pelo menos na área ocupada pela vegetação. Já nos limites da casa, o muro crescia um pouco até uns dois metros, pelo lado da escadaria, mas chegava a quase dez pelo lado da residência.
Toda noite eu olhava pela janela do quarto antes de dormir, a princípio não para a casa do bicheiro, mas na direção do lugar conhecido como Castelo do Barão, uma construção da época da colonização e que ficava num morro defronte à Baía. O lugar não era ocupado e, talvez por conta disso, era envolto em mistérios, como todo bom castelo deve ser. Confesso que morria de medo dele e por isso sempre espiava para suas paredes de pedra antes de dormir, em busca da certificação de que nada de anormal acontecia. Isso me dava paz. Mas os detalhes acerca da construção podem ficar para outro momento, só toquei nesse assunto porque foi olhando para lá que percebi pela primeira vez a anormalidade que ocorria na residência do contraventor.
Era uma noite de quinta para sexta-feira e eu havia levantado para beber água. Como sempre, dei uma olhadela para o castelo e percebi logo abaixo, no quintal do bicheiro, um grupo de homens retirando uma pessoa amarrada do porta-malas de um automóvel grande e preto.
A pessoa se debatia. Fiquei assustado e sem saber o que fazer. E, como todas as crianças costumam agir diante do medo, me escondi sob as cobertas. A partir desse evento, o quintal vizinho passou a concorrer com o castelo pela minha atenção noturna. No entanto, foi só na quinta-feira seguinte, por volta do mesmo horário, que algo semelhante ocorreu.
Com o evento se repetindo nas semanas seguintes, entendi que se tratava de uma rotina. Eu era jovem, mas não foi difícil deduzir que o famigerado vizinho deveria estar se livrando de algum empecilho aos seus negócios. Mas, o que me intrigava e, acredito que deve intrigá-lo também, era o porquê de ser sempre na mesma data.
Meu neto, meu querido neto, a inquietação é uma das minhas características mais marcantes, de modo que, apesar do pavor inerente à situação, decidi naquele momento que iria descobrir a verdade acerca daquilo que acontecia sob o nariz na vizinhança.
Assim, eu já tinha um plano para a próxima madrugada de quinta-feira. Eu pularia a mureta na parte mais baixa, atravessaria o barranco tomado pela vegetação cerrada e, com sorte, conseguiria perscrutar as sombras e desvendar o mistério. Eu sabia, obviamente, do perigo da empreitada, mas sabia também que o bicheiro acreditava que ninguém seria louco o suficiente para invadir seus domínios.
A noite em questão chegou e pus meu plano em prática e, por mais incrível que pudesse parecer, consegui chegar bem próximo do que eu achei que fosse uma enorme garagem. Mas, a despeito do veículo preto que chegou com os comandados do contraventor, não havia nenhum automóvel no lugar. Na verdade, o espaço se comparava mais a uma área destinada a uma festa, um evento, ou algo do tipo. Eu só não sabia o tipo de espetáculo que estava prestes a ser apresentado.
Carlinhos Caçador estava parado nos fundos do salão. Eu sabia que era ele, pois, apesar de nunca tê-lo visto pessoalmente antes, sua fotografia saía com frequência no jornal do bairro, sempre atrelada a alguma boa ação local. Logo, os homens jogaram o prisioneiro aos seus pés. O sujeito chorava, gritava e clamava pela vida. O chefe em questão ignorou seus apelos e retirou de um espaço reservado na parede uma estátua metálica. Os olhos do objeto cintilaram em vermelho e uma densa névoa da mesma tonalidade ganhou o ambiente. Em seguida, ocorreu a coisa mais espantosa que jamais veria semelhante em minha vida. Uma onça-pintada, sim, uma onça-pintada ganhou o espaço vinda de uma porta aberta pelo bicheiro. Imediatamente, a fumaça rodeou o animal e este sob espasmos, grunhidos e rosnados, que me pareceram de dor e agonia, transmutou-se numa coisa que não sei definir ao certo o que era. Só o que posso dizer é que era horrenda, demoníaca, algo que não deveria compartilhar o mesmo céu com a humanidade.
A coisa atacou o prisioneiro. Mas antes de devorar sua carne e ossos, pareceu sorver a essência do infeliz. Nesse momento, deixei escapar um grito, um erro que acabou por denunciar a minha presença. Eu juro que desejei que os homens despejassem o conteúdo de suas armas em mim, pois eu não queria ter o mesmo fim daquele homem no chão.
Mas, o destino não se importava com as minhas vontades. A criatura olhou para mim e, antes que ela pudesse correr em minha direção, decidi lutar pela minha vida. Corri. Corri como nunca mais voltaria a correr. O demônio veio em meu encalço. Meu corpo diminuto e esguio facilitava a escapada por entre a vegetação fechada do aclive, mas isso não significava que a fera não fosse me alcançar em instantes. A morte tinha quatro patas e era veloz. Mas, quando eu já achava que não teria escapatória, o inimaginável aconteceu. A polícia invadiu a residência. No mesmo instante, a névoa avermelhada deixou o corpo da criatura que imediatamente voltou a ser um simples felino.
A onça estava a metros de mim, mas não esboçou nenhuma animosidade e calmamente retornou para o local onde ocorria a ação policial. Eu acompanhava de longe toda a movimentação. Era uma operação federal. Não houve qualquer tipo de conflito. Todos foram conduzidos e eu nunca soube o desdobramento do ocorrido. Na verdade, nunca me interessei, pois quando saí dali decidi nunca mais voltar para perto daquela casa de novo. Na mesma semana pedi a minha tia para que me deixasse morar com outra tia por parte de pai no interior do estado, o que não foi muito difícil de conseguir. Acho que minha tia já estava saturada da minha presença.
Mas, antes de deixar a casa do bicheiro, esperei todos saírem e retornei ao grande salão, porque eu sabia que ela estaria lá, a estatueta. Recolhi o objeto e levei comigo para minha nova vida no interior do estado. E quando digo nova vida, me refiro a literalmente isso.
Em poucos anos, enquanto admirava a estatueta numa noite de quinta-feira, a mesma névoa escarlate escapou dos poros de pedra e tomou uma forma antropomórfica. O esboço esfumaçado falou diretamente à minha mente e me disse que eu teria tudo o que desejasse, bastava para isso que eu a alimentasse.
De imediato, entendi o que ela queria dizer. Mas eu nunca fui uma má pessoa e jamais teria coragem de fazer mal a alguém. Pelo menos era isso o que eu pensava. Entenda, um órfão como eu, sem perspectivas na vida, mas com muita ambição, é um prato cheio para as tentações de toda sorte.
E foi assim que na quinta-feira seguinte, perambulando pelo centro da cidadezinha na madrugada, encontrei um carroceiro na praça. Um gato vira-lata o acompanhava. Esfreguei a estatueta e a já conhecida fumaça envolveu o felino, enquanto o homem dormia. Uma fera hedionda se mostrou com um apetite insano. Em segundos não restava mais nada do homem.
Dessa noite em diante minha vida progrediu. Consegui uma boa profissão, reconhecimento, dinheiro, posses, longevidade. Só não consegui a imortalidade, porque talvez isso seja impossível. E acredito que não ganhei mais na vida por não ter oferecido o suficiente àquele que habita a estátua.
Na verdade, meu neto, carregar essa estatueta é um fardo que não desejo a ninguém. Com o passar dos anos a culpa nos corrói de uma maneira que é impossível sobreviver. Tudo tem seu preço. Eu sempre quis destruir o objeto, mas isso não é algo fácil de fazer. Por isso deixei a tarefa de conduzir meus assuntos a seu encargo. Depois de tudo que disse aqui, te peço que leve para longe essa estatueta. Enterre-a num local inacessível. Faça o que não consegui fazer. Mas te peço de todo o coração que não caia na mesma tentação que eu. Seja mais forte. Até um dia.”
Ao terminar de ler, confesso que minhas pernas tremiam. A estatueta felina, o objeto de toda aquela loucura estava ali, ao meu alcance. Meu avô era um homem respeitado, bem conceituado, inteligente, com a vida ganha. Algo bem diferente de mim, um vislumbre do que eu nunca seria.
Terminei os afazeres e voltei para minha casa alugada. Passei aquela noite e as seguintes pensando em tudo, em todos os riscos, em todas as possibilidades. Eu não tinha muito a perder, a não ser a minha dignidade. Na quinta-feira seguinte, de posse do gato do vizinho, segui até um beco onde os sem-teto costumavam passar a noite.
Emiti um suspiro e esfreguei a estatueta. A névoa que tomou o espaço fazia jus ao relato do meu avô. Mas, ao contrário do que imaginava, a fumaça não se apossou do corpo do animal, pelo contrário, começou a invadir minhas narinas, boca e olhos. Lentamente me senti invadido pela presença de algo forte, indescritível. Com um grito, soltei o gato que imediatamente correu. Com o barulho, o mendigo que dormia acordou e, tomado por um olhar de horror, também evadiu do lugar.
Fiquei só com minha agonia. Aos poucos, senti que deixava meu corpo e conseguia me ver, como se estivesse do lado de fora. Antes de perder a consciência e a própria existência, tive a certeza de ouvir a voz do meu velho avô saindo dos meus lábios. Ele dizia claramente: “Meu neto, meu neto, eu te avisei para não usar o objeto. Eu descobri um jeito de ser eterno. Aquele que habita a estatueta explicou como fazer. Bastava oferecer a alma de alguém muito próximo e querido. Você sempre foi o mais parecido comigo e agora eu serei você, bom, pelo menos até achar outra pessoa para me servir de nova casca, enquanto você terá sua morada eterna, sua cova, no interior da estátua da onça.”