O Mecanismo
Diante de mim, quase tocando a face, o mecanismo sobe e desce trazendo diversas lentes delgadas. Algumas são foscas ou com leves tons coloridos. Outras tão translucidas que sou levado a especular que não contenha nada preso ao encaixe do braço metálico.
Com olhos de compaixão e paciência o profissional, operando a máquina, vai descendo e subindo as lentes. Espera alguns segundos e observa minha reação, para logo mais lançar-me outra. Sinto-me levemente constrangido. Já se foram algumas boas horas desde que começamos? E ainda não encontrei a ideal.
Em minha frente, agora, jaz um espécime, aparentemente, da mais alta qualidade. Quase não é possível notar as bordas da lente tamanha é sua transparência. No entanto, ao acomodar os olhos a perspectiva revela um ambiente cinzento. Que irônico não? À certa distância parecia a adequada, mas ao se acomodar corretamente um mundo MONO saltou às vistas.
Com exímio cuidado e destreza, o profissional me lança mais um exemplar. A primeiro instante, confesso, desprezei mentalmente o material. Pois o seu vidro era de um amarelado nada discreto. Pensei cá com meus botões “Mais uma perspectiva alterada”. Mas não foi o que ocorreu. A lente trouxe aos meus olhos um mundo limpo e com todas às cores. O profissional, que me observava, pareceu notar contentamento em mim pois seus lábios desenharam um sorriso cauteloso. Seria a correta afinal?
Hummm, comprimir os lábios.
Não, não. Apesar das qualidades foi possível notar, alguns segundos depois, pequeninos borrões nas silhuetas das coisas. Como em uma obra soberba mas sem acabamento. Balancei a cabeça em negativa. Meu rosto, podia imaginar, uma máscara contorcida de vergonha. O profissional, com uma expressão concentrada e ares de boa vontade, fez menção de um “OK” e passou para a próxima. Mas, agora, detecto algo a mais em seu rosto. Já estaria ficando irritado?
Vez ou outra lanço os olhos na direção da janela. Os tons do céu, pelo pouco que me é possível distinguir, já mudaram diversas vezes. Noto, já, certa exasperação no comportamento do profissional. Mas que culpa ele tem? Os minutos e horas continuam a derramar-se.
Prossigo em busca da lente que me dê a perspectiva REAL. Mas a cada nova tentativa infrutífera fica mais tortuoso avançar para a próxima.
De quando em quando, durante o processo, algo germina nos recessos mais obscuros de minha mente e toma contorno na forma de um questionamento. E se não houver uma lente adequada? Por que, na verdade, este mundo que é alterado?
Com devaneios devidamente enxotados para longe focalizo o rosto do profissional e percebo inquietação nos olhos escuros dele. Opa, lá vem outra lente.