A Cruz de Ferro
Ávido colecionador de objetos militares usados por ex-combatentes durante conflitos armados, Rafael Oliveira esperava ansioso pela chegada de sua mais nova aquisição: a Cruz de Ferro. Estudioso da história militar, ele tinha vasto conhecimento sobre guerras e sabia que essa condecoração não havia sido criada por Adolf Hitler, ao contrário do que muitos pensavam, mas remontava ao antigo reino da Prússia, que unificou a Alemanha em 1871, após derrotar a França.
Rafael possuía munições de fuzis da Primeira Guerra Mundial, espadas samurais, rifles, uniformes de vários exércitos do mundo, capacetes. Contudo, há muito ele perseguia a medalha alemã. Consciente como cidadão e antinazista, Rafael queria ter um exemplar da Cruz de Ferro pela história da condecoração. Professor universitário bem sucedido, o colecionador não poupava recursos para adquirir os objetos que desejava, para em seguida guardá-los em um quarto separado na sua
casa, voltado especificamente para isso.
Lá, todos os objetos adquiridos eram catalogados e colocados organizadamente em armários de vidro, para que pudessem ser admirados pelas visitas, mas não tocados. Tinha um verdadeiro museu em casa. Era o seu orgulho, e o professor queria sempre mais. Nada de réplicas, apenas originais. Foi então que através da internet ele iniciou conversações com um morador da Ucrânia.
Dialogando em inglês, Rafael soube que a Cruz de Ferro que estava em posse do estrangeiro havia sido retirada do corpo de um soldado alemão, morto na Segunda Guerra Mundial.
O professor queria uma Cruz de Ferro anterior ao período da Alemanha nazista, que vinha com a marca dos ramos de carvalho, mas depois de muito procurar, acabou por se contentar com a condecoração da época da Segunda Guerra, com a data de 1939 e o infame símbolo nazista. Adquiriu, portanto, a Cruz de Ferro de segunda classe, pagou e esperou.
Após semanas, o objeto tão desejado chegou. Antes de guardá-la em um espaço reservado há muito nos seus armários de vidro, ele havia planejado colocá-la pendurada no pescoço, como faziam os militares alemães agraciados por bravura em combate. Preparou tudo, se vestiu formalmente com roupas negras e pôs um laço com as cores da bandeira da Alemanha na medalha. Por mais que criticasse o nazismo e Hitler, tal ação se mostrou muito contraditória e teria sido imensamente criticada e condenada por quem a testemunhasse.
Rafael foi para frente do espelho em tamanho natural no seu quarto de dormir, ergueu a medalha, segurando-a pelas pontas do laço, e a amarrou em volta do pescoço. Uma vez pendurada acima do seu peito, o professor olhou orgulhosamente o reflexo.
Enquanto se admirava, ele notou uma figura fantasmagórica se formar no espelho. Um homem alto, loiro, com uma expressão de dor e sofrimento no rosto, usando um uniforme todo negro. Pelo seu conhecimento, Rafael sabia que se tratava de um oficial da Waffen SS, exército particular do partido nazista que lutava ao lado do Exercito alemão. Contudo, esses militares exterminavam pessoas, especialmente aquelas consideradas inferiores pelo regime genocida de Hitler.
Perplexo ante o espelho questionando a sua sanidade, o professor sentiu uma terrível dor de cabeça, como se o seu cérebro fosse explodir. Ele cambaleou, tateando o espaço vazio com uma das mãos buscando apoio, os seus olhos reviravam nas órbitas e imagens aterradoras lhe vieram a cabeça.
Rafael viu aquele homem do espelho matando dezenas e dezenas de inocentes, muitos dos quais choravam e imploravam misericórdia. Ele o viu brincar com a vida humana, fazer pouco dela e assassinar indiscriminadamente. Como se estivesse presente, o professor assistiu o momento em que o militar foi condecorado pelos seus crimes e também o viu cair morto no chão após ser atingido em cheio no peito por soldados russos durante um combate.
Por último, Rafael sentiu um calor abrasador e enxergou aquele soldado ardendo em meio ao fogo, tomado por um desespero que parecia não ter fim. Num gesto de força repentino, o professor pós a mão direita na medalha e a arrancou do pescoço, jogando-a longe. Sentiu uma forte queimadura na palma da mão e desmaiou, caindo pesadamente no chão.
Horas depois ele acordou e foi recobrando a consciência aos poucos. Lembrou-se de tudo. Levantou, ligou a luz do quarto, pois já era noite, e viu a Cruz de Ferro jogada no chão. Usando um alicate ele pegou a medalha, tomando cuidado para não tocar nela, em seguida a guardou dentro de uma pequena caixa de madeira, levou-a até a uma área remota da cidade, onde não há casas por perto e enterrou bem fundo no chão o objeto amaldiçoado.
Ao chegar em casa, cansado da estranha experiência do dia, Rafael foi lavar as mãos no banheiro. Foi nesse momento que se deu conta da suástica nazista na palma da sua mão direita, vermelha e dolorida. Ele lembrou que no momento em que arrancou a medalha, sentiu uma queimadura. Nunca imaginaria que aquilo ficaria gravado na sua mão e que, para sua infelicidade, jamais sairia. Era um castigo perpétuo, uma lembrança para ter cuidado com o que deseja.