- ALTER EGO - IOLANDINHA PINHEIRO
Cheguei caminhando à minha casa. Acabara de levar uma forte pancada na cabeça e estava zonzo, e exatamente por causa da pancada, não conseguia lembrar de como aquilo havia acontecido. Aliás, lembrava muito pouco sobre qualquer coisa, porém tinha certeza de que morava ali, não apenas porque havia reconhecido aquela fachada, mas também porque quando enfiei a mão no bolso da calça encontrei um chaveiro azul com uma única chave na argola que cabia perfeitamente na fechadura da porta da frente.
Fui até a cozinha. Não peguei nada para comer ou beber. Saí sem sequer tomar um analgésico, apenas subi até o meu quarto. Havia, na parte superior do sobrado, dois outros cômodos, mas eu sabia exatamente em qual deveria entrar. Deitei-me na cama sem trocar de roupa, me cobrir ou usar qualquer um dos três travesseiros que estavam na cabeceira. Estava cansado, e a cabeça doía logo acima da testa. Passei a mão sobre o cabelo e percebi que não tinha sangue ou inchaço, apenas uma ligeira depressão no local da dor. Não conseguia fechar os olhos. O quarto continuou com a luz apagada, iluminado apenas pelos relâmpagos que criavam curiosos gráficos no céu. Achei engraçado não conseguir me lembrar se sentia ou não medo de tempestade, mas resolvi fechar a janela mesmo assim.
A moldura velha e inchada emperrava o vidro, e eu levei algum tempo para fazer a lâmina deslizar pelos caixilhos. O vento fustigava-me a longa franja fazendo-a bater contra meus olhos. De repente um raio caiu tão próximo à casa que iluminou o quarto e a praia inteira lá fora. Foi neste breve momento que vi, logo abaixo da muralha de pedra, alguma coisa se movendo de forma rápida e resoluta. Alguma coisa que vinha em direção a mim.
Enquanto afastava os cabelos do meu rosto para ver melhor, a coisa desapareceu pelas sombras do caminho. A noite opressiva que eu vivia ficava ainda mais sinistra pelo fato de não conseguir montar o quebra-cabeças dos meus pensamentos. Afinal, quem eu era? A memória tentava se reorganizar e as lembranças apareciam como flashes de luz entre apagões de esquecimento. Via rostos, ouvia risadas e gritos, mas não reconhecia as pessoas. De longe o som das ondas explodindo no largo rochedo que cobria uma grande extensão da costa, se evolava como uma ameaça insondável a espreitar minha alma.
Fechei os olhos. Imagens desordenadas tentavam recompor um quebra-cabeças de rostos e lugares desconhecidos. Uma sucessão de pessoas sem conexão aparente entre si aparecia em meus pensamentos. Quem eram elas?
Desliguei-me por um instante apenas, e sonhei comigo mesmo no alto de um despenhadeiro sobre o mar. Lá embaixo apenas a frágil espuma branca se desfazendo em sua inglória luta contra agudos rochedos. O resto era o negror angustiante do oceano sob um céu sem lua.
Levantei-me novamente sem saber ao certo o que queria fazer, não encontrava posição na cama. Andei pelo corredor e vi as fotos de uma família espalhadas pela parede. Não reconhecia aquelas pessoas, seriam aqueles os donos anteriores? Desci a escada. Uma planta batia seus galhos mais finos na porta de madeira. Já ia abrir a porta para resolver este problema quando vi um vulto passar pelas venezianas da janela. Recuei alguns passos com pavor. Ouvi uma forte pancada na porta, seguida de outras pancadas menores. Procurei ao redor por alguma arma e resolvi pegar o atiçador que encontrei na lareira apagada de frente para o sofá.
A coisa lá fora gritava, mas o barulho da tempestade me impedia de distinguir o que era dito.
Depois de uns instantes tudo silenciou. Deixei o atiçador na lareira novamente e voltei para o quarto. Decerto a coisa lá fora havia desistido. Verifiquei portas e janelas, tomei um banho, coloquei o pijama que encontrei na gaveta da cômoda. Fechei os olhos e deslizei devagar para uma repousante inconsciência. Acordei não sei quanto tempo depois com uma coisa dura cutucando minha perna. Abri os olhos assustado e não pude acreditar no que via, a coisa havia entrado e estava de frente para mim, em pé, bem próximo da minha cama e estava segurando o mesmo atiçador de lareira com o qual eu pretendia matá-lo, pelo menos foi o que imaginei, pois a escuridão só me permitia ver um vulto alto segurando um objeto fino e longo. Ficamos nos encarando por alguns segundos infinitos.
– Saia da minha casa!
Falou isso e partiu para cima de mim com a peça de ferro. Fui mais rápido e me desviei. Ele acabou por perder o equilíbrio e caiu na cama ao meu lado. Aproveitei a oportunidade, levantei e desci a escada correndo. Tentei abrir a porta de saída, mas justo naquele momento não consegui encontrar a chave. Vi que a porta não havia sido forçada e nem havia qualquer janela quebrada.
Fiquei me esgueirando pelas sombras da casa enquanto procurava as facas da cozinha sem acender a luz. A primeira coisa que encontrei foi um cutelo. Serviria. Senti um arrepio em minhas costas. O maldito tinha descido a escada em silêncio. Virei-me no momento em que ele desferiu um golpe no meu ombro, ainda consegui atingi-lo no abdômen. A dor me fez perder os sentidos. Quando acordei ele estava lá deitado. Levantei sentindo uma forte tontura. Fui andando com dificuldade até o interruptor. Acendi a luz e o que vi me deixou estupefato. O homem era idêntico a mim. Mesmo rosto, mesma altura, e até a roupa era igual àquela com a qual eu havia chegado. Achei que estava louco, mas o cadáver ensanguentado ali no chão era o que de havia de mais concreto em minha mente sem lembranças.
Peguei uma lanterna e fui para o pátio à procura de algum lugar conveniente para enterrar o rapaz. Encontrei uma faixa suficientemente larga e comprida para fazer um buraco onde coubesse o morto. Cavei a terra solta da praia com facilidade. Coloquei o corpo em um lençol e o arrastei até o local. Olhei para aquele rosto que, mesmo sob o véu da morte, ainda parecia demais com o meu para que eu lhe fosse indiferente, e depois o coloquei lá e cobri. Então pude dormir com relativa tranquilidade.
Tive sonhos perturbadores naquela noite. Outra vez via vários rostos sem conseguir reconhecer qualquer um deles. No meio da multidão que me cercava eu via não o meu próprio rosto, mas o daquele rapaz idêntico a mim. Ele caminhava ao meu encontro, sorrindo, mas de seu ventre aberto eu conseguia ver as vísceras mal sustentadas pelo que restava de músculos e pele. Suas vísceras expostas querendo sair.
Acordei sobressaltado com as batidas na porta. Pensei imediatamente que teria sido descoberto. Fui até a janela do meu quarto e avistei uma linda jovem loira aguardando do lado de fora.
Gritei que já ia descer e ela me deu um aceno de lá de baixo. Ajeitei meu rosto rapidamente e vesti uma roupa leve. Cobri o ombro machucado e fui ao seu encontro. Assim que abri a porta ela rodeou meu pescoço com seus delicados braços e sussurrou em meu ouvido:
– Bom dia, Daniel. Você sumiu ontem, o que aconteceu? – Falou isso e em seguida deu-me um beijo leve nos lábios. Confesso que fiquei confuso, mas não achei nada desagradável. Deixei-a à vontade para continuar me beijando. Entramos na casa e preparamos junto o café. Seu nome era Adelaide e como ela mesma havia afirmado, o meu era Daniel. Quando ela saiu, corri para procurar os documentos do rapaz que supostamente era o seu verdadeiro namorado. Felizmente a carteira dele estava jogada no sofá; Como não conseguia me lembrar de quem eu mesmo era, achei conveniente assumir tudo que o finado deixara: a sua vida e o seu amor.
Apesar dos recorrentes pesadelos com todos aqueles rostos vindo ao meu encalço, o tempo passou tranquilo depois do incidente com meu duplo. Aos poucos fui aprendendo tudo sobre a vida de Daniel, de quem eu seria, provavelmente, irmão gêmeo. Adelaide vinha sempre, e víamos juntos os álbuns com as fotografias que seriam da minha família ou da dele. Descobri que tinha outras casas além daquela e que vivia da renda dos aluguéis.
Depois de um tempo eu e Adelaide casamos e ela veio morar comigo. A vida seria perfeita e tudo estaria em paz se eu não tivesse ficado doente. A coisa toda começou enquanto eu fatiava o pão para fazer torradas. A faca resvalou e fez um corte superficial em meu dedo. No início saiu um pouco de sangue, mas, em seguida, percebi que uma substância negra e viscosa começava a escorrer do dedo ferido. Limpei tudo rapidamente e coloquei ataduras apertadas para que Adelaide não percebesse. À noite, antes do dormir, fui tomar meu banho mas primeiro resolvi esvaziar a bexiga. Para a minha surpresa a urina foi se tornando escura e volumosa a ponto de parecer um poço de piche brilhante no vaso sanitário.
A visão daquele líquido nojento flutuando sobre a água do sanitário me causou um asco imediato, e uma preocupação que, em pouco tempo, ocuparia de forma constante os meus pensamentos.
Saí do banheiro angustiado, e pensando se seria prudente procurar um médico. Considerei os problemas que surgiriam desta revelação e achei melhor aguardar os desdobramentos vindouros. Deitei-me, mas não conseguia dormir. Fiquei um tempo olhando para o teto, até que o cansaço me venceu.
Assim que acordei, no dia seguinte, fui direto para o banheiro para observar a cor da minha urina. Estava amarela e completamente normal e pensei que o problema do dia anterior se havia resolvido sem maiores percalços.
Fiquei tão feliz que resolvi sair para passear na praia com Adelaide. Preparamos alguns sanduíches leves, levamos champanhe e duas taças. Sentamo-nos próximos à parede de rochas, observando o respingo da espuma que as ondas lançavam. Era um lugar muito bonito. Bebíamos e brindávamos à nossa felicidade quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair molhando o que sobrara da comida. Juntávamos tudo, para embrulhar na toalha quando um pequeno cachorro se aproximou de nós. Não havíamos percebido a sua aproximação, talvez porque fosse amarelo, no tom exato da cor da areia.
Saímos levando as coisas e ele nos acompanhou. Chovia bastante quando chegamos à casa. A tempestade se aproximava e o céu rapidamente ficava escuro. O vento batia as portinholas das janelas laterais e seu silvo me dava a impressão de ouvir o gemido dos amaldiçoados. Entramos, mas o pequeno cão permaneceu um pouco além das tábuas da varanda, olhando para a porta. Como se esperasse um convite.
Era uma figura tão vulnerável diante daquele enorme mundo escuro, que foi impossível para mim deixá-lo ali fora. Adelaide fez uma sopa para todos nós. O cãozinho acomodou-se no tapete da sala e logo dormia enrolado e satisfeito.
– Vamos ficar com ele?
– Vamos sim, respondeu Adelaide, passando os dedos na cabeça do bicho. – Vai se chamar Tito.
Choveu durante toda a semana e só saíamos quando era mesmo imprescindível. Tito ficava olhando para fora pelo vidro da janela e não se interessava por ir vadiar pelo pátio, ou pela praia. Talvez pensasse que o seu ingresso em nossa família fosse algo ainda provisório, e que se saísse da casa não permitiríamos que lá entrasse novamente. Era um cachorro carinhoso e obediente.
No dia em que estiou, saímos os três felizes com aquele sol brilhando e colorindo tudo com a sua luz sagrada. Adelaide aproveitou aquela manhã radiante para ir ao mercado comprar algumas coisas para casa. Deixei a porta aberta enquanto abria correspondências no escritório e verificava cartas de cobranças e depósitos dos inquilinos.
Ouvi latidos cada vez mais altos lá fora e saí para verificar se alguém havia chegado e por isso Tito estivesse agitado. Assim que abri a porta vi, horrorizado, o meu cachorro cavando com empenho a areia no exato local onde eu havia enterrado aquele homem igual a mim. A raiva que senti na hora me provocou uma forte vertigem e minha vista escureceu. Não me lembro do que fiz neste espaço de tempo mas quando minha consciência retornou eu estava ajoelhado no chão ao lado de vários equipamentos e materiais de construção, passando uma última mão de cimento no local onde havia enterrado o morto.
Adelaide já chegou perguntando o que estava acontecendo. Sorri para ela e falei que aquele piso era para colocar a casinha de Tito em cima.
– Mas ele não tem casinha.
– Vamos comprar uma para ele.
– E por que exatamente aqui? Com tanto lugar já coberto de concreto, porque neste pedaço do terreno com areia?
– Notei que ele gostava de ficar deitado aqui.
– Sério? Nunca percebi isso. Onde ele está?
– Está por aí pela praia. Saiu correndo para o lado das pedras, logo voltará.
Terminei a pequena obra duvidando muito que Tito fosse reaparecer, Depois subi para o banheiro e só então retirei a blusa de manga comprida que estava vestindo. Para minha surpresa havia uma larga ferida por onde minava aquele odioso líquido negro. Talvez Tito tivesse mordido quando eu o agarrei.
Pequenos flashes de luta voltavam para minha memória. Não podia deixar que ele continuasse cavando. Depois me vi nas pedras gigantes da praia, e o mar ameaçador lá embaixo, mas não era Tito que eu segurava. Era a mim mesmo.
Os dias passavam e Tito não voltava. Ainda assim comprei a casinha na cidade, e até coloquei uma plaquinha com o nome dele. Estávamos, eu e Adelaide sempre andando pela beira perto da muralha de pedra à procura dele. Eu realmente torcia para que ele estivesse ainda vivo, que tivesse apenas fugido de mim. Depois de um tempo, porém, comecei a sentir uma dor nas minhas pernas, e Adelaide ia sozinha.
O tempo agora trabalhava contra mim. Primeiro aquele líquido escuro que saía do meu corpo, depois as articulações falhando, e aí meu cabelo começou a cair. Para que Adelaide não percebesse, passei a usar chapéus, bonés, gorros e sempre apagava a luz antes de dormirmos. Mas ela acabou passando a mão na minha cabeça no escuro e percebeu o quanto os fios haviam rareado sobre o crânio. Adelaide insistia em irmos ao médico, mas eu me negava e dizia que era normal para os homens, a calvície.
Ela aceitava, mas nós dois sabíamos que eu era jovem demais para isso. A degeneração do meu corpo seguia implacável. Com a desculpa de sentir dores nas pernas eu saía cada vez menos de casa. Ao longo dos dias a carne perdia firmeza, os dentes amoleciam, e pequenas manchas apareciam sem que eu tivesse levado pancada alguma. Com o tempo as manchas intumesciam ao ponto da pele se romper e formar pequenas chagas sempre úmidas colando-se no tecido da roupa que eu usava.
Vendo aquilo, minha esposa se apavorava e sem me avisar trouxe com ela um médico da cidade. Foi a primeira vez que brigamos seriamente. Estava saindo do banho com um dos muitos pijamas que agora usava o dia inteiro, quando o homem chegou. A primeira reação foi me trancar no quarto e esperar que o estranho fosse embora. Mas logo eles estavam batendo na minha porta e me mandando abrir.
Não abri e tive a minha primeira briga séria com Adelaide. Para evitar outras surpresas iguais àquela, mudei-me para outro quarto no qual ficava a maior parte do tempo trancado, com pacotes de biscoito e garrafas de água. No início ela ainda insistia, mas acabou se cansando e fazendo tudo em casa sem a minha ajuda. A solidão a fazia ficar mais tempo fora, com a própria família, com amigos.
Peguei o hábito de espiá-la pela janela. Não me interessava o que ela fazia em casa. Mas sempre que saía ficava imaginando para onde ia e com quem conversava. Minha pele ficava cada vez mais esticada o que favorecia o rompimento de novas feridas. Meu corpo fedia. Mesmo tomando muitos banhos, o cheiro vinha de dentro, vinha da pasta preta que saía pelos poros, pelas chagas, que saía de mim cada vez que usava o banheiro. Estava me desfazendo em caldo escuro e ódio.
Numa destas vezes, vi um carro chegando lá embaixo. Era o carro preto e elegante de um vizinho nosso. O homem era um policial ainda jovem que havia ficado viúvo. Vi quando Adelaide saiu do carro e sorriu para o rapaz, despedindo-se demoradamente. Até aquele momento eu estava vivendo todo o processo de transformação com desespero e dor, isso é certo, mas todo o resto continuava ali, passando alguma segurança para mim, eu ainda acreditava que todo aquele pesadelo poderia ser revertido e eu voltaria a ser feliz com aminha esposa e o Tito. Ver o sorriso de Adelaide para outro homem foi como derrubar o castelo de cartas que eu mantinha a custo diante da realidade tempestuosa que eu insistia em não enxergar.
A ameaça estava ali, na minha frente, surrupiando a chance de retomar minha vida. Passei o resto do dia pensando. Enquanto ouvia Adelaide cantarolar pela casa, feliz como não a via há muito tempo. Era preciso eliminar o concorrente. Não sabia ainda como, mas daria um jeito.
Aguardei uma ocasião em que Adelaide passaria o dia inteiro fora. Não foi surpresa vê-la saindo com o vizinho, sabe-se lá para onde. Esperei alguns minutos e tomei um banho demorado, vestindo uma roupa de sair, para variar. Peguei ainda um velho sobretudo, calcei meus sapatos e partir para a casa de Roberto. Não era longe.
Ao chegar lá, entrei pela porta que ele costumava deixar só encostada. Morávamos todos em um lugar muito calmo. Revistei tudo tendo o cuidado de colocar cada coisa no lugar antes. Não havia nenhum vestígio da passagem de Adelaide naquela casa. Talvez eles não estivessem tendo nada mesmo. A surpresa foi quando abri a porta novamente para sair, e dei de cara com meu vizinho que havia acabado de estacionar. Ao lado dele, o inimaginável. Encontrei Tito balançando o rabo e querendo pular em mim todo feliz.
Nem tive tempo de abrir minha boca, e ele já foi gritando comigo.
– Saia da minha casa! O que veio fazer aqui?
– Solte o meu cachorro!
– Para você bater nele de novo? Não! Vá embora!
– Eu não bati no cachorro, que história é essa?
Foi então que ele sacou o celular do bolso da calça e me mostrou imagens que me deixaram perplexo.
Não havia apenas um vídeo, mas vários. O primeiro deles era com o Tito. Eu saindo de casa e indo até onde o cachorro cavava um buraco na cova. Vi quando coloquei ambas as mãos na cabeça e logo depois quando peguei a vassoura para espantá-lo para longe do local. Depois quando segui para o depósito de material de construção, e voltei sozinho com um carrinho de mão. No vídeo deu para ouvir um ganido de Tito. Então eu sumi do foco da câmera e em seguida, apareceu Tito correndo em direção à praia e ganindo. Então eu havia batido nele?
Em um momento da fita também aparecia um vulto passando pelo outro lado da casa. Não me liguei neste detalhe na hora, só depois que pedi para que ele passasse todo o material para mim, é que fui tentar descobrir aquela outra pessoa.
Voltei para casa sem o Tito, embora ele tenha feito um esforço enorme para me acompanhar. Perguntei a Roberto, porque ele estava filmando a minha casa e ele me explicou que estavam acontecendo furtos nas casas fechadas e ele havia instalado câmeras em lugares estratégicos para ver se pegava o ladrão.
Antes de ir para casa decidi passar na quitanda que ficava em um pequeno centro comercial e comprar algumas frutas, aquela dieta de biscoito e água estava piorando meu estado de saúde. Levei minha comida e coloquei toda num pequeno frigobar que havia no quarto que eu passara a usar. Resolvi sair todos os dias para poder pegar sol e visitar o Tito.
Vi as primeiras filmagens, felizmente haviam sido feitas depois que o homem igual a mim apareceu, o meu vizinho policial ainda não havia instalado as câmeras na época em que o havia matado. Eram filmes muito entediantes, a maior parte de paisagens paradas. Então voltei para o dia em que o Tito foi agredido. O vulto estava lá. Passava rapidamente para os fundos da casa. Mandei o vídeo para um programa que reduzia a velocidade. Vendo a filmagem pausadamente, percebi que quem passara pelo outro lado da casa havia sido Adelaide. Não compreendi nada. Como assim? Pelas minhas contas ela só havia chegado quando eu já estava colocando cimento onde seria a base para a casinha de Tito.
Achei aquilo muito estranho. Adelaide sempre fora uma esposa carinhosa e até havia chamado um médico para me ver em casa. Mas vê-la chegando em casa e usando o caminho que nunca usávamos foi bem estranho, ainda mais porque ela fingiu ter chegado depois. Aquilo ligou um alerta no meu cérebro. Fui até o quarto dela, mexi nas coisas, abri as gavetas. Encontrei um rabisco com o nome: Moacir Pimenta, e o número do hospital. Liguei para lá, marquei uma consulta. Resolvi não falar nada para ela.
No dia seguinte eu esperei que ela saísse e chamei um táxi para me levar no hospital da vila. No balcão, perguntei onde era o consultório do Dr. Moacir Pimenta. Fui até o consultório 2 B, onde um senhor grisalho já me esperava e me mandou sentar na cadeira para contar o que estava acontecendo. Fiquei ali em pé olhando para o médico e achando que havia ficado louco, pois o Dr. Moacir Pimenta que havia estado em minha casa, era pelo menos uns vinte anos mais jovem do que aquele homem.
Como já estava lá resolvi me consultar e descobrir o que estava acontecendo comigo, afinal. Foram colhidas amostras de tudo, o médico fez milhares de perguntas e me disse para voltar dali a cinco dias para buscar os resultados e falar com ele. Fui embora pensativo, sem entender o que acontecia. Fiquei o dia quase todo no quarto, comendo os alimentos que havia comprado. Adelaide subiu algumas vezes com uma bandeja. Aceitei, mas não comi. Estava desconfiando dela. Jogava no lixo e esperava que ela saísse para colocar no coletor lá embaixo.
Notei que as caminhadas e a nova alimentação faziam que eu tivesse menos enjoos, me sentisse melhor. Afinal o dia de receber os exames chegou.
- O senhor mora sozinho, senhor Daniel?
- Moro com a minha esposa.
- Tem cozinheira? Mesmo eventual. Ou jardineiro? Alguém mais frequenta a sua casa?
- Não. Somos só eu e Adelaide mesmo. Por quê?
- Por gentileza, leia este papel.
Empalideci ao ver o que estava escrito. O médico ainda me informou que relataria tudo à polícia e que eu precisava ficar internado lá para fazer um tratamento. Concordei.
Fiquei calado por um tempo. Desolado. Sem ação. As palavras terríveis conspurcando a brancura do papel ficavam se repetindo na minha cabeça enquanto eu tentava fazer conexões delas com aquilo que eu acreditava ser realidade.
Pensei na cova com um cadáver dentro e temi que a polícia a descobrisse, mas não havia mais nada a ser feito, apenas tentar sobreviver.
Durante os quinze dias que passei no hospital não tive notícias de Adelaide. Nenhuma visita ou telefonema, nada. Roberto veio me visitar e falou que ela não fora mais vista. O tempo se desenrolava lento e enfadonho. Usei aquela pausa para assistir cada um dos pequenos filmes gravados pelo policial. A maioria mostrava apenas a praia, a casa, nosso cachorro. Nada que chamasse a atenção. Em um deles, todavia, vi Adelaide cavando exatamente no local onde havia o corpo e jogando lá dentro algo que não dava para distinguir o que era.
Quando voltei à minha casa descobri duas coisas, Adelaide havia ido embora levando tudo o que era dela, e minha conta conjunta estava com menos da metade do dinheiro. Ninguém precisava me dizer que ela havia arrastado o que conseguira, mentindo para o gerente do banco.
Minha memória estava prejudicada para sempre. Precisava descobrir o que estava acontecendo de verdade. Saí procurando em cada pedaço da casa tentando achar algo que me desse uma luz. Procurei pela casa toda, inclusive pelos cômodos que não usávamos. Olhando debaixo de uma das camas percebi um volume com um símbolo de agulha e linha na tampa. Trouxe para cima da cama e abri. Como era de se esperar, havia uma divisória com tesouras, linhas, e outros apetrechos de costura. Mexi naqueles objetos com o carinho de quem tenta lembrar da mãe que um dia havia sido tudo para mim. Foi quando ouvi um barulho lá embaixo e me levantei de uma vez, deixando a caixa cair. Fui até a janela, mas não era nada. Talvez alguma janela batendo, depois iria lá verificar.
Peguei a caixa no chão e notei que havia quebrado a estrutura interna. Virei a caixa na cama e fui pegar uma cola de madeira, quando fui passar a cola notei um fundo falso embaixo da divisória. Um fundo falso com fotos.
Tinham várias fotos de família iguais a muitas que havia visto. Dentre elas um maço de fotos dentro de um saquinho de pano amarrado com um laço azul. Tirei os retratos com cuidado. Eram fotografias minhas junto com uma moça morena de grandes olhos cor de mel, um rosto lindo que eu não lembrava que já havia visto. Atrás de uma delas, uma dedicatória:
Ao meu noivo, como todo o amor.
Adelaide.
Aquela não era Adelaide, definitivamente. Ou, por outro lado, aquela era Adelaide e eu não sabia o nome da moça com quem havia me casado. De repente a vida era uma surpresa atrás da outra, e nenhum sentido para mim.
Onde a moça da foto estaria? Fiquei angustiado. Perdera todo um passado emocional e havia caído nas mãos de uma estranha que talvez estivesse tentando me matar.
A falsa Adelaide havia ido embora, mas quem me garantia de que não iria voltar para terminar o que começou? Era urgente comunicar o seu desaparecimento e ir embora dali. Passei uma procuração para uma firma que cuidaria do meu patrimônio e fiz uma nova conta bancária para receber o dinheiro das rendas sem acesso para minha esposa.
Antes de partir, li novamente o papel com o diagnóstico:
- Traços de Trióxido de Arsênio, e mescalina oriunda do extrato de lírio branco na urina e em amostra dos tecidos dos rins e fígado.
Veneno e alucinógenos! Fui até o local onde estava a cova do outro eu, mas, felizmente, não havia nada ali enterrado além de sacos com lixo apodrecido. Nunca saberia se tudo aquilo havia acontecido de fato, mas me aliviava saber que, aparentemente, não havia matado ninguém.
Aquela escuridão em que se transformaram minhas lembranças me angustiava. Fiquei imaginando há quanto tempo a falsa Adelaide me envenenava, provavelmente muito antes do dia em que a vi pela primeira vez, ou pelo menos quando eu achei que foi a primeira vez. Com boa parte da memória apagada, eu não podia mais ter certeza de nada.
Meus pensamentos eram confusos, e o que mais me incomodava era não saber o que havia acontecido com a verdadeira Adelaide. Se estaria morta ou dada como desaparecida. E tudo o que eu tinha para descobrir eram algumas fotos.
Fui até a cidade pegar o resto dos documentos e comprar um carro. Na volta da concessionária parei em um posto para abastecer. Enquanto esperava o frentista completar o tanque, vi dois homens saindo da loja de conveniência: Meu vizinho Roberto e o falso médico que Adelaide havia levado para me consultar em casa, o que se passava pelo Doutor Moacir Pimenta. Não esperei que me vissem. Parti imediatamente para casa e fui até o depósito de ferramentas. Voltei com o machado. Assim que Tito me viu, deu pulos de alegria. Dei machadadas na corrente até conseguir parti-la. Peguei meu cachorrinho no colo e voltamos para casa. Já ia buscar a mala quando vi que Tito queria ir as pedras talvez para me mostrar alguma coisa.
Escalamos a rocha até seu cimo, e ficamos olhando o oceano jogando suas ondas incessantemente contra o paredão. Tito não parava de latir e rosnar, mas não havia nada lá embaixo. Quando olhei de volta para ele, vi que também me olhava fixamente como se estivesse prestes a me atacar. Seus olhos cheios de fúria pareciam diferentes e perturbadores como olhos humanos em uma cabeça de cachorro.
"Demasiadamente humanos."
Cheguei caminhando à minha casa. Acabara de levar uma forte pancada na cabeça e estava zonzo, e exatamente por causa da pancada, não conseguia lembrar de como aquilo havia acontecido. Aliás, lembrava muito pouco sobre qualquer coisa, porém tinha certeza de que morava ali, não apenas porque havia reconhecido aquela fachada, mas também porque quando enfiei a mão no bolso da calça encontrei um chaveiro azul com uma única chave na argola que cabia perfeitamente na fechadura da porta da frente.
Fui até a cozinha. Não peguei nada para comer ou beber. Saí sem sequer tomar um analgésico, apenas subi até o meu quarto. Havia, na parte superior do sobrado, dois outros cômodos, mas eu sabia exatamente em qual deveria entrar. Deitei-me na cama sem trocar de roupa, me cobrir ou usar qualquer um dos três travesseiros que estavam na cabeceira. Estava cansado, e a cabeça doía logo acima da testa. Passei a mão sobre o cabelo e percebi que não tinha sangue ou inchaço, apenas uma ligeira depressão no local da dor. Não conseguia fechar os olhos. O quarto continuou com a luz apagada, iluminado apenas pelos relâmpagos que criavam curiosos gráficos no céu. Achei engraçado não conseguir me lembrar se sentia ou não medo de tempestade, mas resolvi fechar a janela mesmo assim.
A moldura velha e inchada emperrava o vidro, e eu levei algum tempo para fazer a lâmina deslizar pelos caixilhos. O vento fustigava-me a longa franja fazendo-a bater contra meus olhos. De repente um raio caiu tão próximo à casa que iluminou o quarto e a praia inteira lá fora. Foi neste breve momento que vi, logo abaixo da muralha de pedra, alguma coisa se movendo de forma rápida e resoluta. Alguma coisa que vinha em direção a mim.
Enquanto afastava os cabelos do meu rosto para ver melhor, a coisa desapareceu pelas sombras do caminho. A noite opressiva que eu vivia ficava ainda mais sinistra pelo fato de não conseguir montar o quebra-cabeças dos meus pensamentos. Afinal, quem eu era? A memória tentava se reorganizar e as lembranças apareciam como flashes de luz entre apagões de esquecimento. Via rostos, ouvia risadas e gritos, mas não reconhecia as pessoas. De longe o som das ondas explodindo no largo rochedo que cobria uma grande extensão da costa, se evolava como uma ameaça insondável a espreitar minha alma.
Fechei os olhos. Imagens desordenadas tentavam recompor um quebra-cabeças de rostos e lugares desconhecidos. Uma sucessão de pessoas sem conexão aparente entre si aparecia em meus pensamentos. Quem eram elas?
Desliguei-me por um instante apenas, e sonhei comigo mesmo no alto de um despenhadeiro sobre o mar. Lá embaixo apenas a frágil espuma branca se desfazendo em sua inglória luta contra agudos rochedos. O resto era o negror angustiante do oceano sob um céu sem lua.
Levantei-me novamente sem saber ao certo o que queria fazer, não encontrava posição na cama. Andei pelo corredor e vi as fotos de uma família espalhadas pela parede. Não reconhecia aquelas pessoas, seriam aqueles os donos anteriores? Desci a escada. Uma planta batia seus galhos mais finos na porta de madeira. Já ia abrir a porta para resolver este problema quando vi um vulto passar pelas venezianas da janela. Recuei alguns passos com pavor. Ouvi uma forte pancada na porta, seguida de outras pancadas menores. Procurei ao redor por alguma arma e resolvi pegar o atiçador que encontrei na lareira apagada de frente para o sofá.
A coisa lá fora gritava, mas o barulho da tempestade me impedia de distinguir o que era dito.
Depois de uns instantes tudo silenciou. Deixei o atiçador na lareira novamente e voltei para o quarto. Decerto a coisa lá fora havia desistido. Verifiquei portas e janelas, tomei um banho, coloquei o pijama que encontrei na gaveta da cômoda. Fechei os olhos e deslizei devagar para uma repousante inconsciência. Acordei não sei quanto tempo depois com uma coisa dura cutucando minha perna. Abri os olhos assustado e não pude acreditar no que via, a coisa havia entrado e estava de frente para mim, em pé, bem próximo da minha cama e estava segurando o mesmo atiçador de lareira com o qual eu pretendia matá-lo, pelo menos foi o que imaginei, pois a escuridão só me permitia ver um vulto alto segurando um objeto fino e longo. Ficamos nos encarando por alguns segundos infinitos.
– Saia da minha casa!
Falou isso e partiu para cima de mim com a peça de ferro. Fui mais rápido e me desviei. Ele acabou por perder o equilíbrio e caiu na cama ao meu lado. Aproveitei a oportunidade, levantei e desci a escada correndo. Tentei abrir a porta de saída, mas justo naquele momento não consegui encontrar a chave. Vi que a porta não havia sido forçada e nem havia qualquer janela quebrada.
Fiquei me esgueirando pelas sombras da casa enquanto procurava as facas da cozinha sem acender a luz. A primeira coisa que encontrei foi um cutelo. Serviria. Senti um arrepio em minhas costas. O maldito tinha descido a escada em silêncio. Virei-me no momento em que ele desferiu um golpe no meu ombro, ainda consegui atingi-lo no abdômen. A dor me fez perder os sentidos. Quando acordei ele estava lá deitado. Levantei sentindo uma forte tontura. Fui andando com dificuldade até o interruptor. Acendi a luz e o que vi me deixou estupefato. O homem era idêntico a mim. Mesmo rosto, mesma altura, e até a roupa era igual àquela com a qual eu havia chegado. Achei que estava louco, mas o cadáver ensanguentado ali no chão era o que de havia de mais concreto em minha mente sem lembranças.
Peguei uma lanterna e fui para o pátio à procura de algum lugar conveniente para enterrar o rapaz. Encontrei uma faixa suficientemente larga e comprida para fazer um buraco onde coubesse o morto. Cavei a terra solta da praia com facilidade. Coloquei o corpo em um lençol e o arrastei até o local. Olhei para aquele rosto que, mesmo sob o véu da morte, ainda parecia demais com o meu para que eu lhe fosse indiferente, e depois o coloquei lá e cobri. Então pude dormir com relativa tranquilidade.
Tive sonhos perturbadores naquela noite. Outra vez via vários rostos sem conseguir reconhecer qualquer um deles. No meio da multidão que me cercava eu via não o meu próprio rosto, mas o daquele rapaz idêntico a mim. Ele caminhava ao meu encontro, sorrindo, mas de seu ventre aberto eu conseguia ver as vísceras mal sustentadas pelo que restava de músculos e pele. Suas vísceras expostas querendo sair.
Acordei sobressaltado com as batidas na porta. Pensei imediatamente que teria sido descoberto. Fui até a janela do meu quarto e avistei uma linda jovem loira aguardando do lado de fora.
Gritei que já ia descer e ela me deu um aceno de lá de baixo. Ajeitei meu rosto rapidamente e vesti uma roupa leve. Cobri o ombro machucado e fui ao seu encontro. Assim que abri a porta ela rodeou meu pescoço com seus delicados braços e sussurrou em meu ouvido:
– Bom dia, Daniel. Você sumiu ontem, o que aconteceu? – Falou isso e em seguida deu-me um beijo leve nos lábios. Confesso que fiquei confuso, mas não achei nada desagradável. Deixei-a à vontade para continuar me beijando. Entramos na casa e preparamos junto o café. Seu nome era Adelaide e como ela mesma havia afirmado, o meu era Daniel. Quando ela saiu, corri para procurar os documentos do rapaz que supostamente era o seu verdadeiro namorado. Felizmente a carteira dele estava jogada no sofá; Como não conseguia me lembrar de quem eu mesmo era, achei conveniente assumir tudo que o finado deixara: a sua vida e o seu amor.
Apesar dos recorrentes pesadelos com todos aqueles rostos vindo ao meu encalço, o tempo passou tranquilo depois do incidente com meu duplo. Aos poucos fui aprendendo tudo sobre a vida de Daniel, de quem eu seria, provavelmente, irmão gêmeo. Adelaide vinha sempre, e víamos juntos os álbuns com as fotografias que seriam da minha família ou da dele. Descobri que tinha outras casas além daquela e que vivia da renda dos aluguéis.
Depois de um tempo eu e Adelaide casamos e ela veio morar comigo. A vida seria perfeita e tudo estaria em paz se eu não tivesse ficado doente. A coisa toda começou enquanto eu fatiava o pão para fazer torradas. A faca resvalou e fez um corte superficial em meu dedo. No início saiu um pouco de sangue, mas, em seguida, percebi que uma substância negra e viscosa começava a escorrer do dedo ferido. Limpei tudo rapidamente e coloquei ataduras apertadas para que Adelaide não percebesse. À noite, antes do dormir, fui tomar meu banho mas primeiro resolvi esvaziar a bexiga. Para a minha surpresa a urina foi se tornando escura e volumosa a ponto de parecer um poço de piche brilhante no vaso sanitário.
A visão daquele líquido nojento flutuando sobre a água do sanitário me causou um asco imediato, e uma preocupação que, em pouco tempo, ocuparia de forma constante os meus pensamentos.
Saí do banheiro angustiado, e pensando se seria prudente procurar um médico. Considerei os problemas que surgiriam desta revelação e achei melhor aguardar os desdobramentos vindouros. Deitei-me, mas não conseguia dormir. Fiquei um tempo olhando para o teto, até que o cansaço me venceu.
Assim que acordei, no dia seguinte, fui direto para o banheiro para observar a cor da minha urina. Estava amarela e completamente normal e pensei que o problema do dia anterior se havia resolvido sem maiores percalços.
Fiquei tão feliz que resolvi sair para passear na praia com Adelaide. Preparamos alguns sanduíches leves, levamos champanhe e duas taças. Sentamo-nos próximos à parede de rochas, observando o respingo da espuma que as ondas lançavam. Era um lugar muito bonito. Bebíamos e brindávamos à nossa felicidade quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair molhando o que sobrara da comida. Juntávamos tudo, para embrulhar na toalha quando um pequeno cachorro se aproximou de nós. Não havíamos percebido a sua aproximação, talvez porque fosse amarelo, no tom exato da cor da areia.
Saímos levando as coisas e ele nos acompanhou. Chovia bastante quando chegamos à casa. A tempestade se aproximava e o céu rapidamente ficava escuro. O vento batia as portinholas das janelas laterais e seu silvo me dava a impressão de ouvir o gemido dos amaldiçoados. Entramos, mas o pequeno cão permaneceu um pouco além das tábuas da varanda, olhando para a porta. Como se esperasse um convite.
Era uma figura tão vulnerável diante daquele enorme mundo escuro, que foi impossível para mim deixá-lo ali fora. Adelaide fez uma sopa para todos nós. O cãozinho acomodou-se no tapete da sala e logo dormia enrolado e satisfeito.
– Vamos ficar com ele?
– Vamos sim, respondeu Adelaide, passando os dedos na cabeça do bicho. – Vai se chamar Tito.
Choveu durante toda a semana e só saíamos quando era mesmo imprescindível. Tito ficava olhando para fora pelo vidro da janela e não se interessava por ir vadiar pelo pátio, ou pela praia. Talvez pensasse que o seu ingresso em nossa família fosse algo ainda provisório, e que se saísse da casa não permitiríamos que lá entrasse novamente. Era um cachorro carinhoso e obediente.
No dia em que estiou, saímos os três felizes com aquele sol brilhando e colorindo tudo com a sua luz sagrada. Adelaide aproveitou aquela manhã radiante para ir ao mercado comprar algumas coisas para casa. Deixei a porta aberta enquanto abria correspondências no escritório e verificava cartas de cobranças e depósitos dos inquilinos.
Ouvi latidos cada vez mais altos lá fora e saí para verificar se alguém havia chegado e por isso Tito estivesse agitado. Assim que abri a porta vi, horrorizado, o meu cachorro cavando com empenho a areia no exato local onde eu havia enterrado aquele homem igual a mim. A raiva que senti na hora me provocou uma forte vertigem e minha vista escureceu. Não me lembro do que fiz neste espaço de tempo mas quando minha consciência retornou eu estava ajoelhado no chão ao lado de vários equipamentos e materiais de construção, passando uma última mão de cimento no local onde havia enterrado o morto.
Adelaide já chegou perguntando o que estava acontecendo. Sorri para ela e falei que aquele piso era para colocar a casinha de Tito em cima.
– Mas ele não tem casinha.
– Vamos comprar uma para ele.
– E por que exatamente aqui? Com tanto lugar já coberto de concreto, porque neste pedaço do terreno com areia?
– Notei que ele gostava de ficar deitado aqui.
– Sério? Nunca percebi isso. Onde ele está?
– Está por aí pela praia. Saiu correndo para o lado das pedras, logo voltará.
Terminei a pequena obra duvidando muito que Tito fosse reaparecer, Depois subi para o banheiro e só então retirei a blusa de manga comprida que estava vestindo. Para minha surpresa havia uma larga ferida por onde minava aquele odioso líquido negro. Talvez Tito tivesse mordido quando eu o agarrei.
Pequenos flashes de luta voltavam para minha memória. Não podia deixar que ele continuasse cavando. Depois me vi nas pedras gigantes da praia, e o mar ameaçador lá embaixo, mas não era Tito que eu segurava. Era a mim mesmo.
Os dias passavam e Tito não voltava. Ainda assim comprei a casinha na cidade, e até coloquei uma plaquinha com o nome dele. Estávamos, eu e Adelaide sempre andando pela beira perto da muralha de pedra à procura dele. Eu realmente torcia para que ele estivesse ainda vivo, que tivesse apenas fugido de mim. Depois de um tempo, porém, comecei a sentir uma dor nas minhas pernas, e Adelaide ia sozinha.
O tempo agora trabalhava contra mim. Primeiro aquele líquido escuro que saía do meu corpo, depois as articulações falhando, e aí meu cabelo começou a cair. Para que Adelaide não percebesse, passei a usar chapéus, bonés, gorros e sempre apagava a luz antes de dormirmos. Mas ela acabou passando a mão na minha cabeça no escuro e percebeu o quanto os fios haviam rareado sobre o crânio. Adelaide insistia em irmos ao médico, mas eu me negava e dizia que era normal para os homens, a calvície.
Ela aceitava, mas nós dois sabíamos que eu era jovem demais para isso. A degeneração do meu corpo seguia implacável. Com a desculpa de sentir dores nas pernas eu saía cada vez menos de casa. Ao longo dos dias a carne perdia firmeza, os dentes amoleciam, e pequenas manchas apareciam sem que eu tivesse levado pancada alguma. Com o tempo as manchas intumesciam ao ponto da pele se romper e formar pequenas chagas sempre úmidas colando-se no tecido da roupa que eu usava.
Vendo aquilo, minha esposa se apavorava e sem me avisar trouxe com ela um médico da cidade. Foi a primeira vez que brigamos seriamente. Estava saindo do banho com um dos muitos pijamas que agora usava o dia inteiro, quando o homem chegou. A primeira reação foi me trancar no quarto e esperar que o estranho fosse embora. Mas logo eles estavam batendo na minha porta e me mandando abrir.
Não abri e tive a minha primeira briga séria com Adelaide. Para evitar outras surpresas iguais àquela, mudei-me para outro quarto no qual ficava a maior parte do tempo trancado, com pacotes de biscoito e garrafas de água. No início ela ainda insistia, mas acabou se cansando e fazendo tudo em casa sem a minha ajuda. A solidão a fazia ficar mais tempo fora, com a própria família, com amigos.
Peguei o hábito de espiá-la pela janela. Não me interessava o que ela fazia em casa. Mas sempre que saía ficava imaginando para onde ia e com quem conversava. Minha pele ficava cada vez mais esticada o que favorecia o rompimento de novas feridas. Meu corpo fedia. Mesmo tomando muitos banhos, o cheiro vinha de dentro, vinha da pasta preta que saía pelos poros, pelas chagas, que saía de mim cada vez que usava o banheiro. Estava me desfazendo em caldo escuro e ódio.
Numa destas vezes, vi um carro chegando lá embaixo. Era o carro preto e elegante de um vizinho nosso. O homem era um policial ainda jovem que havia ficado viúvo. Vi quando Adelaide saiu do carro e sorriu para o rapaz, despedindo-se demoradamente. Até aquele momento eu estava vivendo todo o processo de transformação com desespero e dor, isso é certo, mas todo o resto continuava ali, passando alguma segurança para mim, eu ainda acreditava que todo aquele pesadelo poderia ser revertido e eu voltaria a ser feliz com aminha esposa e o Tito. Ver o sorriso de Adelaide para outro homem foi como derrubar o castelo de cartas que eu mantinha a custo diante da realidade tempestuosa que eu insistia em não enxergar.
A ameaça estava ali, na minha frente, surrupiando a chance de retomar minha vida. Passei o resto do dia pensando. Enquanto ouvia Adelaide cantarolar pela casa, feliz como não a via há muito tempo. Era preciso eliminar o concorrente. Não sabia ainda como, mas daria um jeito.
Aguardei uma ocasião em que Adelaide passaria o dia inteiro fora. Não foi surpresa vê-la saindo com o vizinho, sabe-se lá para onde. Esperei alguns minutos e tomei um banho demorado, vestindo uma roupa de sair, para variar. Peguei ainda um velho sobretudo, calcei meus sapatos e partir para a casa de Roberto. Não era longe.
Ao chegar lá, entrei pela porta que ele costumava deixar só encostada. Morávamos todos em um lugar muito calmo. Revistei tudo tendo o cuidado de colocar cada coisa no lugar antes. Não havia nenhum vestígio da passagem de Adelaide naquela casa. Talvez eles não estivessem tendo nada mesmo. A surpresa foi quando abri a porta novamente para sair, e dei de cara com meu vizinho que havia acabado de estacionar. Ao lado dele, o inimaginável. Encontrei Tito balançando o rabo e querendo pular em mim todo feliz.
Nem tive tempo de abrir minha boca, e ele já foi gritando comigo.
– Saia da minha casa! O que veio fazer aqui?
– Solte o meu cachorro!
– Para você bater nele de novo? Não! Vá embora!
– Eu não bati no cachorro, que história é essa?
Foi então que ele sacou o celular do bolso da calça e me mostrou imagens que me deixaram perplexo.
Não havia apenas um vídeo, mas vários. O primeiro deles era com o Tito. Eu saindo de casa e indo até onde o cachorro cavava um buraco na cova. Vi quando coloquei ambas as mãos na cabeça e logo depois quando peguei a vassoura para espantá-lo para longe do local. Depois quando segui para o depósito de material de construção, e voltei sozinho com um carrinho de mão. No vídeo deu para ouvir um ganido de Tito. Então eu sumi do foco da câmera e em seguida, apareceu Tito correndo em direção à praia e ganindo. Então eu havia batido nele?
Em um momento da fita também aparecia um vulto passando pelo outro lado da casa. Não me liguei neste detalhe na hora, só depois que pedi para que ele passasse todo o material para mim, é que fui tentar descobrir aquela outra pessoa.
Voltei para casa sem o Tito, embora ele tenha feito um esforço enorme para me acompanhar. Perguntei a Roberto, porque ele estava filmando a minha casa e ele me explicou que estavam acontecendo furtos nas casas fechadas e ele havia instalado câmeras em lugares estratégicos para ver se pegava o ladrão.
Antes de ir para casa decidi passar na quitanda que ficava em um pequeno centro comercial e comprar algumas frutas, aquela dieta de biscoito e água estava piorando meu estado de saúde. Levei minha comida e coloquei toda num pequeno frigobar que havia no quarto que eu passara a usar. Resolvi sair todos os dias para poder pegar sol e visitar o Tito.
Vi as primeiras filmagens, felizmente haviam sido feitas depois que o homem igual a mim apareceu, o meu vizinho policial ainda não havia instalado as câmeras na época em que o havia matado. Eram filmes muito entediantes, a maior parte de paisagens paradas. Então voltei para o dia em que o Tito foi agredido. O vulto estava lá. Passava rapidamente para os fundos da casa. Mandei o vídeo para um programa que reduzia a velocidade. Vendo a filmagem pausadamente, percebi que quem passara pelo outro lado da casa havia sido Adelaide. Não compreendi nada. Como assim? Pelas minhas contas ela só havia chegado quando eu já estava colocando cimento onde seria a base para a casinha de Tito.
Achei aquilo muito estranho. Adelaide sempre fora uma esposa carinhosa e até havia chamado um médico para me ver em casa. Mas vê-la chegando em casa e usando o caminho que nunca usávamos foi bem estranho, ainda mais porque ela fingiu ter chegado depois. Aquilo ligou um alerta no meu cérebro. Fui até o quarto dela, mexi nas coisas, abri as gavetas. Encontrei um rabisco com o nome: Moacir Pimenta, e o número do hospital. Liguei para lá, marquei uma consulta. Resolvi não falar nada para ela.
No dia seguinte eu esperei que ela saísse e chamei um táxi para me levar no hospital da vila. No balcão, perguntei onde era o consultório do Dr. Moacir Pimenta. Fui até o consultório 2 B, onde um senhor grisalho já me esperava e me mandou sentar na cadeira para contar o que estava acontecendo. Fiquei ali em pé olhando para o médico e achando que havia ficado louco, pois o Dr. Moacir Pimenta que havia estado em minha casa, era pelo menos uns vinte anos mais jovem do que aquele homem.
Como já estava lá resolvi me consultar e descobrir o que estava acontecendo comigo, afinal. Foram colhidas amostras de tudo, o médico fez milhares de perguntas e me disse para voltar dali a cinco dias para buscar os resultados e falar com ele. Fui embora pensativo, sem entender o que acontecia. Fiquei o dia quase todo no quarto, comendo os alimentos que havia comprado. Adelaide subiu algumas vezes com uma bandeja. Aceitei, mas não comi. Estava desconfiando dela. Jogava no lixo e esperava que ela saísse para colocar no coletor lá embaixo.
Notei que as caminhadas e a nova alimentação faziam que eu tivesse menos enjoos, me sentisse melhor. Afinal o dia de receber os exames chegou.
- O senhor mora sozinho, senhor Daniel?
- Moro com a minha esposa.
- Tem cozinheira? Mesmo eventual. Ou jardineiro? Alguém mais frequenta a sua casa?
- Não. Somos só eu e Adelaide mesmo. Por quê?
- Por gentileza, leia este papel.
Empalideci ao ver o que estava escrito. O médico ainda me informou que relataria tudo à polícia e que eu precisava ficar internado lá para fazer um tratamento. Concordei.
Fiquei calado por um tempo. Desolado. Sem ação. As palavras terríveis conspurcando a brancura do papel ficavam se repetindo na minha cabeça enquanto eu tentava fazer conexões delas com aquilo que eu acreditava ser realidade.
Pensei na cova com um cadáver dentro e temi que a polícia a descobrisse, mas não havia mais nada a ser feito, apenas tentar sobreviver.
Durante os quinze dias que passei no hospital não tive notícias de Adelaide. Nenhuma visita ou telefonema, nada. Roberto veio me visitar e falou que ela não fora mais vista. O tempo se desenrolava lento e enfadonho. Usei aquela pausa para assistir cada um dos pequenos filmes gravados pelo policial. A maioria mostrava apenas a praia, a casa, nosso cachorro. Nada que chamasse a atenção. Em um deles, todavia, vi Adelaide cavando exatamente no local onde havia o corpo e jogando lá dentro algo que não dava para distinguir o que era.
Quando voltei à minha casa descobri duas coisas, Adelaide havia ido embora levando tudo o que era dela, e minha conta conjunta estava com menos da metade do dinheiro. Ninguém precisava me dizer que ela havia arrastado o que conseguira, mentindo para o gerente do banco.
Minha memória estava prejudicada para sempre. Precisava descobrir o que estava acontecendo de verdade. Saí procurando em cada pedaço da casa tentando achar algo que me desse uma luz. Procurei pela casa toda, inclusive pelos cômodos que não usávamos. Olhando debaixo de uma das camas percebi um volume com um símbolo de agulha e linha na tampa. Trouxe para cima da cama e abri. Como era de se esperar, havia uma divisória com tesouras, linhas, e outros apetrechos de costura. Mexi naqueles objetos com o carinho de quem tenta lembrar da mãe que um dia havia sido tudo para mim. Foi quando ouvi um barulho lá embaixo e me levantei de uma vez, deixando a caixa cair. Fui até a janela, mas não era nada. Talvez alguma janela batendo, depois iria lá verificar.
Peguei a caixa no chão e notei que havia quebrado a estrutura interna. Virei a caixa na cama e fui pegar uma cola de madeira, quando fui passar a cola notei um fundo falso embaixo da divisória. Um fundo falso com fotos.
Tinham várias fotos de família iguais a muitas que havia visto. Dentre elas um maço de fotos dentro de um saquinho de pano amarrado com um laço azul. Tirei os retratos com cuidado. Eram fotografias minhas junto com uma moça morena de grandes olhos cor de mel, um rosto lindo que eu não lembrava que já havia visto. Atrás de uma delas, uma dedicatória:
Ao meu noivo, como todo o amor.
Adelaide.
Aquela não era Adelaide, definitivamente. Ou, por outro lado, aquela era Adelaide e eu não sabia o nome da moça com quem havia me casado. De repente a vida era uma surpresa atrás da outra, e nenhum sentido para mim.
Onde a moça da foto estaria? Fiquei angustiado. Perdera todo um passado emocional e havia caído nas mãos de uma estranha que talvez estivesse tentando me matar.
A falsa Adelaide havia ido embora, mas quem me garantia de que não iria voltar para terminar o que começou? Era urgente comunicar o seu desaparecimento e ir embora dali. Passei uma procuração para uma firma que cuidaria do meu patrimônio e fiz uma nova conta bancária para receber o dinheiro das rendas sem acesso para minha esposa.
Antes de partir, li novamente o papel com o diagnóstico:
- Traços de Trióxido de Arsênio, e mescalina oriunda do extrato de lírio branco na urina e em amostra dos tecidos dos rins e fígado.
Veneno e alucinógenos! Fui até o local onde estava a cova do outro eu, mas, felizmente, não havia nada ali enterrado além de sacos com lixo apodrecido. Nunca saberia se tudo aquilo havia acontecido de fato, mas me aliviava saber que, aparentemente, não havia matado ninguém.
Aquela escuridão em que se transformaram minhas lembranças me angustiava. Fiquei imaginando há quanto tempo a falsa Adelaide me envenenava, provavelmente muito antes do dia em que a vi pela primeira vez, ou pelo menos quando eu achei que foi a primeira vez. Com boa parte da memória apagada, eu não podia mais ter certeza de nada.
Meus pensamentos eram confusos, e o que mais me incomodava era não saber o que havia acontecido com a verdadeira Adelaide. Se estaria morta ou dada como desaparecida. E tudo o que eu tinha para descobrir eram algumas fotos.
Fui até a cidade pegar o resto dos documentos e comprar um carro. Na volta da concessionária parei em um posto para abastecer. Enquanto esperava o frentista completar o tanque, vi dois homens saindo da loja de conveniência: Meu vizinho Roberto e o falso médico que Adelaide havia levado para me consultar em casa, o que se passava pelo Doutor Moacir Pimenta. Não esperei que me vissem. Parti imediatamente para casa e fui até o depósito de ferramentas. Voltei com o machado. Assim que Tito me viu, deu pulos de alegria. Dei machadadas na corrente até conseguir parti-la. Peguei meu cachorrinho no colo e voltamos para casa. Já ia buscar a mala quando vi que Tito queria ir as pedras talvez para me mostrar alguma coisa.
Escalamos a rocha até seu cimo, e ficamos olhando o oceano jogando suas ondas incessantemente contra o paredão. Tito não parava de latir e rosnar, mas não havia nada lá embaixo. Quando olhei de volta para ele, vi que também me olhava fixamente como se estivesse prestes a me atacar. Seus olhos cheios de fúria pareciam diferentes e perturbadores como olhos humanos em uma cabeça de cachorro.
"Demasiadamente humanos."