O ÚLTIMO NATAL DA CONDESSA MONTENEGRO.
Um sol pra cada um.
Um calor escaldante no morro do Encantado. A garotada empinando pipa. O rio poluído cortando a favela, separando os morros do Encantado e da Serrinha. Os urubus sobrevoando a área. Cada barraco tocando um funk diferente.
As mães gritando pelos filhos. Os motoboys nas vielas. Marizete e Juninho saíram de casa. O garoto de cinco anos ficaria com a avó, Luzinete.
A moça tomou um moto táxi até a rodovia do estado. Finalmente uma entrevista de emprego, após sete meses em casa, devido a pandemia do Covid-19.
Demitida de uma tecelagem, onde era costureira, ela entrou em desespero com a morte precoce do companheiro Raimundo, morto durante um assalto a banco. O anúncio no jornal chamou sua atenção.
Tinha o curso de enfermagem e de cuidadora de idosos mas jamais exerceu tais profissões. Ligou para o telefone do anúncio. Tinha entrevista às onze horas. Deveria comparecer a rua José Bonifácio, 1.766, Jardim Imperial, munida de carteira profissional e atestado de antecedentes criminais.
Pensou no irmão, Devanilssom.
O moço cumpria pena de seis anos por latrocínio. Uma família complicada. Ela era filha do famoso estelionatário Dico da Conceição.
Quarenta minutos aguardando o ônibus da Prainha. O coletivo veio lotado. Meia hora circulando até o terminal de Mossoró.
Outra espera.
Vai e vem de passageiros. Alguns passageiros pulando as catracas. Marizete desceu, pela escada rodante, até a plataforma doze. Outra espera.
Um formigueiro de gente. Ela tirou um drops da bolsa.
O trem, finalmente.
-"Ninguém dá o lugar pra mulher e idoso! Isso, finjam que estão dormindo, ridículos." Gritou.
Quarenta minutos de pé no vagão. Fim da viagem. As escadarias. O centro da cidade. Outro ônibus até o destino final.
Outra espera. Outra vez o coletivo lotado. Um homem também de pé, a encoxando. Ela sacou o spray de pimenta da bolsa.
-" Quer levar pimenta nos olhos ou quer que chame a polícia, idiota?? Tenho uma peixeira aqui, se preferir ficar sem pipi!!!"
O homem se afastou.
Marizete puxou a cordinha. O motorista não parou no ponto. Ela deu um grito, deixando surdo um rapaz do seu lado.
-" Acorda, motorista! Passou do ponto, carvalho! Fio de uma égua!"
O ônibus freou bruscamente.
-" Tá ajeitando a carga de suínos, idiota?"
Ela desceu do ônibus.
Olhou em volta. Abriu a sombrinha pra se proteger do sol. Uma rua de casarões. As árvores bem podadas.
Um calçamento refinado e limpo. O asfalto novo, impecável. Um sorveteiro passou. Ela pediu informações do endereço.
-"Rua José Bonifácio? É essa aqui, moça." Andou por três quadras.
Era o último casarão da rua. Dava pra ver o aeroporto dali.
Um muro alto. Grades e portões enormes. O interfone. Apertou o botão com força.
-"Faltam quinze minutos! Estou morta!" Enxugou o suor do rosto.
-" Bom dia. Quem deseja?"
Disse a voz do interfone, oito minutos depois.
-"Sou Marizete Silva Santos Rodrigues. Vim pra entrevista, cuidadora.
Bom dia, também."
O portão não se abriu.
Minutos depois, um homem elegante se aproximou.
-" Bom dia. Sou Guedes, o mordomo. Coloque a máscara, por favor. Limpe os pés nos tapetes sanitizantes.
Vou passar o aparelho detector de metais na sua bolsa. Vou abrir!"
Marizete entrou.
-"Quanta coisa em casa de rico. Pai do céu." Ela seguiu o homem por um extenso jardim.
-" Cuidado, senhora. Não pise nas bromélias, por favor.
O senhor Herculano advogado, irá atender a senhora. Espere na sala de jornais. Até mais."
O mordomo abriu a porta do casarão de dois andares.
Ela sentiu os chinelos afundar no grosso tapete. Um pequeno sofá. Um aparador com um telefone. Um quadro de Monet.
Um luxo.
Ela passou o dedo no aparador.
-"Limpo demais."
O mordomo voltou.
-" Aceita água, senhora? Mineral ou torneiral?"
Marizete segurou o riso diante daquele homem sério e compenetrado.
-" Mineral, senhor Guedes.
Muito obrigado!"
O mordomo a serviu.
-" Permita-me corrigí-la. Mulheres dizem obrigada, jamais obrigado.
Homens dizem obrigado. Com sua licença."
Marizete tomou a água.
Um rapaz entrou no recinto.
-"Bom dia. Senhora Marizete."
Ele a cumprimentou.
-" Sou o advogado da família, doutor Herculano Fagundes! Vamos ao escritório? Por aqui, por favor."
Ela entrou na sala de estar.
Uma porta e a biblioteca. Uma grande mesa de mogno.
Uma estante alta e cheia de enciclopédias.
-" Sente-se. Veio preencher a vaga de cuidadora da condessa Montenegro?
Posso ver sua carteira de trabalho, senhora?" Marizete afundou na poltrona macia.
Tirou a carteira de trabalho da bolsa.
-" Não se assuste com a foto, moço."
O advogado não esboçou nenhuma reação. Folheou a carteira. Franziu a boca pra baixo. Ajeitou os óculos.
Pegou o celular.
-" Sim, senhor Montenegro. Pois não. Certo. Enviarei os dados da senhora.... deixa ver, a dona Marizete já veio! Certo. Eu ligarei depois. Grato. Fique com Deus, senhor Montenegro."
O advogado se ajeitou na cadeira.
-" Bem. A senhora preenche os requisitos embora more bem longe daqui. Outras candidatas, com melhores requisitos, dispensaram a vaga de cuidadora da condessa Montenegro.
A condessa dispensa alguns cuidados especiais.
É uma senhora de setenta anos." Marizete estava curiosa.
-" Porquê dispensaram? O salário é ruim?"
O advogado organizou alguns papéis.
-" Ao contrário, é até melhor que o meu porém dispensa muita dedicação, paciência extrema, cuidado e força, saber ouvir e conhecer enfermagem.
Horário de doze horas diárias, uma folga semanal. Salário de dois mil e oitocentos reais.
Cesta básica e vale transporte. O que acha?"
Marizete engoliu em seco.
-"Eu aceito. Puxa, que ótimo salário."
O advogado deu um suspiro.
-" Ótimo, senhora Marizete.
Preciso de suas documentos. Posso por favor, tirar uma foto da senhora?
Vou mandar a foto para o sobrinho da condessa, em Paris. Olivier gerência os assuntos da tia com esmero.
É o único herdeiro dela, sabe?"
Marizete parecia sonhar.
Estava empregada, finalmente. Muito bem empregada.
-" O que devo fazer, senhor advogado?"
O homem parecia mais calmo. Dava pra notar um pequeno sorriso no canto da sua boca.
-" Uma cuidadora cuida, logicamente.
Dar banho, inalação nas horas programadas, os comprimidos, acompanhar o café e chá da tarde, verificar a temperatura nas horas programadas.
Basicamente isso.
A senhora ficará com o turno da noite. Contratamos outra cuidadora pra parte diurna, visto que a senhora Rosilene faleceu. Ela cuidou da condessa por longos quinze anos. A senhora é paciente?"
Marizete se arrepiou.
-" Eu? Sim, sou muito paciente.
O motorista passou do ponto, quando eu vinha. Tive muita paciência com o motorista, coitado."
O advogado sorriu.
-" Não terá que limpar ou cozinhar pois temos funcionários pra isso. Temos o mordomo Fagundes, o motorista Higino, o jardineiro Tomás.
Vai gostar de conhecer a faxineira Estela e as cozinheiras, Sebastiana e Perpétua." Marizete estava curiosa.
-"Uma casa enorme, tantos empregados pra uma pessoa só?"
O advogado se levantou.
O celular pronto. Marizete ajeitou os cabelos. Uma foto rápida.
-" Isso. Perfeito. Pode começar hoje, se quiser."
O homem estendeu a mão. Marizete o cumprimentou.
-"Virei hoje, certamente. Muito obrigada."
O advogado tocou uma sineta.
O mordomo veio e acompanhou Marizete até o portão.
O advogado ficou espionando, pela cortina do escritório, sua saída da mansão. O mordomo fechou o portão.
-"Volte mesmo as dezoito, senhora. Ninguém mais suporta a louca da condessa! Tem hora que dá vontade de matar aquela velha chata e rica!"
Marizete se benzeu.
-"Homem, tenha paciência e fé. Sei que está aqui pelo salário. Temos que aguentar o baque. Tchau."
Marizete demorou duas horas pra chegar em casa. Anunciou a novidade aos familiares.
-" A velhaca caquética certamente dormirá a noite toda, filha. Será uma teta!"
Profetizou a mãe de Marizete.
A tarde caiu.
A mulher chegou cedo a mansão. O sol ensaiava seu adeus quando Marizete entrou na mansão. O motorista cuidava de dois cães rottweilers.
-"Você que é a Marizete? Bem vindo ao inferno!"
Gritou Higino.
Marizete sorriu apenas. Deveria ser brincadeira dele.
O mordomo deu a ela uma lista de deveres e um uniforme azul e branco.
-" Seu quarto fica no andar superior, senhora Marizete. Vai conhecer a condessa agora. Se apronte."
Marizete subiu as escadas. Um quarto grande com banheiro. Uma cama macia e um guarda roupas.
-"Vem cá, coisa linda!"
Um homem a agarrou por trás. A pequena Marizete foi levantada com facilidade. O homem era muito forte.
-" Me bote no chão, cabra!"
Marizete foi beijada a força. Tomás levou um arranhão no rosto. O advogado entrou no quarto.
-"Senhora, deve assinar. O que é isso aqui? Tomás, saía daqui!"
O homem obedeceu.
-" Vai se ver comigo, onça brava!"
Marizete se recompôs. O advogado fechou a porta.
-" Desculpa. Tomás, bom jardineiro mas um grosso! Assine os documentos, por favor. Vou adiantar seu vale transporte."
Marizete agradeceu.
-"O sobrinho da condessa Montenegro lhe enviou votos de boa sorte. Agradeceu, desde já, a sua colaboração."
O advogado saiu.
Marizete, já de uniforme, foi ao quarto da condessa. Bateu na porta.
-"Sim. Entre, querida."
Marizete verteu uma lágrima. A condessa a fez lembrar de sua saudosa avó. A mulher elegante estava sentada em frente a penteadeira.
Parecia aquelas velhas atrizes de Hollywood. Os olhos azuis lembravam Liz Taylor.
O cabelo armado, as mechas imóveis. O queixo de uma nobre. Gestos finos e elegantes.
-" Marizete? Me dê um abraço! Chamarei-a de Mary, mais elegante. Meu andador, por favor!"
Marizete parecia agradar a condessa.
O banho. Os cremes. Os perfumes importados. Os chinelos. Um exercício de fisioterapia na suíte.
A condessa contando histórias.
-" Meu tataravô era dono de Montenegro, hoje país. Somos riquíssimos. Papai deve estar no porão.
O Ibraim Suede me ligou ontem. Quer uma entrevista pra revista Manchete.
Ai, não aguento mais sair nesses folhetins. Marizete não entendia nada, apenas ria.
-" Esse jornalista, o Waltinho, vive pedindo entrevista comigo.
Ah, não vou dar. Odeio fotos."
Marizete era prestativa e gentil. O mordomo anunciou o jantar.
Ele seguiu a frente da condessa até o elevador interno. Marizete sentiu um cheiro de feijoada.
-"Quero caviar, lagosta e espumante. O Paulo Arns e o Hélder virão jantar comigo.
Ligue pra eles, mordomo Alfred."
A condessa ria.
A mesa de vinte lugares. Um prato de sopa de ervilhas e um pão foi colocado pelo mordomo a frente da condessa.
Ela experimentou. Marizete estava ao lado dela.
-" Quero lagosta! Meu pai trouxe da Noruega."
A condessa jogou o prato de sopa sobre a cuidadora.
-" Cadê a Filomena? Essa não é ela."
O mordomo tocou a sineta. As cozinheiras vieram.
-" Vá se limpar, Marizete. Nós cuidaremos da condessa!"
Marizete subiu ao quarto. De roupa limpa, percebeu que a condessa já dormia.
-" Ela fica agitada, às vezes. Demos um calmante. Vá comer uma feijoada, Marizete. Você se acostuma com a rotina."
Disse o mordomo, sorrindo.
Os meses se passaram.
Marizete cuidava bem da condessa e descobriu que os demais funcionários ganhavam igual a ela.
Na ausência do advogado, os funcionários faziam banquetes as escondidas.
A condessa alternava momentos de lucidez e loucura. Marizete gostava de ouvir as histórias da mulher.
Havia uma adega enorme com vinhos e whisky caríssimos. A condessa raramente saía.
As consultas com o geriatra, uma passada na padaria ou um passeio no jardim, nada mais que isso.
O advogado usava a Ferrari da mansão. O automóvel era de Rômulo, único filho da condessa, morto há quatro anos num acidente de carro.
Dois Corollas na garagem. Um Ford, ano 1948, reformado. A relíquia era do saudoso pai da condessa. O motorista dava uma volta no jardim, com a condessa no banco da frente, uma vez por semana.
Ela saía do passeio renovada.
-"Que delícia passear pela Champs Ellysses, Rômulo. Adoro, meu filho."
A condessa frequentemente confundia o motorista com o filho falecido. Marizete se divertia com a cena. A condessa mostrou a ela as gavetas com quilos de jóias.
-" Fui a primeira modelo da H.Stern. Eles ainda mandam jóias pra mim.
O Lima Duarte era louco por mim. Eu gostava do Tarcísio mas a Glória Menezes era possessiva demais. O Mazzaropi ainda é vivo? Ah, que menino bom. Participei de figurante nos filmes dele, sabia?"
Marizete se acostumou a passar as noites em claro com a condessa gritando, dando chilique e delirando.
Vivia outra realidade, devido ao Alzheimer e outras doenças.
-" De que adianta tanto luxo, dinheiro e jóias se não tem saúde, sem crianças na casa, sem poder usufruir?"
Pensava a cuidadora.
-"Às vezes da pena, às vezes não. Essa nunca ralou, vivia viajando e namorando homens lindos e poderosos, Mary.
Nem sabe o que é sarapatel e buchada. Nunca entrou no ônibus ou num mercado com a lista e o dinheiro contado! Tenho pena nada! A família dela, cadê?
Tudo no cemitério. Só o sobrinho velho cuida de longe dela, através do advogado!" Disse a cozinheira Perpétua.
O mês de dezembro chegou.
A condessa parecia outra pessoa. Pediu ao mordomo que enfeitasse a casa pro natal.
-"Meu pai buscava o pinheiro em Turim. Os panetones e chocolates vinham de trem, de Zurique. Quero bolo de nozes, Mary.
Natal não pode faltar o bolo do aniversariante, o menino Jesus!"
Marizete abraçou a condessa.
-"Eu queria levar a senhora pro morro. Fazer a senhora andar descalça na lama. Comer um prato de salpicão da tia Zurema ou o pavê de bolacha Maria da minha vizinha, Fabiana. Tomar uma cerveja bem gelada na laje, vendo os pipocar dos fogos de artifício.
Dormir na rede, ao som do Molejão.
A fumaça da churrasqueira, os cães latindo e os homens gritando no jogo de truco.
Isso é viver, condessa."
Marizete percebeu que a mulher dormia.
-" Condessa. Dopada de tanto remédio, essa coitada nem vive direito!"
A casa estava linda. Um papai Noel enorme no jardim, cercado de renas.
Havia seis caixas com enfeites natalinos. Uma guirlanda linda na porta. O motorista e o jardineiro passaram um dia inteiro enfeitando a mansão.
Marizete se admirou com a quantidade de comida que o mercado entregou na casa. Pra surpresa de todos, o sobrinho da condessa chegou na antevéspera de natal.
Abelardo Montenegro estava sozinho. Um homem idoso. Careca e de bigode fino. Marizete o reconheceu das fotografias espalhadas pela casa.
O advogado estava nervoso pois não esperava a presença de Abelardo.
-"Vim pessoalmente ver a titia. Me preocupei com ela."
Abelardo cumprimentou cada funcionário. A mansão estava linda a noite, toda iluminada. A condessa deu uma cesta de natal a cada funcionário.
Abelardo conversou muito com a tia. Marizete ganhou um colar de pérolas. Véspera de natal. A mesa pronta para a ceia. Chester, perú, tender, leitoa assada, rabanadas, profiteroles, frutas e muitos panetones.
A condessa vestiu um lindo vestido vermelho e uma tiara de diamantes. Marizete tirou fotos com ela, junto a árvore.
-"Estou linda, Mary? O Fernando Collor já chegou? Ele disse que viria após despachar em Brasília."
O jardineiro fez as pazes com Marizete.
-"Estou apaixonado por você, Marizete."
Ela não deu bola.
-" Safado. Já vi o senhor agarrando a Bastiana na edícula! Vou lhe perdoar pois é natal."
O advogado estava conversando com Abelardo no jardim. Marizete trocou os remédios da condessa. -"Vou dar balinhas no lugar do remédio. Essa coitada tem que aproveitar a ceia." Passava de uma hora da manhã. Marizete foi ao quarto da mulher. -" Condessa. Trouxe um bolo de nozes e whisky com gelo. Vou trancar a porta." A condessa sentou a beira da cama. -" Um monte de cerimônia na mesa. Partiu o coração ver a senhora comendo tão pouco. A maioria já foi embora. Vamos nos divertir, mulher. Beber até o furico fazer bico!" Marizete serviu a condessa. -"Pega com a mão, igual criança. Lambuza a boca e limpa a mão na cama. A senhora tem que ser feliz!" A condessa obedeceu e ria gostosamente. -" Minha mãe ficaria brava com isso. Ela já morreu! Rômulo morreu. Ele cuidava bem de mim." Marizete pegou o copo. -"Essas bebidas caras, guardadas. Pra que , não é mesmo?" A condessa ria. -" Tem razão, amiga. Vivamos o hoje. Agora quero uma cerveja gelada. Fazer vira, vira, virou. Eu invejava as minhas amigas que faziam isso nas festas." Marizete se surpreendeu. -" A senhora nunca fez muita coisa, não viveu. Ficou fechada num conto de fadas!" Ela foi até a cozinha. Os funcionários tinham ido embora. A geladeira abarrotada de comida e doces. A condessa tomou uma lata de cerveja num só gole. Ela abraçou a cuidadora. -" Há tempos não era tão feliz. Abelardo veio? Parece que o vi." Marizete confirmou. -"Está no jardim com o advogado!" A condessa dormiu. Marizete ajeitou a mulher na cama. Virou a garrafa de whisky na garganta. -" Coisa boa. Vou dormir também." Ela foi para o quarto dela. Ouviu passos na escada. -"Deve ser o Seu Abelardo." Pensou. O sol emanava os seus primeiros raios. Marizete deu um salto na cama ao ouvir três tiros. O som no quarto ao lado. Ela pulou da cama e se enfiou dentro do guarda roupas. Agachou e se cobriu com um edredom. Ouviu alguém entrar no quarto. Passos. Certamente estariam olhando debaixo da cama. Marizete chorou, temendo o pior para a condessa. As sirenes da polícia, meia hora depois. Os policiais revistaram a casa. Marizete foi encontrada em seu esconderijo. Ela foi algemada. -" Não fiz nada. Sou inocente!" Marizete foi levada ao quarto da condessa Montenegro. A mulher fora alvejada na cama. Tiros certeiros no peito da condessa. A condessa estava morta. Marizete ficou horrorizada com a cena. O cadáver frio, a cama de lençóis finos com muito sangue. Marizete foi levada ao camburão. O delegado mostrou-lhe um corpo na piscina. Abelardo estava morto, boiando na piscina. Uma cena horrível. -"Parece que você fez tudo sozinha. Matou a condessa e o sobrinho. Achamos as jóias na sua cama." Marizete estava surpresa. Ela era a principal suspeita dos crimes. Os outros funcionários foram convocados e ouvidos pelo delegado. Tinham como álibi o fato de terem saído mais cedo da mansão. Todas as evidências apontavam para Marizete. A mídia descobriu o passado de seus familiares, o irmão problemático, o pai violento e fora da lei. A foto dos mortos, ao lado da foto de Marizete, nas capas dos jornais. A condessa e o sobrinho foram enterrados no mausoléu da família. O advogado da família estava foragido. A polícia procurava por ele. O escritório dele revirado pelos investigadores. Documentos com desvios de verbas da condessa foram encontrados. Estaria o advogado associado com Marizete nos crimes ou extorquindo Abelardo?!? O advogado se apresentou, uma semana depois. Não sabia de nada. Disse que Abelardo se despediu dele, após a meia noite. As imagens de uma câmera de segurança, de um supermercado próximo, comprovaram a versão do advogado. Ele era inocente. Marizete estava presa. O espírito da condessa Montenegro entrou na mansão fechada, isolada pela polícia. A condessa foi até a adega. Por anos não mexeu numa só daquelas valiosas garrafas. A toalha de natal na mesa. -"Abelardo! Cadê você, inútil?" O fantasma percorreu a mansão. A piscina. A condessa mergulhou e puxou o homem lá de dentro. -"Achei. Pensa que sou tola, verme. Que ia deixar tudo pra você e seus falsos amigos da Itália?" Abelardo a estrangulou. A condessa riu. -" Já morremos, trouxa. Pode apertar. Mudei o testamento a tempo, imbecil. Matou-me e se afogou na piscina." Abelardo foi pego pelo braço e atirado pra longe da condessa. -"Rômulo? Meu filho." O jovem apontou para o tio. -"Abelardo me matou, mamãe. Ele sabotou os freios do meu carro." Dias depois, advogado, Marizete e os investigadores voltaram a mansão. Eles vasculharam a casa. -"Abelardo. Ele falou demais sobre o testamento. Não está no meu escritório. Temos que encontrá-lo!" O delegado foi ao quarto da condessa. Marizete recordou as últimas horas com a condessa. -"Ela encheu o caneco, com gosto! Morreu feliz!" Marizete disse tudo ao delegado. Os tiros. Os passos na escada e a entrada de alguém no seu quarto. -" Quem matou a condessa iria me apagar também. Espere. A condessa passava horas na adega. Disse que não abria aquelas garrafas caras há anos!" O advogado deu um salto. -"A adega. Ela escondeu o testamento lá." Três mil garrafas retiradas com carinho. Um papel encontrado. Era o testamento da condessa. O advogado leu o documento. -"Abelardo receberia muito menos de herança. Por meio de amigos, a condessa descobriu suas falcatruas na Europa." Ela doava uma parte de sua riqueza a caridade. Uma parte aos seus funcionários, incluindo Marizete. Abelardo ficaria com uma pequena soma em dinheiro e a mansão de Turim. Marizete foi defendida pelo advogado Fagundes. Ela foi inocentada e solta. Durante a partilha de bens da condessa, Marizete reencontrou os funcionários da mansão. Notou um certo arrependimento neles pois a condessa os colocara no testamento. Marizete comprou uma casa, no mesmo bairro da mansão. Era a única que se dispôs a cuidar do lugar. O advogado aparecia no local, às vezes. Uma forte amizade cresceu entre eles. A mansão da condessa foi transformada, um ano depois, num asilo beneficente. Era a vontade da falecida. -" Eita. A condessa ia gostar de ver a essa mansão cheia de gente. Os bailes da melhor idade na sala de estar. O jardim com tanta gente passeando e conversando. A adega transformada numa academia." Disse Marizete a Fagundes. Ela percebeu um olhar estranho no advogado. -"Quer namorar comigo, Marizete? Bem. Eu gosto muito de você." Ele corou. Marizete o beijou. Marizete e o advogado Fagundes se casaram e criaram a ONG Condessa Montenegro. Ela cursou Direito e foi eleita diretora da Casa de Repouso. Ela estava no escritório, certo dia. -"Com licença, doutora Marizete. Há uma visita para a senhora! Um velho de terno com quatro seguranças." Marizete fez uma careta. -"Me chame de Mary, Camila. Doutora nunca. Apenas Mary. Mande o cabra entrar. Traga água, por favor." Minutos depois, um homem entrou no escritório. Marizete quase enfartou. -"Senador Fernando Collor??! Que honra!! Estou toda mulamba, mal vestida." Eles se cumprimentaram. -"Há tempos queria conhecer a ONG da condessa! Está lindo o lugar." Marizete ligou para o marido. Eles mostraram o asilo ao senador. Havia fotos da condessa por toda a casa. -"Ajuda é sempre bem vinda mas a condessa deixou dinheiro suficiente para manter a casa por muitos anos." Uma foto da condessa bem jovem, num baile de gala. Marizete notou que o senador fixou o olhar e mordeu os lábios. -"Ela era linda. Parecia aquelas velhas atrizes de Hollywood. Delirava e não falava coisa com coisa. Todos achavam que eram mentiras, fantasias. Uma vez me disse que esperava sua vida, senador! Estava em Brasília e não pode vir! É verdade?" A resposta estava nos olhos marejados do político. Marizete sentiu um arrepio. -"Você demorou mas veio, Fernandinho!" Disse o espírito da condessa. FIM