NEM TUDO É IMPROVÁVEL
Todas as ações do professor doutor You-Koddlak eram extremamente calculadas, não que a frieza dos seus atos fosse um instrumento mecânico, longe disso. A verdade acerca do seu pragmatismo metálico correspondia muito mais aos impulsos inerentes à sua natureza nórdica, na qual a vida e, consequentemente, os insumos necessários a sua manutenção precisam, e devem, encontrar uma linha reta como trajetória a ser percorrida. Por conta disso, a maioria o julgava como uma pessoa fria e desprovida de sentimentos, mas a realidade distava muito de tais afirmações, pois o renomado docente apreciava, sentia prazer, em tudo que fazia, até nas menores ações.
Recentemente, o renomado docente deliciou-se com um desses pequenos deleites que a vida lhe proporciona vez ou outra. Koddlak apreciava muito o seu ofício, de modo que ao conseguir eliminar a presença de um antigo desafeto na região que adotara como sua, foi abraçado por uma satisfação tão ou mais intensa do que a que experimenta toda vez que se serve do seu prato predileto.
Embora Koddlak não se sentisse diminuído com uma refeição frugal, ele apreciava ao extremo as notas singulares do alimento perfeito. E sua memória meticulosa resgatava com precisão a última vez que obtivera uma satisfação plena e abrangente no simples ato de levar nutrientes ao corpo: o jantar com a sua querida amiga Amy. Sim, vinte e dois anos se passaram desde então. Uma vida inteira na espera por um aprazimento similar. Infelizmente, as circunstâncias lhe negavam a chance de uma repetição em cada jantar, era impossível, pelo menos do jeito que queria, logo, Amy ficaria para sempre apenas na lembrança.
Mas o professor não se lamentava, pois, como dizia Nietzsche: “Aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”. E ele tinha um motivo para se levantar todos os dias, a melhor das razões, pois, como dito antes, Koddlak amava tudo o que fazia.
E, foi numa de suas paixões, a docência, que um comentário aparentemente despretensioso fez com suas lembranças fossem mais uma vez ativadas, o que era algo raro de acontecer, pois sempre fizera questão de manter sua vida profissional e privada em absoluta separação.
- Os distúrbios que atingem a mente humana – dizia Koddlak – frequentemente tornam-se exteriores através de sintomas físicos, como dificuldade de concentração, fadiga, suores, tremores e outros indícios e...
- E de que maneira a licantropia age na sociedade moderna, professor?
A pergunta feita a esmo fez com que o docente tornasse irregular a caligrafia até então perfeita no quadro branco. Intrigado, ele procurou e encontrou o questionador na terceira cadeira da esquerda para direita, na quinta fileira. O rapaz, cuja aparência denunciava uns vintes anos e sem qualquer outro fator que o fizesse se destacar dos demais, o encarava com um olhar curioso.
- A ciência nos ensina que esta terrível doença age de forma nociva no cérebro, fazendo com que o portador comporte-se como um animal, um lobo com frequência, daí a nomenclatura.
You-Koddlak teve a mente invadida pelas recordações da conversa que tivera com Amy na ocasião do jantar. Os assuntos acerca de lendas, folclore e distúrbios marcaram a ocasião. Amy dera a sua opinião, ao passo que o professor rebatera e complementara com sua usual sapiência os pontos que julgara necessário.
O professor deixou a aula com o semblante mais carregado do que a sua natureza costumava permitir. Algo o incomodava, mas ele não sabia exatamente o que. No entanto, o seu costumeiro pragmatismo expurgava qualquer chance de abatimento por conta de algo que não fosse concreto. Além do mais, ele tinha um assunto mais importante para lhe ocupar a mente: o encontro com a jovem com quem flertava há algumas semanas.
Kira era uma jovem na casa dos vinte anos, de ascendência oriental, exibia uma beleza que dispensava maiores detalhes. O professor e ela, depois de alguns encontros, resolveram passar o final de semana no chalé do Sr. Koddlak na reserva florestal nas cercanias da universidade. Era sabido que nenhuma mulher conseguia resistir aos feitiços do renomado doutor, mas nesse caso em específico, a conquista demorou um pouco mais que o esperado, o que causou certo descontentamento de Koddlak, mas, ao mesmo tempo, instigou ainda mais os seus anseios.
No andar superior da residência, o encontro transcorria da maneira que se esperava. Uma boa refeição, uma garrafa de vinho de safra reconhecida, muitas trocas de carícias e um barulho do lado de fora.
Intrigado, Koddlak pediu para que a garota esperasse enquanto desceria para averiguar. Lá fora, o manto frio da lua em toda a sua plenitude esparramava seu brilho sobre a vegetação defronte ao chalé. Havia alguém escondido por entre os arbustos.
- Você!
O professor doutor You-Koddlak, como sabemos, estima e exerce como ninguém o pragmatismo, o utilitarismo e tudo relacionado à cientificidade, incluindo nesse apanhado a experimentação e a observação. E, embora o ano letivo mal tivesse começado, ele já tinha decorado a fisionomia de cada aluno em sua sala de aula. Portanto, aquele rapaz, o mesmo que fizera o questionamento acerca da alucinação conhecida como licantropia, aparecia, naquele momento, sob a presença da lua cheia. Que coincidência, pensariam uns, mas não para o tarimbado docente.
De súbito, um grito ribombou pela reserva florestal, se é que se pode chamar aquele som de grito, pois não soou exatamente como um, tampouco como um urro ou rugido, mas, ao mesmo tempo, fora uma mescla de tudo isso. O ruído ouvido num raio de quilômetros fora algo feral, demoníaco, porém, com um leve timbre humano.
A criatura já tinha arrancado a própria pele com dentadas vorazes e arranhões profundos. Dentes e unhas não eram mais componentes humanos, eram armas, acessórios para matar. A pele morta era devorada, não haveria desperdício, nem da própria carne. Tufos negros e espessos ocupavam o lugar da epiderme lacerada. A fera se contorcia involuntariamente, enquanto se chocava violentamente contra o solo para quebrar os próprios ossos e, assim, poder remodelá-los. A descrição pode parecer lenta, mas todo o processo fora rápido demais, muito acelerado para que o rapaz pudesse tomar qualquer atitude, mesmo que o seu corpo petrificado pudesse fazê-lo.
Sim. You-Koddlak era mais uma vez um monstro e, embora o aluno tivesse ido até o local para confrontá-lo, não teve a menor chance. Os pífios disparos com o revólver calibre .38, obtido não se sabe de onde, não chegaram a arranhar a couraça do professor-demônio.
O garoto foi devorado. De forma simples e direta. Uma refeição frugal como Koddlak costumava se referir. Como dito, ele não desgostava, mas apreciava muito mais um prato escolhido com esmero, como a apetitosa Kira que o esperava no sobrado.
Já não havia mais motivos para rodeios, àquela altura Kira já deveria estar aos prantos antevendo o triste destino que a aguardava. Ela poderia correr, tentar fugir, mas aquele era o domínio da fera escandinava, o outro lobo que ousara perscrutar pela região já tinha sido devidamente liquidado. Pobre rival. Koddlak só se lamentava em não poder oferecer a sua vítima uma devida explicação pelo que estava prestes a acontecer.
Uma mancha negra-azulada percorreu rapidamente os domínios do quintal, da varanda, da sala de estar. Subiu a escadaria, adentrou pelo quarto e foi recebido por um tiro no meio do peito. Não por um projétil de chumbo como o infligido pelo garoto, mas por uma bala calibre.12 da mais pura, mística e letal prata.
Pela primeira vez em sua vida, o professor doutor You-Koddlak não sabia o que pensar ou como agir. Até mesmo seus instintos e atos reflexos pareciam dominados não só pelo metal em seu corpo, mas também pelo ineditismo da situação.
- O que vai acontecer você já sabe, Koddlak, agora irei te explicar o porquê, considere um presente. Há pouco mais de vinte e dois anos eu vim ao mundo. Minha mãe me teve e logo depois sofreu com a perda recente do meu pai. Acharam os restos dele ao longo de uma rodovia. Estripado por maníacos disseram, besteira, sabemos. Você simplesmente o tirou do caminho para chegar até a minha mãe. Coitada, estava fragilizada, vulnerável, mas como era jovem quis dar uma nova chance a si mesma e se deixou levar pelos seus encantos.
¬- Você, professor, gosta de escolher as suas vítimas. E escolheu a minha mãe, Amy. Sim, a minha mãe. Assim como escolheu a mim, pelo menos é o que pensava até agora. Eu cresci, Koddlak, e quis saber tudo a respeito dos meus pais e o seu nome, quase de modo proibido em minha família, surgiu como uma resposta, como a última pessoa a estar com a minha mãe.
- Eu o investiguei por anos, professor, descobri o que fazia e na hora certa foi só me colocar no seu caminho, sabia que me escolheria, seu modus operandi não muda. Você não é só metódico, é extremante arrogante. Nunca imaginou que eu que te escolhi, no fim das contas.
Mais um disparo fora efetuado contra a couraça da fera.
- Infelizmente, tive de seduzir o infeliz do garoto que você matou, era preciso distraí-lo, tirá-lo da sua rotina para que eu pudesse me preparar. Danos colaterais, mas posso conviver com isso, posso ser igualmente pragmática.
Mais um disparo.
- Eu trouxe vinte e duas balas, uma para cada ano de sofrimento. Ah, e, caso você não saiba, no idioma dos meus antepassados Kira significa matadora.
Kira, a filha de Amy, eu sua sede de vingança, disparou toda a munição que dispunha, sorrindo ao observar o algoz de seus pais sangrando, agonizando, e com o metal prateado vertendo pelos poros e, sobretudo, pelos buracos abertos em seu corpo. Por fim, saciada, a garota ateou fogo no chalé com a criatura dentro.
Já chegando à rodovia, quase fora da reserva florestal, Kira sorria com a chegada do amanhecer. No entanto, ao longe, quase imperceptível, ela teve a impressão de ter ouvido um uivo. Coisas da imaginação, conformou-se. Mas, no fim das contas, nem tudo é improvável.
*Conto baseado na obra O improvável You-Koddlak, do escritor Victor Meloni