A BRUXA DO MAR

Mais de quinze dias já haviam transcorrido desde o desaparecimento do meu irmão em alto mar. As buscas, já encerradas pelas autoridades navais, não sugeriram nenhuma pista sobre o que ocorrera. O rapaz, bem sucedido em sua carreira, era adepto de extravagâncias e atividades radicais, por assim dizer. Nós não éramos muito próximos, a bem da verdade, pois sempre o tive como alguém muito arrogante, impulsivo e irritantemente determinado. Ele não aceitava negativas e costumava tomar para si tudo o que desejava.

O cúmulo de suas ações e fato determinante em nosso rompimento ocorreu quando, sem cerimônias, ele corrompeu e roubou de mim aquela a quem eu amava, Ana, minha noiva, a pessoa com a qual estava de casamento marcado.

Eles estavam juntos em sua lancha na ocasião do desaparecimento, e confesso que isso era o que mais me incomodava. Eu não estava muito preocupado com o sumiço do um irmão, não me envergonho de dizer isso. Mas saber que nunca mais veria Ana me corroia a alma.

Por isso estou aqui nesse barco alugado, sem muita experiência em navegação, numa tentativa desesperada de encontrá-la. Eu segui pelo plano náutico que ele havia apresentado à marina em busca de migalhas do seu rastro.

Eu já havia me afastado da costa, de modo que para qualquer lado que eu olhasse só conseguia enxergar a imensidão do Atlântico, nada mais. A monotonia parecia ser a senhora de todas as vontades, de modo que não havia quaisquer indícios de que a situação fosse mudar. Então, de modo tão súbito que uma tentativa de encontrar uma explicação lógica se tornava algo inviável, uma densa névoa que se apresentava rente ao espelho d’água começou a elevar-se até nublar todo o ambiente. Era como se o dia ensolarado que se mantivera firme até então nunca tivesse existido.

Os instrumentos de orientação do barco simplesmente ficaram inutilizados. Eu estava numa jornada às cegas. Mas, de modo tão repentino quanto surgira, o nevoeiro se dissipou e diante de mim encontrei inúmeros destroços de embarcações ao redor de uma ilha que, de acordo com os mapas, não deveria estar ali.

A situação já era inacreditável até então, porém esta viria a ficar ainda mais surpreendente. Eu vi ao longe, por entre a vegetação da ilhota, uma sombra, uma mancha escura, não sei definir, progredindo por entre a folhagem, sacudindo o verde e perfeitamente visível sob o brilho incisivo do sol que havia retornado.

Meu coração quase saltou do peito quando vi surgir pelas areias brancas a razão da minha cruzada. Ana corria de modo desabalado, da melhor maneira que podia, como se fugisse de algo que lhe proporcionava imenso pavor.

Ela se jogou na praia e começou a nadar. Tão logo seu corpo tocou a água, a agitação em seu encalço pareceu regredir. Acionei o motor do barco e segui em sua direção. Joguei uma bóia e a trouxe a bordo. Seu rosto exibia uma expressão que jamais havia presenciado em outro ser humano.

Ela gritava em desespero, exigia que partíssemos daquele lugar maldito o mais rápido possível. Tentei obedecê-la, mas o motor parecia ter morrido, assim como nossas esperanças.

É o feitiço da bruxa, ela me disse, enquanto exibia uma fina pulseira de algo que lembrava o nylon, atrelada em seu pulso direito. Ela continuava a dizer que aquele apetrecho não a deixaria fugir, como a bruxa sentenciara.

Então, tratei de puxar o canivete para cortar o cordão, mas, de maneira incrível, a lâmina se partiu ao menor esforço. Irritado, agarrei o pulso da garota e puxei a corda, ao que ela gritou, pois o objeto parecia lhe queimar, além de permanecer intacto.

Com lágrimas nos olhos, ela me disse que era melhor deixá-la voltar para encarar o seu destino diante da bruxa, pois todos aqueles que ela dominava acabavam mortos, como o meu irmão e muitos antes dele. Mas que ainda havia tempo para me salvar, bastava que ela saísse do barco e o motor certamente ganharia vida novamente.

Como eu poderia deixá-la ir? Como poderia abrir mão daquilo que eu tanto desejava? Obviamente, refutei aos seus apelos e lhe disse que permaneceríamos ali, esperando por ajuda, pois, surpreendentemente o rádio funcionava e logo alguém viria em nosso resgate.

Resignada, ela adormeceu em meus braços, como há muito não fazia e como eu tanto queria. Entorpecido, também adormeci. Quando acordei, a lua já derramava seu manto sobre a embarcação, deixando um reflexo bonito e marcante nas águas. Em outra ocasião seria algo para ser apreciado, mas não naquele momento, pois Ana estava sendo raptada, inconsciente, diante dos meus olhos.

A criatura que a levava lembrava um ser humano, mas passava longe de ser um, pois, mesmo àquela distância, era possível perceber uma essência, uma aura nefasta que seria incompatível com a humanidade, mesmo no mais sórdido dos homens.

Da cintura para baixo se apresentava como uma serpente, a despeito do restante do corpo, o qual, ainda que revestido por escamas, exibia-se como o rascunho de uma mulher.

Com Ana nos braços, ela saltou nas águas escuras e desapareceu. De imediato, alcancei o lançador de arpões, devidamente municiado, e segui em seu encalço. A bruxa deslizava sinuosa e rápida pela praia, enquanto eu nadava do jeito que conseguia. Nas areias, ela se locomovia ainda mais veloz. Com a respiração entrecortada, comecei a correr atrás dela.

A vegetação era fechada e escura, e se não fosse pelo brilho esverdeado das escamas da maldita, eu não conseguiria chegar até aquela espécie de gruta. Com Ana ainda nos braços, a bruxa-serpente olhou diretamente em meus olhos, enquanto permanecia parada diante de um lago.

Em seguida, ela ergueu a garota e a atirou, desacordada, nas águas. Gritei, ao mesmo tempo em que armei o lançador de arpões e despejei a seta afiada com fúria. O arpão a atingiu diretamente no peito, fazendo-a cair para trás.

Decidido, mergulhei no lago para salvar aquela a quem amava. Seu corpo afundava rápido, mas consegui envolvê-la e trazê-la de volta à tona. Seus olhos se abriram e um sorriso brotou em seus lábios quando me viu. Ela me deu o melhor abraço da vida e senti que tudo ficaria bem para sempre.

No entanto, com uma voz arrastada e diferente da que conhecia, ela sussurrou diretamente à minha mente, dizendo que só podia consumir suas vítimas nas águas sagradas de sua caverna. Ela precisava me atrair até ali, e para isso bastou fazer o que conseguiu perceber em meu coração. O único contratempo seria o de ter de transformar outro animal inferior em novo ajudante, para futuras empreitadas. Mas agora, bastava consumir a minha alma, como fizera com meu irmão, com Ana e com muitos outros que desaparecem naquelas águas tortuosas com frequência.

A bruxa já não exibia os traços perfeitos do rosto de Ana. Sua pele agora era esverdeava, ressequida e áspera, com sulcos esculpidos pelas eras. Ela me beijou e enquanto sentia seus dentes dilacerando os meus lábios e toda a minha vitalidade se esvaindo, ainda consegui imaginar a minha amada Ana antes de desfalecer para sempre.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 20/12/2020
Código do texto: T7140090
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