Perfume Cadavérico 4º Capítulo

"…os sinos anunciaram 6 da tarde.
No interior da casa pastoral, o reverendo Jessie James olhava o relógio de parede.
Um ponteiro apontava para o céu.  O outro, para o inferno."
A Maldição de RedWood - Fome Insaciável, "Will" Green.
 
Diga a alguém que você é médico
e este lhe abrirá um enorme sorriso;
depois adicione -legista que verá o sorriso
lhe murchar nos lábios como flores
largadas sobre uma sepultura.
Dr. Albert Pazzanese

 
        Observei isso acontecer diversas vezes e no passado até ficava ressentido — em barzinhos ou eventos sociais, já surpreendi pessoas limpando discretamente a mão que havia me cumprimentado, após a revelação —, porém hoje, calejado pelos paradoxos da profissão, pouco me importo.
        E sabe o que é interessante? Geralmente é possível sentir emanar dessas pessoas a seguinte dúvida: Como você é capaz de fazer isso e viver normalmente? É um questionamento peculiar, afinal subentende-se que a morte é o ciclo natural da vida, mas poucos compreendem que alguém precisa cuidar dela. Talvez você também pense desse modo, enfim, independente das circunstâncias, garanto que se sentirá melhor ao apertar a mão de um médico-obstetra a de um médico-legista, não é?
        Por outro lado, os ânimos se invertem caso essas pessoas tenham a oportunidade de nos fazer perguntas sobre nossas profissões. O que é mais interessante: bebês que nascem lindos e sadios ou exames necroscópicos de mortes violentas? Esta questão pode ser respondida com um tétrico aforismo: Quanto mais terrível é a tragédia, maior é o número de espectadores. Se um carro lotado de passageiros colide e não há vítimas, será apenas um acidente que atravancará o trânsito; agora se isso ocorrer e houver mortes, espalhando membros e vísceras para todos os lados, tenha certeza que o tráfego se comprometerá drasticamente, porque uma multidão ainda maior se reunirá para ver a extensão dos estragos. O ser humano é fascinado pelas nuances da morte — e suficientemente hipócrita para não admitir.
        Entretanto, o que ocorre quando o cenário é tão perturbador que profissionais experientes se veem forçados a evitá-lo, incapazes de crer que alguém seja capaz de algo tão terrível?
        Formulei tal pergunta assim que chegamos frente àquela casa em Perdizes, às 03:45 da madrugada, a rua extensa e arborizada imersa numa quietude apreensiva, digna de cemitério, não havendo uma única alma perambulando pelo lugar.
        Eu não estava de plantão — na verdade, quatro horas antes desfrutava de rodadas de Chivas's no Costão do Santinho Resort em Porto Alegre com minha esposa e amigos, quando me notificaram e tive que regressar às pressas a São Paulo — e, sem qualquer pudor, digo que o álcool ainda rodopiava em minha cabeça ao sondar a fachada da residência, um sóbrio e agradável portão alto de lambril em preto fosco ladeado por uma entrada social. Confuso, perguntei ao taxista que me buscara no aeroporto se estávamos no endereço correto.
        Mas não precisou que respondesse, pois a figura de Hernani Visconde, diretor-geral do Instituto de Criminalística, surgiu no portão social, uma das mãos enterradas no bolso do habitual paletó e a outra segurando um cigarro, uma aflição pragmática obscurecendo seu rosto já velho. Desci e nada dissemos, apenas o acompanhei para dentro da garagem, onde somente dois agentes trajando macacões brancos de proteção biológica e máscaras me aguardavam segurando um terceiro macacão para que eu vestisse — espessas nuvens de fumaça ondulando no ar e denunciando que me esperavam há algum tempo.
        Perguntei o que estava havendo e o motivo da minha presença ali em pleno dia de folga e a resposta foi quase um tapa na cara: Tenha certeza que eu não gostaria de estar aqui. Olhou em direção à casa, dando duas nervosas tragadas, a  mão trêmula, emendando: Vista isso. O diabo aprontou das suas… e o pior é que temos culpa nisso.
        Pouco entendi, porém segui a recomendação e logo os agentes me guiavam pela extensão da garagem, chegando a uma porta corta fogo fechada — estranhamente não existiam janelas ou vitrôs, apenas essa única entrada. Eles se entreolharam, tensos, mas a abriram, fazendo um calafrio sinistro lamber-me as entranhas assim que meus olhos abarcaram o conjunto de horrores que ali se escondia.
        Aquilo era inconcebível, além de quaisquer desdobramentos imaginativos que uma mente insana seria capaz de arquitetar.
***
        Se eu escrevesse esta história, certamente o leitor mais atento enxergaria sutis rupturas no enredo, lapsos de tempo e incongruências que beirariam o inverossímil, porém certos acontecimentos da vida real podem se mostrar ainda mais absurdos e perturbadores que a ficção.
        Não pense que estou novamente divagando; falava sobre Lady In Red que tocava nos alto-falantes do Instituto e agora estou a ponto de contar o que encontrarei naquela casa em Perdizes e o paradeiro de Brenno Marques, assuntos totalmente distintos, porém que se tornaram tão intrincados que garanto que todas as vezes que ouvir tal música essa mesma lembrança lhe virá à cabeça. E sabe por quê? Não se preocupe, eu conto — embora seja preciso alertá-lo a manter a mente aberta para o meu ponto de vista: falarei como eu vi os fatos, independente de ser críveis ou não.
***
        Há uma regra de ouro em nossa profissão: saiba o mínimo sobre o cadáver. Isso nos ajuda a tratá-lo como somente um trabalho, nos afastando de eventual envolvimento emocional.
        Pode parecer insensibilidade, mas confesso que funciona. Quer um exemplo? Brenno Marques. Se eu contasse de imediato o que foi encontrado naquela casa, decerto seria menos impactante, porque estaria revelando apenas o que decorreu naquele local. Agora se invertesse a cronologia dos fatos e revelasse que através de buscas posteriores nos arquivos do Instituto de Criminalística e nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais encontramos a Certidão de Óbito do jovem Brenno Marques, datada de cinco anos antes, provavelmente você se aterrorizaria.
        Não entendeu? Brenno Marques trabalhou como atendente de necrotério por quatro anos no IML, porém já estava morto. Morto. Ele comprovadamente assassinou toda a família e por fim cometeu suicídio na residência que constava em seu cadastro de funcionário. É possível acreditar em algo assim? Teríamos trabalhado com um defunto esse tempo todo?Não sei o que é mais sinistro: tal esperança ou a verdade. A única coisa que sei é que se o ocorrido em Perdizes vazasse para o público, levaria a reputação do Instituto à ruína — eis a necessidade de manter o caso Lady In Red em absoluto sigilo.
***
        Aparvalhado, era assim que me sentia ao avançar para dentro da casa, os olhos arregalados varrendo o que parecia ter sido uma enorme cozinha conjugada com sala de estar, mas que em algum momento fora azulejada de cima a baixo, os móveis convencionais retirados e substituídos por fileiras de inconfundíveis macas de inox, ao menos cinco de cada lado, de modo que ficasse um corredor de passagem ao centro.
Progredi alguns passos, distinguindo cadáveres femininos sobre elas, estes se deteriorando em diferentes estágios de decomposição — e trajando vestidos vermelho, assim como na melodia Lady In Red que tocava ininterruptamente de algum ponto como um funesto som ambiente.
        É isso mesmo.
      O cômodo fora transformado num sórdido necrotério particular, onde corpos de mulheres apodreciam atraindo hordas infectas de moscas varejeiras que volteavam em nuvens luzidias pelo ambiente encarniçado. Lembrei do insano Crime do Poço ocorrido em 1948 e que um dos bombeiros  participantes das escavações falecera por inalar cadaverina e putrescina. Eu me encontrava sob a segurança do traje de proteção, mas imaginei o quão densamente nocivo deveria estar o ar naquele lugar com os gases pútridos da decomposição, o incessante som de mastigação dos vermes necrófagos zunindo em meus ouvidos quase como se estivessem dentro de mim.
        Olhei para os agentes parados à entrada e só então, profundamente abalados, se aproximaram indicando para irmos ao andar superior, onde encontramos o corpo de "Brenno Marques" deitado na cama de casal, abraçado a um cadáver — e, ao que tudo indicava, em pleno ato sexual quando também morrera. Aquilo foi horripilante, mas bem lembro que Chris de Burgh cantava:
        Essa beleza ao meu lado
        Sim
        Eu nunca vou esquecer
        Da maneira como estas esta noite…
***
        Garanto que se resolvesse contar este fato através de papel e caneta ninguém acreditaria — e quer saber? Quanto mais as investigações se aprofundavam na vida de "Brenno Marques", mais inacreditável ela se tornava. Consegue imaginar isso? Não? Eu explico.
        Embora as reais circunstâncias que levaram aquele jovem a cometer a barbárie contra sua família nunca sejam esclarecidas, descobriu-se que meses antes ele havia passado no processo seletivo para Atendente de Necrotério e aguardava ser chamado — e, um ano após o atentado, seu nome foi solicitado e ele compareceu. E eis que começa toda a confusão.
        O Brenno Marques que conhecíamos não era nenhum fantasma e sim alguém que de alguma forma se apossou da documentação do falecido e respondeu à vaga de emprego. Difícil acreditar, não é?, porém num país onde burocracia e desleixo imperam, isso é perfeitamente compreensível. Ao longo das investigações considerou-se que o indivíduo não visava lucro financeiro ou regalias do cargo, contudo, ao final, constatou-se que suas intenções eram demasiado pervertidas e além de qualquer especulação racional.
        Imagine um sujeito comum, bem-apessoado e desmedidamente carismático, absorvido pela monomania de copular com cadáveres, esse era o "Brenno". Devido à desorganização do Instituto, não foi possível confirmar se as violações ocorriam no prédio, mas no decorrer dos anos ele ganhou confiança e passou a roubar utensílios e até mesmo macas de transporte de cadáveres, assim como os próprios cadáveres, levando-os para sua residência modificada para atender suas doentias fantasias. E o que torna tudo mais grotesco é que ele possuía preferências bem específicas: mendigas e moradoras de rua entre 40 e 70 anos, que chegavam ao IML desacompanhadas ou sem qualquer identificação — só a título de esclarecimento, em exames posteriores foi confirmado que "Brenno" faleceu em decorrência do contato com a bactéria Clostridium botulinum, causadora do botulismo, que foi encontrada também nos lábios do cadáver ao seu lado da cama, por sinal o mesmo que vimos nas filmagens sendo afanado, dias antes.
        Enfim, o número de vítimas é impossível precisar, ainda mais por que foram encontradas falhas nos procedimentos de entrada e saída de cadáveres, requisição e separação de material, descarte de indigentes e outros diversos problemas que confabulavam contra o alto escalão do Instituto de Criminalística, forçando-o a agir em surdina — e, por fim, abafar o caso Lady In Red.


 
O Marceneiro
Enviado por O Marceneiro em 17/12/2020
Reeditado em 31/03/2021
Código do texto: T7137402
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