Enclausurado
Morte e vida, palavras antagônicas que de tão contrárias se tornam próximas, fazem parte do mesmo lado da moeda- uma vive em função da outra. Ele está morto? Não sei ao certo. Eu estou ativo, o que quer dizer que ele não está nada bem, será esse o fim da sua vida? VIDA! Será que realmente teve uma? Viver é ter um coração batendo e ondas cerebrais ativas? Se isso define vida, eu não tenho uma, pois “vivo” na mente, porém não estou ao alcance imediato da consciência. Será que viver vale mesmo a pena? Enquanto, ele está ali... PARADO eu estou aqui ATIVO e por mais que eu queira, não tenho todas as respostas.
Ouvi seu coração pulsar. Deduzi, então: morto não está, AINDA NÃO ESTÁ, mas será mesmo que a morte o levará mesmo sem ele ter aprendido a viver direito? Seu corpo está imóvel e ele lentamente desemboca um fluxo minúsculo de consciência, o que me permite estar à frente de tudo.
Seu corpo sentiu uma mortal e exaurida agonia, todos os sentidos o deixaram como se nunca tivessem feito parte dele. Sentença cruel de morte. Como alguém poderia viver sem os sentidos? Não poderia. Teria ele força para resistir àquilo tudo? Sua alma... pensei, o que estaria sentindo a alma daquele ser? Estaria imersa na inercia igual ao seu corpo material, ou vagava no obscuro relento das possibilidades que a nós foram apresentadas?
Zowie! Zum! Um zumbido lânguido e tenebroso foi captado pelo seu ouvido e esse som causou uma macabra sensação em todo o seu corpo que continuou imóvel, paralisado em meio àquela cena, em meio a terrível cena que causou a perda dos seus sentidos. De maneira abrupta, os seus receptores sensoriais foram desligados, sua audição de forma falha tentava captar as ondas sonoras para possibilitar a compreensão dos sons ao redor, mas não conseguiu completar o ciclo, pois o último estágio para compreensão não estava trafegável. Essa sensação, infelizmente durou poucos segundos e sua audição não captou mais nada.
Os quimiorreceptores localizados no alto da cavidade nasal juntaram forças para captar as partículas presentes no ar, ação sem sucesso. Havia algo impedindo a passagem. O cheiro de ferrugem que circulava naquele local denunciava o desalento cenário em que aquele ser se encontrava, havia sangue fresco por todos os lados. Seus lábios moveram-se, entretanto, som não foi pronunciado, imaginei ser apenas um reflexo, apenas o músculo tentando reanimar e garantir a vida de seu dono. Certifiquei-me ser apenas isso, afinal aquele espetáculo não poderia ter um viés sobrenatural. Tudo ali era muito real e muito concreto. A morte ansiava por levar a vida. Perdi-me... O que há de concreto na morte, não é mesmo?
Tudo ficou escuro. Ele desmaiou vencido pela luta que foi tentar inconscientemente fazer com que alguns dos seus cincos sentidos ressurgissem do outro lado. Percebi que 50% daquele ser já estava do outro lado. Alguma coisa o impedia de seguir para o além, não era eu. Seria o desejo incessante de viver? Não sei ao certo, mas percebi que alguém além de nós não queria que ele fosse, não ainda.
Seu coração bateu em um nível quase imperceptível, tudo estava acabado. Ele poderia, então, descansar. Eu poderia enfim descansar! Mas não, embora 90% dos seus órgãos não estivessem funcionando, ele AINDA estava vivo. Comparei-o naquele momento aos gladiadores, escravos forçados a lutar pela vida no antigo império Romano. Naquele estado, ele labutava com a morte para ter sua vida de volta.
Em um súbito momentâneo, o som regressou a sua alma enchendo-a de cor. O coração agitou-se em sua caixa torácica reproduzindo em seus ouvidos as fortes badaladas do sangue sendo bombeado para o corpo, o cheiro forte de ferrugem foi sentido. Em seguida, um formigamento indescritível se acentuou em toda a extensão do seu corpo. Teve um lapso momentâneo de raciocínio onde o pavor e o medo se misturaram causando um frenético sentido de morte e de escuridão. Sua razão mesmo que fugazmente quis recobrar toda a sua força e em lucidez, o homem sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo. Ansiou profundamente perder todos os seus sentidos novamente e navegar na impossibilidade que o aguardava.
Por mais que seu desejo fosse reproduzido para todas as células do seu corpo, elas não atenderam ao pedido. E como uma criança birrenta fizeram com que os sentidos do pobre homem fossem restituídos de forma aguçada. Como um ato de misericórdia pessoal e de força, o homem decidiu não abrir os olhos. Decidiu ter um mínimo de dó. Não foi sincero consigo mesmo, mas eu estou acima de tudo, não posso ser enganado, ele não pode mentir para mim. O medo o impediu de abrir os olhos. O que para outros seria uma necessidade, para ele era o conforto: Não visualizar seu corpo da forma que estava.
Tentou mover seu dedo mínimo, o mínimo de esforço. Pensou. AGONIA, AGONIA, infinita AGONIA essa ação lhe causou. Sentiu-se como se estivesse preso, enclausurado em seu próprio corpo. A dor era a sua carrasca e companheira de cela. De plena posse de sua razão, o homem pensou nele mesmo. Quem ele era? O que fazia? Tentou pensar, mas a resposta não veio. Sua memória estava dilacerada e fragmentada assim como o seu corpo. Forçou as lembranças, mas não teve nenhum mecanismo mnemônico, nada que o fizesse lembrar de quem ele era. Tinha filhos? Uma mulher que o amava e choraria, caso o perdesse? Nada, as únicas companhias eram a ausência de sua memória e a agonizante dor que o dilacerava. A dor excruciante pairou pelo corpo de maneira infernal. Isso causou um pavor tão extremo que abrir os olhos era a melhor ação a se fazer.
Quando abriu os olhos, viu-se em uma tela vermelha pintada por um odioso pintor. Sua visão não reconheceu todas as cores, apenas o vermelho saltou aos olhos que codificaram a cor escarlate. Sentiu a morte, não a viu. Apenas sentiu que ela veio buscá-lo. Estou pronto. Decidiu no âmago do seu ser. Nada poderia ser pior do que estar enclausurado com aquela sensação. Desejou que a morte o levasse logo e o libertasse da cela que era o seu próprio corpo. Porém, além de mim, além dele e da morte, outra presença se fez presente.
O homem foi tomado por uma dor aguda infernal que o fez desmaiar novamente. Acredito que foi a pintura macabra que os seus olhos captaram que o fez dormir. No carro, completamente amassado, o homem ainda gladiava pela vida. Estava preso às ferragens, seus braços e pernas estavam quebrados, uma lesão no crânio, dentes quebrados e a direção imprensava o seu diafragma impedindo-o de respirar direito, tentou respirar, porém os seus pulmões não bombearam ar e sim sangue. O homem não tinha como correr, não poderia fugir. O juiz iniciara o julgamento e a sentença estava decretada.
Desmaiado no plano material, o homem foi ligado ao espiritual. Ele não mais gladiava pela vida e sim assistia atônito aos seres guerreando por ele. Estavam em uma sala que formava um cubo perfeito e toda a extensão do cubo foi dividida ao meio- chão e teto- de um lado branco e no outro reinava a escuridão. Sabíamos que ali uma batalha estava sendo travada. O yin-yang batalhavam, apenas os seres de branco eram visíveis, mas não com perfeição, não víamos os seus rostos, e apenas sentíamos os outros. Os de branco estavam sendo tragados e o homem sentiu um imã que o puxava para o lado negro.
Um quarto ser diferente dos demais se aproximou. E em terra, a equipe de socorristas tentavam reanimá-lo. A guerra não acontecia apenas no plano espiritual. Os gladiadores na terra tentavam reanimar aquele que já estava quase sem vida e no plano espiritual os seres pelejavam por ele, cada qual com sua intenção. O coração do homem bateu de forma modéstia. Ele retornou, mas seu corpo estava totalmente comprometido. Naquele milésimo de segundo, o homem não quis saber qual lado iria ganhar ou perder, não quis saber sobre o seu destino- morte ou vida- ele estava cansado demais e desejou apenas fechar os olhos.