O Caminhante

Em meio a ruas vazias, durante uma agradável e obscura madrugada, um homem caminha rapidamente, e se move de uma tal maneira que quem o visse diria que está embriagado ou, então, envolvido com coisas que não são desse mundo. Na maioria das vezes a primeira opção é a mais plausível. Os poucos veículos que passam, trazem ocultos passageiros que, ao verem o homem a pé, inconscientemente e a seu modo, copiam Shakespeare, dizendo a si mesmos que existem mais coisas entre o céu e a terra do que seus cérebros ativados por substâncias químicas podem compreender. Mas não nos detenhamos em sombras passageiras.

O homem a pé nem sequer existe, ou pelo menos não mais, desde que se tome aquele limiar que se segue após a morte como a não existência. Shakespeare não estava errado quando disse pela boca do seu célebre personagem, Hamlet, a famosa frase. Na verdade, as coisas que estão além das aparências, além do que delimita a "ciência", subjugam o mundo.

Voltemos ao homem nas ruas, ele não sabe que não existe (desculpe a ironia!), ele segue seu caminho porque sente pulsar dentro de si a vida. Enquanto atravessa uma avenida com os semáforos abertos, uma voz esquisita se ergue atrás dele:

— Ei, onde pensa que vai??

O homem se vira para ver de onde vem essa voz incomum e vê um semblante humano, se bem que, observando melhor, parece ser animalesco.

— Mantus quer vê-lo, James — continua a voz aguda e esquisita de um homem que agora aparecia inteiro com seu corpo gordo, e disposto a conseguir o que quer por meio da força.

— Deixe-me em paz! Não conheço Mantus! — respondeu o nosso caminhante.

— Mas ele te conhece! Você vem comigo!!

Nesse momento, o homem gordo e com a voz esquisita começou a arrastar o caminhante, e, por incrível que isso pareceu a James, ele não usava a força física, mas uma espécie de poder mental.

James foi sendo levado contra a sua vontade, rolando pelo chão.

— Pelo amor de Deus!! — suplicou o homem que, há alguns instantes, caminhava vivamente pela madrugada.

— Você disse Deus? Os deuses agora são os cérebros, os super gênios!! Assim é além da morte!!

O agressor da voz esquisita agora ria loucamente e parecia não se compadecer com a súplica do caminhante; arrastava-o pelo chão, com o seu poder mental, provocando ferimentos em seu corpo. Até que James sentiu que parou de se mover... O agressor se aproximou dele, e o caminhante pensou que seria o seu fim.

— Desculpe-me se lhe causei mal!! — disse o homem gordo, em uma súbita e inverossímil mudança. — Na verdade, eu só fiz o que me ordenaram os cérebros.

— O quê? Quem são eles? — indagou James.

— Eles são Mantus e controlam todos nós — disse o homem gordo antes de desaparecer.

James se viu sozinho e voltou a caminhar rumo ao seu destino, embora não se pudesse dizer que ele fosse para algum lugar determinado. Não o procupava o fato de estar morto, mas o intrigava o homem que o arrastara pelo chão, usando uma força invisível, sob às ordens de Mantus. Quem eram eles? E como Mantus o conhecia? James ficou absorto em suas meditações enquanto caminhava. No entanto, como alguém que, de maneira quase inverossímil, caminha despreocupado pela madrugada, sem ser dar conta de que caminhar nesse horário exige muito mais cuidado, ele caiu em uma espécie de buraco. Talvez fosse algum bueiro sem a tampa, mas o fato é que James ficou em queda livre por horas, como se algum demônio quisesse que o caminhante sofresse inumeráveis vezes a cruel expectativa de se estatelar no chão.

Ao leitor que, indignado, questionar a verossimilhança dessa história, responderei que certamente nunca caminhou para além da morte ou, pelo menos, não se lembra. É fato que há uma doutrina a qual diz que morremos todas as noites quando dormimos, de modo que, enquanto o nosso corpo repousa, o nosso ser vive inumeráveis peripécias.

Voltemos ao caminhante da madrugada, James, ele é uma dessas pessoas cujos corpos estão dormindo, mas o Ser caminha entre os mortos.

A queda de James teve fim e ele deu-se por si como se não tivesse saído do lugar onde o deixou o homem gordo.

Desorientado, ele se vê diante de uma criatura horrenda, um homem vestido com uma roupa preta e com pregos cravados em sua cabeça — um cenobita, segundo uma história de horror supostamente ficcional.

— Você vai sofrer, James! O seu destino é o inferno!! — brada a satânica criatura, com sua voz de trovão.

— Mas... Quem é você?

— Você sabe quem sou eu, eu sou Mantus!!

James, horrorizado, se lembrou daquilo que o homem da voz esquisita disse, Mantus seria a mesma coisa que os cérebros. Sua curiosidade foi maior que o medo:

— Antes de me matar, diga-me quem são os cérebros?!

— Não vou matá-lo, vou fazer pior! Vou responder sua pergunta antes de lhe enviar para o inferno. Para além da morte a única força é a mental. As mentes fracas como você não têm poder algum aqui. Eu fui criado pelas mentes mais poderosas da Terra há dez séculos, e agora novas potências sinistras, super inteligências, estão tentando me destruir. A única forma da minha alma não ser destruída é enviando mais pessoas como você ao inferno.

O cenobita parou de falar e começou a arrancar a pele de James com seu poder mental. O caminhante pensou ter sentido uma dor indescritível, e acordou sobressaltado...

"Foi só um pesadelo", suspirou, ingenuamente e, de certa forma, animado com o realismo do sonho.

Mais tarde, tomando seu café da manhã, James riu-se do pesadelo, e de certa forma sentiu um alívio por acreditar que mesmo as mentes mais afiadas do mundo se extinguem com a morte do corpo.

Por enquanto, ele continuará a viver sua vida ilusória, que é a da maioria das pessoas, mas, quando ele cruzar o limiar da morte de novo, Mantus ou talvez algo muito mais sinistro estará lá para enviá-lo para o inferno... Dessa vez, definitivamente.