333 - O Regresso de Marília
Torcer a cauda ao cão deu-lhe manifesto prazer. Ficara exaltada com os ganidos e, não fora a velha criada, o cão acabaria mal ainda que arreganhasse os dentes e a mordesse onde podia chegar. No final deste episódio, Marília sangrava as dentadas mas patenteava uma felicidade ímpar e, de olhos brilhantes, ria com delícia de todo o bulício. Tinha, ao tempo, apenas seis anos. No seu historial havia outras cenas ferozes mesmo quando as vítimas permanecessem indiferentes. A avó guardava, como prova a ser ocultada, as bonecas carecas, sem olhos, sem membros, os carrinhos dos outros meninos sem rodas, amassados com força que lhe vinha no acto e a tornava intolerável desde o início. Por vontade da mãe acabou internada num colégio especial de onde agora saía pela primeira vez. Tudo o que foi possível fazer estava feito e os tutores declinavam a tarefa de amenizar a jovem que continuou a arrancar as asas dos insectos, a morder os colegas, a apedrejar os animais protegidos dentro das capoeiras. Depois ficava calma, serenamente atenta, cordial e urbana. Deitara corpo, vestia com gosto, já não se automutilava como antes. Quando chegou a casa estava enfeitada para o Natal: luzes, cheiro a doces e a assados, presentes em embrulhos vistosos sob o pinheiro iluminado. Alguma família chegava e sorria contente com o calor da sala. Mais doces, mais garrafas, mais presentes. Todos acharam um risco a consoada ser ali mas Marília estava adulta, amável, cordata. Depois do jantar distribuíram as prendas e a jovem abriu o estojo que lhe estendeu o pai, sorriu com a visão do colar de pérolas, segurou-o à luz para ver o fecho de brilhantes e, tomada de uma calma gelada, rebentou-o.