A ÚLTIMA CORRIDA

Não sei exatamente há quanto tempo estou nessas condições, só o que consigo me lembrar, e é o que realmente importa, na verdade, responde pelo fato de eu não conseguir tirar aquela mulher da cabeça.

Tudo começou numa noite de quinta-feira, já eram quase vinte e duas horas e eu já me encaminhava para casa dando como encerrado o expediente. Porém, percebi o chamado para mais uma corrida não muito longe de onde estava. Então, decidido a lucrar um pouco mais, resolvi aceitar a corrida, acionando de forma positiva o aplicativo no aparelho celular.

Quando ela entrou no veículo me oferecendo o sorriso mais brilhante que já havia visto, percebi que aquela pessoa iria marcar minha existência a partir daquele momento. Eu me desculpei por não ter uma garrafa d`água ou uma bala para lhe oferecer, afinal, a jornada de trabalho já havia terminado, mas, para minha surpresa, foi ela quem me ofertou uma goma de mascar. Agradeci, e quando coloquei o chiclete na boca, notei que o ambiente foi tomado por um intenso aroma de hortelã, como se o sabor absorvido por meu paladar pudesse ,de alguma maneira inexplicável, transcender pelos limites do meu corpo e tomar o ar. Sei que posso ser tomado como um louco, mas foi exatamente isso o que aconteceu.

A corrida havia iniciado no Hospital das Clínicas, a moça, refiro-me a ela desta maneira, pois ela não deveria ter mais do que vinte e cinco anos, exibia cabelos longos, ondulados e caídos por sobre os ombros. Ela sorria com frequência e seu sorriso era tão doce que era impossível não retribuir. Entretanto, o ponto físico que mais me chamava a atenção era o olhar formado por órbitas grandes, negras e brilhantes, características nítidas mesmo sob a proteção da armação metálica dos óculos.

Mesmo muito tentado a lhe fazer um elogio ou algo do tipo, mantive a postura profissional, e sua simpatia proporcionou uma conversa agradável até o destino final, a Universidade Estadual.

Joana, esse era o seu nome, algo que eu já sabia pela identificação do aplicativo, havia me dito que estudava medicina e fazia residência no hospital. Ela desceu e senti por um breve instante que nunca mais a veria.

No entanto, como se o destino quisesse brincar com meus sentimentos e divagações, percebi que ela se esquecera de uma pasta, algo que deveria ser muito importante para o que ela pretendia fazer a uma hora daquelas na universidade.

Então, acionei a marcha à ré e encostei o veículo rente à calçada. Desci e fui ao seu encalço. Adentrei pelas dependências externas do campus e foi quando percebi o perigo diante dos meus olhos.

Joana estava junto ao que parecia ser um ponto de ônibus ou algo para transporte interno do local, e ela estava sendo subjugada por um estranho. No mesmo instante tentei gritar, mas antes que qualquer som pudesse escapar da minha boca, fui invadido por uma sensação desnorteante, como se o ar, as árvores, os prédios, tudo se movesse rapidamente. Em seguida, senti um imenso peso dos ombros para cima. Lentamente fui perdendo as forças e caí de encontro ao solo. Minha mente começou a ficar nublada e, no chão, com a visão cada vez mais turva, consegui perceber que a moça também desfalecia, ao passo que o desconhecido corria para longe do local.

Antes de perder completamente os sentidos, fui invadido mais uma vez pelo aroma marcante e vivo de hortelã, mas dessa vez estava ainda mais forte e definitivo.

Como disse no início desse relato, o tempo me parece cada vez mais impreciso, de modo que tudo, absolutamente tudo, passou a se definir como o antes e o depois de conhecê-la. Com isso, posso afirmar que todas as dificuldades e percalços só me conduziam a tentar arranjar uma maneira de encontrá-la novamente.

Vale aqui dizer que acordei do episódio no meu quarto, sozinho. Eu demorei a encaixar o raciocínio, pois havia saído da casa dos meus pais para morar sozinho há pouco tempo e por um breve momento o ambiente me pareceu estranho. Mas, logo remodelei as imagens e pensamentos, sobretudo acerca do novo propósito em minha vida: reencontrar Joana.

As areias do tempo brincavam com minha mente e de pouca coisa me lembrava, de fato. Apenas de ter sido resgatado, levado a um hospital, de ser tratado, me recordo dos meus pais, mas tudo em flashes intermitentes. Pensei em ligar para casa, meu pai e minha mãe deveriam estar preocupados comigo, mas, me envergonho em dizer, a única coisa que me importava naquele momente era a missão de encontrar aquela mulher, era uma urgência que não sei explicar. Eu só sabia que ela precisava da minha ajuda.

Decidido, arquitetei um plano. Passei a semana, ou o que me pareceu ser uma semana, rondando por perto do hospital no mesmo horário daquela chamada, tentando repetir o pedido de corrida. Entretanto, como disse, os dias, as horas, os minutos, os segundos, o tempo em si havia perdido o significado, como se minha vida se movesse única e exclusivamente nessa direção. Era uma compulsão que tornava o dia a dia, o simples fato de viver, em algo mecânico e insosso.

Minha vida era como a de um viciado, sem pensamentos para o alimento ou sono. Minha alma se corroía até mais do que o corpo. Juro eu desejava desistir, mas não conseguia. E, quando as esperanças já não faziam mais morada em meu peito, numa noite de quinta-feira, ou assim julguei, ela apareceu. Eu rondava o mesmo local, na mesma hora, para não correr o risco de que ela entrasse em outro veículo. Ela entrou. Sim, era ela. Fui brindado pela insistência.

Tão logo ela entrou, o aroma de hortelã se impregnou, mas ela estava diferente. Não parecia a mesma moça viçosa e falante de antes. De cabeça baixa, ela apenas me sinalizou em negativa quando esbocei falar algo.

Eu juro que queria lhe dizer tudo o que estava entalado em minha garganta, mas uma força tão grande quanto a minha determinação parecia me intimidar.

Desse modo, a rápida corrida até o campus universitário transcorreu sem qualquer conversa. Porém, apesar da minha frustração, a fixação não esmoreceu e continuei a cercá-la dia após dia, me esquecendo do trabalho produtivo. Passei a insistir cada vez mais nas tentativas de forçar uma nova corrida. E fui bem sucedido. Foram poucas corridas, é verdade, mas consegui vê-la, apesar de ter sido incapaz de abrir a boca.

Uma corrida para o hospital, depois que ela desceu para o campus e imediatamente retornou para o carro rumo ao mesmo destino de origem. Outra, a mais estranha até então, onde o destino era o prédio dos meus pais, pois eu havia morado toda a minha vida lá e nunca a havia visto antes. Fui tentatdo a segui-la, sob o pretexto de ir ver meus pais, mas não consegui.

Era estranho. A impressão que eu tinha era a de que longe dela a coragem me revestia e perto dela o ambiente me oprimisse. Nesses poucos encontros ela se manteve do mesmo jeito, de cabeça baixa e com atitudes soturnas.

Eu já não sabia mais o que fazer. Coloquei um limite e decidi que acabaria de uma vez com as amarras dessa prisão emocional.

Mais uma quinta-feira (?) e um novo momento para encontrá-la. Quando o aroma de hortelã invadiu minhas narinas, chamei seu nome e imediatamente o seu dedo em riste pareceu comandar de forma velada os meus lábios.

Parecia que o ciclo se repetiria, mas o destino dessa vez era outro. Seguimos por cerca de meia hora até o outro lado da cidade. Ela desceu e, para minha incredulidade, cruzou o portão sempre aberto do cemitério municipal. Isso já era demais para mim. Dessa vez a inibição causada pela força invisível pareceu ceder e, movido pela determinação, fui atrás dela.

Não havia absolutamente ninguém nas dependências da morada eterna. Joana, como se flutuasse de forma sinuosa por entre as lajotas de mármore, adentrava cada vez mais pela penumbra dos jazigos. Eu gritei por ela, tão alto que poderia levantar os mortos, mas ela não parou para me atender.

Joana continuava a caminhar como uma lembrança por entre os descaminhos de pedra. Ela ziguezagueava. Avançava. Parecia sumir na frente. Aparecia mais perto. Até que parou. E, com sua parada, pude, pela primeira vez desde o nosso reencontro, ver por completo o seu rosto sem que ela procurasse escondê-lo.

Para o meu horror, onde antes se encontravam os olhos mais bonitos que eu já havia visto, agora se mostravam apenas órbitas opacas e desprovidas de vida. Os lábios antes ornados por um sorriso sem igual marcavam apenas uma linha fina e muda.

Joana olhava para as letras entalhadas no frio do mármore diante de si e foi então que entendi tudo, no mesmo instante em que as notas de hortelã aumentavam no ar sepulcral do cemitério.

A verdade, na voz de Joana, que parecia falar diretamente em minha mente, dizia que no dia em que nos conhecemos, o trágico destino que logo se desenrolaria nos uniria de uma forma transcedental através do simbolismo da troca proporcionada pela oferta da goma de hortelã, algo que nos uniria além da vida, como um indício de presença, ou algo do tipo. Uma manifestação física do além vida.

Esse sinal permaneceria e se tornaria mais intenso, tornando o viver insuportável, como uma tarefa inacabada, caso a verdade não fosse vista e trouxesse a tranquilidade que os mortos necessitam.

Joana me disse que sua condição não permitia que ela falasse diretamente comigo. Era proibido. Apenas insinuações eram permitidas. A morte prematura e repentina, como a ocorrida no campus, às vezes ocasionava isso. Essa dificuldade de libertação terrena.

Ela tentou me fazer ver nos encontros. A polícia e os bombeiros no campus universitário, os dias de luta no leito do hospital, o sofrimentos na casa dos meus pais, mas eu não a segui para ver. Apenas agora diante da minha lápide pude entender que eu não sobrevivera ao disparo de arma de fogo que recebi na nuca efetuada por um segundo assaltante, o qual eu não havia visto.

Joana, minha doce Joana, sensitiva como era e conectada por um elo involuntário, percebeu que eu não entendia a minha condição e tentou a todo o custo me fazer compreender que aquela noite de quinta-feira havia sido a minha última corrida.

Sávio Feudazol
Enviado por Sávio Feudazol em 07/12/2020
Código do texto: T7130197
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