I n f e r n o

Desde que me trancaram nesse inferno eu não sei mais o que é viver e nem o que é a vida. Tudo aqui é morto, tudo vira morto, o semblante de todos é morto, quer seja de tristeza ou de crueldade. Arrancaram-me do colo da minha mãe abruptamente e trouxeram-me para cá...

Desde então, eu cresci aqui e já estou com os meus 29 anos, todo esse tempo sofrendo com a mais pura maldade que os seres humanos podem causar.

Já vi de tudo, tenho história para contar até o fim de minha vida - que não seja tardia -, nada me agrada, pois nada aqui é agradável. Para contar um pouco de minha sina eu lhe levo para o interior da Bahia. Lugar bonito, a natureza em harmonia, carcarás voando pelo dia, urutaus à noite; são essas as minhas lembranças de um passado (in)esquecido...

Foi quando as criaturas malignas chegaram, quebraram as portas e destruíram as coisas, tudo porque minha mãe negava-se a entregar-me. Era sua cria, carregou por meses e depositou o seu amor e sua esperança, jamais entregaria às mãos deles... Mas ela era apenas uma mulher vivendo sozinha no sertão...

Nada adiantou a resistência...

Levaram-me sem mais e nem menos, recordo dela de joelhos a lamentar, essa imagem talvez me dói mais que tudo passado aqui. Pequeno, poucos meses de vida, essas foram bem vividas comparadas à era maligna que passei. Não era apenas eu, haviam outros, muitos outros, que renovavam-se todos os dias.

Era comum ver a pilha de corpos, ensacados, colocados em carroças para serem levados para longe, nisso, viam mais outros, vivos, mas mortos como os outros; só esperavam o momento para também serem ensacados...

As noites eram de muito lamento e dor, muitas vezes nem janta nos davam, jogavam farelos de farinha no chão e tínhamos que lamber o mais rápido possível se quiséssemos sobreviver; muitos nem forças tinham para isso, morriam de fome...

Lembro-me do dia que o monstro-mor entrou em nossa cela, parecia entrar no mais insalubre local de todos, era notório o nojo estampado em sua face. Parou no centro, com mais cinco covardes o protegendo, sim, protegendo-o de mortos em vida.

Ah, a fome... Maldita fome...

Ela era comum à todos nós condenados, mas era o fardo - mais um - que era nossa obrigação aceitar sem reclamar, mas não dava...

O irmão José, com seus trinta e poucos anos, não aguentou, estendeu, com todo esforço, o seu braço para o maldito... Ah... Por que...

Ele viu o ato como se fosse o maior sacrilégio que um ser humano pudesse cometer, chutou-o na cabeça com tanta força que o fez batê-la contra a parede, caiu morto.

- Mais um lixo para ser incinerado amanhã. Que fique de exemplo para os outros vermes...

E saiu de nossa sala, sobraram apenas a morte, o sangue e as lágrimas no chão...

É apenas uma de minhas lembranças de vida, ou melhor, de morto...

- baseado nos hospitais-colônias da hanseníase -

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 02/12/2020
Código do texto: T7126167
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