Tudo que escorre pelo vão dos dedos - CLTS 13

Tudo que escorre pelo vão dos dedos- Clts 13

Jane amava aquela fina chuva que chegava junto com o entardecer. O barulho no telhado parecia acariciar os ouvidos e o clima frio era um convite para dormir mais cedo. O fato dela está de férias de seu emprego no hospital tornava o descanso ainda mais convidativo.

Apesar das férias ela sempre conversava com seus colegas de trabalho e sabia como as coisas estavam agitadas por lá. A nova doença ainda não tinha chegado na cidade, mas muitas pessoas procuravam a emergência achando que estavam com ela. Não tinha nenhum caso confirmado, mas Jane quase podia ouvir o tic-tac de um bomba invisível prestes a estourar.

Seus pais e irmãos mais novos tinham viajado há umas semanas para visitar parentes fora do Brasil. Jane tinha ficado tomando conta da sua avó Elena, que já era idosa e tinha preferido ficar.

Eles foram quando tudo estava um pouco mais calmo. Já era para eles terem voltado, mas fecharam os aeroportos do país em que estavam e sua família ficou na casa de parentes até que pudessem voltar. Sempre se falavam por videochamadas, mas isso não amenizava a saudade que preenchia os cômodos silenciosos da casa. Por isso a moça gostava da chuva,pois o som da chuva parecia preencher a quietude dos cômodos.

Fechou os olhos por um momento se sentindo abraçada pelo barulho das gotas no telhado. Cochilou por um momento , mas logo despertou com a voz suave de sua avó :

-Jane querida, feche a janela está chuviscando dentro de casa.

Ficou meio confusa, pois jurava que tinha fechado a janela. Ainda meio zonza se levantou para atender o pedido da avó e constatou que a janela que ficava de frente para o quintal estava realmente aberta.A chuva estava mais fraca, mas mesmo assim era possível notar alguns respingos no chão, sem falar no vento frio que talvez não fizesse bem para sua avó. Por causa de tudo isso achou melhor fechar a janela.

Foi quando algo a fez recuar. Estava um pouco escuro, porém mesmo assim ela notou que havia uma criança no balanço que ficava no quintal. A misteriosa figura estava de costas e parecia não se incomodar com a chuva.

Fechou os olhos por um momento e torcia para que quando novamente os abrisse a figura tivesse sumido. Lentamente foi os abrindo e para seu terror a menina continuava lá e parecia pronta para se virar na sua direção. Antes que isso acontecesse ela acordou no sofá. Devia ter sido apenas um sonho. Cochilos são traiçoeiros, ainda mais naquele clima.

Olhou na direção do outro sofá e viu que sua avó dormia. Levantou-se lentamente e foi até a janela, pois tinha que conferir.

Abriu a janela com receio e para seu alívio não havia ninguém no balanço.

"Foi só um sonho mesmo."-disse para si mesma um pouco mais calma, sonho causado talvez pelo fato dos irmãos sempre brincarem naquele quintal. Tentava criar uma explicação para se acalmar ainda mais e tratou logo de se ocupar preparando o jantar e ligando para sua família . Quando chegou o momento de dormir o sonho parecia distante e já não a incomodava mais.

Logo adormeceu ao som da chuva que se intensificava com o passar da noite. Não sonhou novamente com aquela criança, ao invés disso sonhou com um barulho de vidro quebrando ao longe.

*

Dona Elena amava ficar no quintal e às vezes até mesmo varria as folhas secas e galhos que se acumulavam nele. Fazia isso quando o filho e a nora não estavam vendo,pois eles eram muito protetores com ela e não lhe deixavam fazer nada. Às vezes eles faziam com que ela se sentisse muito mais velha, mas ela sabia que eles faziam isso por amor e cuidado. Sentia saudades dos cuidados exagerados dele.

Pensava tudo isso enquanto observava da janela a chuva molhando o quintal. O local era amplo e cheio de mangueiras e outras árvores que pareciam centenárias. Diziam que Belém do Pará era a cidade das mangueiras e uma parte dessa característica se refletia no seu quintal.

-Foi em um tempo chuvoso como esse que comecei uma amizade com Lena. -comentou com Jane que ao seu lado observava a chuva cair. - Durante os tempos de chuva não poder ir para o quintal me deixava meio triste e em um desses dias enquanto brincava no meu quarto notei que meu reflexo no espelho mostrava uma garotinha que nem eu.

Dona Elena parou pensando se aquele era realmente o momento de contar aquela história para Jane. Ela já tinha tanta coisa para pensar.

-Continue, vovó, por favor. - pediu a neta notando a pausa.

-Pois bem, pensei que a amiga que eu tanto procurava estava no espelho. Eu resolvi a chamar de Lena, pois ela era uma parte de mim, mas ao mesmo tempo imaginava que ela tinha a própria personalidade. E ela realmente tinha. Contava para ela todas as novidades e meus segredos. Sabia que ela como meu reflexo sabia de tudo, mas contava mesmo assim. As vezes quando estava estudando e olhava pela janela a via no balanço. Ela me olhava como se me convidasse para brincar e eu logo atendia.

-No balanço?- Jane perguntou realmente assustada.

Nesse momento Dona Elena soube que talvez tivesse falado demais. Mudou rapidamente de assunto. Mesmo com a insistência da neta não disse mais nada.

*

Jane estava começando a juntar as peças e talvez até teria ficado mais tempo tentando entender melhor a história que a avó contou se a situação não tivesse mudado rapidamente.A bomba relógio deu o último tic-tac e os primeiros casos surgiram. Não tinha tempo para lidar com uma amiga imaginária quando tinha que lidar com um inimigo invisível.

O silêncio se espalhou pela cidade. Na praça que ficava perto,antes tão agitada, o único barulho ouvido era o da chuva. Por toda cidade a chuva noturna parecia chorar nas ruas vazias.

Máscaras, álcool em gel e as idas ao mercado passaram a incluir lavar todas as compras. Com novos isolamentos a volta de seus pais e irmãos foi ainda mais adiada. A cada dia a normalidade da rotina escorria pouco a pouco pelo vão dos dedos. Tinham se passado poucos dias, mas parecia que tinham se passado anos entre o antes e o agora.

Jane se sentia cansada e sabia que em alguns dias as suas férias teriam fim. Isso muito a preocupava, pois seria perigoso voltar a trabalhar no hospital e continuar morando na mesma casa que a avó. Ao mesmo tempo pensava que avó precisava dela, principalmente com os pais de Jane longe. Daria preferência para a avó e ficaria com ela o tempo que fosse preciso.

Ainda pensava nisso quando sentiu as primeiras gotas de chuva. Segurou as sacolas mais forte e se colocou a correr pelo corredor de mangueiras que ficava perto de sua casa. Ela não deixou de notar que as árvores estavam carregadas de frutos. Se fosse outro tempo com toda certeza alguém estaria tentando apanhar as mangas. Mas estavam vivendo em uma época diferente de tudo.

*

E naquela mesma noite, para completar o pacote, voltou a sonhar com a criança que talvez fosse Lena e com o barulho distante de vidro quebrando . No sonho a menina sempre estava de costas no balanço de forma que não dava para ver o seu rosto. Mas no último momento do sonho uma diferença ocorreu. Pela primeira vez ela falou algo:

-Você está cansada. Porque você quis crescer? Porque começou a sonhar?

-O que você quer comigo? -perguntou pronta para virar Lena de frente para ela, mas antes que fizesse isso acordou.

No dia seguinte, enquanto tomava café com a avó perguntou:

-A Lena tinha rosto?

-Como? -sua avó pareceu confusa.-Tinha sim. Porque a pergunta?

-Por nada.- disse pensando no fato da menina nunca mostrar o rosto.

-Tem algo sobre a Lena que você precisa saber. Seus pais não queriam que eu lhe contasse, mas acho que você tem que saber.

-O que é, vovó?

-Eu me encontrei com a Lena há uns anos, quando eu já estava idosa. Primeiramente veio o choque porque como ela não tinha envelhecido nada foi como se ela confirmasse a minha velhice. Foi a partir desse encontro que comecei a aceitar a minha idade.- sua avó deu um sorriso nesse momento e depois continuou - Depois do impacto inicial me aproximei novamente e foi quando ela me pediu um favor. Ela queria que eu quebrasse o espelho onde nossa amizade nasceu.

-O que a senhora fez?

-Quebrei o espelho.

-E aí? O que ocorreu?

Sua avó abriu a boca para falar, mas nenhum som saia. Por mais que insistisse sua avó nada disse. Era como se não tivesse coragem de concluir a história. Não insistiu. Sabia quem lhe contaria o final.

*

Dormiu mais cedo naquela noite com a certeza do sonho que lhe traria respostas. Como esperava sonhou com Lena de costas no balanço.

-Porque você quis quebrar o espelho? -foi logo perguntando.

-Eu? Quem pediu isso foi você. Você queria crescer e ser de verdade digamos assim. Em algum momento enquanto a Elena contava os sonhos dela você passou a sonhar também e ter a sua identidade que foi se intensificando. Como você meio que nasceu no espelho quebrar o objeto foi meio como cortar o cordão umbilical para você crescer e viver sua vida. Quando o espelho quebrou você tinha a aparência congelada da Elena com oito anos, mas aposto que não lembra disso. Assim como não lembra de nada anterior aos oito anos.

Jane não entendeu nada. Lena parecia esperar por isso e finalmente se virou mostrando o seu rosto. Um rosto meio parecido com o que Jane tinha quando criança. Depois de um momento ela completou :

-Sou só aquela voz baixa que dizia para você não quebrar o espelho porque ser um ser humano é muito trabalhoso e as vezes viver pode doer. Mas você me bloqueou na sua mente junto com as lembranças de quando era só um reflexo com personalidade própria. Eles até lhe deram um nome de verdade e você viveu o resto da infância como parte da família.

Era muita informação e Jane ouvia tudo em silêncio.

-Mas parece que estava um pouco certa. Desde que começou tudo isso você está tão cansada e no fundo bem no fundo surgiu a dúvida. Você acha que valeu a pena mesmo? Não precisa responder agora. Afinal estou dentro de você.

Jane acordou na cama ainda tentando absorver todas aquelas informações. Notou que era de madrugada e que estava chovendo. Em Belém o evento mais comum é a chuva durante o ano todo.

Ficou quieta na cama pensando na sua família enquanto sentia o som da chuva que tanto apreciava acariciar os seus ouvidos.

-Essa tempestade não vai ser para sempre - disse se referindo tanto a chuva forte como a situação atual. Disse com convicção sentindo aquele lado da sua personalidade se silenciando dentro de si.

*

"É que a gente quer crescer

E quando cresce quer voltar do início..."

Era uma vez -Kell Smith

Tema:

Noites tempestuosas brasileiras

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 28/11/2020
Reeditado em 29/11/2020
Código do texto: T7122987
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