Vale do Nheengatu - CLTS 13

I

Vale do Nheengatu, Amazonas. O pelotão seguia tranquilamente pela estrada cercada pela floresta em um dia claro. Como a maioria dos militares brasileiros, nunca enfrentaram um inimigo real, até aquele dia.

Tudo começou quando um vento forte trouxe, em questão de minutos, uma tempestade que simplesmente não podia ser real. As nuvens eram tão impossivelmente densas que a única luz natural disponível era a dos raios que pareciam mirar na direção deles, e os trovões eram de causar inveja a qualquer lança-granadas.

Acenderam os faróis e diminuíram o ritmo, mas o tenente Patielly não queria parar – isso ficou claro pelo jeito como ele se pendurou no LMV (um grande veículo militar blindado) onde estava, o penúltimo em uma fileira de cinco, e acenou furiosamente para continuarem avançando, depois de constatar que os computadores de bordo e o rádio dos carros pararam de funcionar misteriosamente.

Patielly era um bom líder, mas podia ser bastante instável e tomar decisões precipitadas quando se irritava – e ele estava visivelmente irritado. Ficou mais furioso ainda quando o primeiro LMV da fila começou a avançar rápido demais, afastando-se dos outros. Por mais que o tenente berrasse e batesse no rádio para mandá-lo parar, o veículo saiu do campo de visão deles, o que fez o comandante explodir em um ataque de palavrões – especialmente envolvendo conjunção carnal com a senhora mãe do piloto.

No terceiro veículo, o sargento Prestes mandou o cabo Avelar atirar um sinalizador para cima, na tentativa de chamar a atenção do carro que se afastava. “Por que ele mesmo não atira?”, Avelar pensou, mas ordens são ordens. A luz subiu poucos metros até simplesmente se desviar e desaparecer por entre as árvores. Dois quilômetros adiante e o rastro na lama do veículo adiantado desapareceu.

Quando a noite cronológica chegou – o dia estava completamente escuro muito antes disso –, eles finalmente decidiram parar um pouco. Algo estava errado, já deviam ter atravessado o Vale do Nheengatu e chegado à base militar há muito tempo, mas com o súbito defeito na aparelhagem dos carros eles não conseguiam se comunicar com ninguém, nem se localizar. Debaixo d’água mesmo, desceram dos veículos e fizeram suas necessidades. Os de maior patente discutiram a situação aos berros – já que o barulho da tempestade era muito forte e todos estavam irritados. Não havia sinal de civilização, nem uma trilha, uma vila, nada. Eles haviam simplesmente seguido em linha reta, não tinha como terem se perdido.

– Chefe. – Um soldado se aproximou de Patielly, recebendo um olhar de reprovação. – Digo, senhor, veja aquilo.

Havia um tipo de torre, talvez um farol, a oés-noroeste. A estrada que seguiam ia do oeste para o leste, de modo que a torre estava atrás deles, do lado esquerdo. Eles podiam ver pouco mais do que a luz que estava em seu topo, que se destacava no meio do negro e cinza. Estava um pouco distante, mas nem tanto – era difícil prever quanto tempo demorariam para chegar até lá, se fosse possível, dada as condições climáticas e o fato de que teriam que passar pelo meio da floresta.

O sargento Luxemburgo e três soldados pegaram seus equipamentos e decidiram ir até a torre a pé. Patielly quase bateu neles, até ameaçou prendê-los, mas não pôde dissuadi-los. Para o sargento, não fazia sentido continuar para o leste depois de horas marchando contra a tempestade, e deixar para trás o único sinal de civilização que havia ali – ainda que aquela torre tenha simplesmente surgido do nada.

Os onze restantes prosseguiram viagem nos quatro LMV. A tempestade deu uma trégua, o vento gradualmente enfraqueceu e a chuva se tornou um leve chuvisco. Depois de dez minutos, foi o cabo Inácio o primeiro a notar e mencionar para Patielly, que a essa altura estava há quase quinze minutos sem gritar com ninguém, que a estrada estava se inclinando levemente para a esquerda. Vinte minutos depois, as bússolas começaram a rodar em sentido horário, fazendo uma volta a cada dez segundos. Mais dez minutos e o carro da frente – que era o segundo, antes do primeiro desaparecer – parou de repente, o sargento Riu saiu dele praguejando.

– Mas que p* está acontecendo? Quem mandou parar? – Patielly veio ao encontro dele, quebrando seu jejum de gritos.

– Eu que pergunto, senhor. Olhe aquilo. – Riu apontou. Agora a torre com uma luz no topo não estava mais atrás deles do lado esquerdo, mas na frente do lado direito, como se tivessem dado meia-volta. Patielly levou as mãos à cabeça e a única pessoa a quem ele podia xingar agora era a si mesmo.

– E agora? – Riu perguntou. – Seguimos em frente ou voltamos?

O tenente teve vontade de socar o subalterno por fazer a pergunta óbvia. E era óbvio que ele não sabia o que fazer. Seus anos de treinamento nunca o prepararam para uma situação tão insólita.

– Vamos seguir em frente por mais uma hora. – Deu a ordem sem gritar dessa vez. – Se não encontrarmos nada, acampamos até amanhã.

II

Em uma clareira no meio da floresta, as lanternas de Luxemburgo e dos três soldados que o acompanhavam iluminaram um grande obelisco de pedra cinza, maior que qualquer árvore ao redor. Servindo-lhe de colhões havia dois sambaquis – montes pouco maiores que um homem, feitos de ossos e pedras, já cobertos por vegetação. Não havia nenhum outro vestígio de vida humana por ali, e o monumento fálico oferecia um estranho tipo de fascínio hipnótico sobre eles, que os fez esquecer que não sabiam mais ao certo a direção da torre – nem o caminho de volta.

Aproximaram-se do obelisco e o examinaram. Sua base era coberta por gravuras em um tom de cinza mais escuro. Eram quatro cenas representadas, em formas bem simples, sendo que uma delas estava desgastada demais para ser compreendida. Eram elas: algo como um gigante (quatro vezes maior que os outros representados) perseguindo um grupo de pessoas; o gigante sendo cultuado; e o gigante deitado, talvez morto, entre o que parecia ser uma fogueira e um grupo aparentemente comendo uma refeição – seja lá o que eles estivessem fazendo, o que havia sobre a mesa era certamente uma pessoa.

III

Quarenta minutos depois de Patielly e seus homens prosseguirem viagem, o veículo do sargento Riu foi tragado pela lama. Os três carros atrás dele quase bateram ao frear. Havia uma grande cratera no meio da estrada, tão profunda que as lanternas não podiam alcançar seu fim. Gritaram a pleno pulmões pelos companheiros que haviam afundado, mas não obtiveram resposta.

– Não temos equipamento para descer até lá nessas condições. – Patielly disse, tirando o capacete e esfregando o ralo cabelo grisalho, enquanto olhava para aquela torre, só para confirmar que ela não parecia mais perto do que antes. – Mas não podemos deixá-los aqui. Precisamos chamar ajuda.

– Lá na base podemos conseguir um resgate para eles, senhor. – Disse Gularte, um soldado tão gordo que ninguém sabia como conseguia correr, e que quando respirava fundo fazia um ruído engraçado.

– Isso se a gente conseguir chegar lá e, com muita sorte, voltar aqui para resgatá-los. – Retrucou o cabo Avelar, que não tinha a menor vontade de retornar depois que estivesse em segurança.

– Como assim “se”? – Irritou-se Patielly. – Estamos em uma estrada reta, não tem outro caminho, é só seguirmos em frente, comunicarmos o ocorrido e mandar o resgate vir pela mesma direção.

– Mas, senhor… – Começou Pires, reticente. – Esse trajeto está para lá de estranho. Pelo tanto que a gente já trafegou, já éramos para estar no Pará. Tem alguma coisa ‘muito da errada’ acontecendo.

– Não fale besteira, soldado. Nós estamos um pouco desorientados por causa das condições climáticas, mas é só seguirmos em frente e vamos chegar ao nosso destino. Não tem erro.

Providencialmente, um raio próximo os assustou, e a chuva voltou a castigar. O vento ganhou força, sacudindo as árvores.

– Prestes! – Patielly chamou o sargento, que, já cansado, demorou tanto para se aproximar que parecia testar a paciência do superior. – Você e seus homens vão ficar aqui na estrada, para marcar posição e impedir que outro acidente ocorra. Continuem tentando chamá-los, lancem uma corda para eles. Vamos buscar ajuda, com certeza não estamos longe da base.

Foi quando notaram. Lanternas apontaram freneticamente para um lado e para o outro. Vultos se moveram entre as árvores. Patielly fez sinal para que os homens ficassem de prontidão. Meio minuto depois começaram a atirar contra eles. Respondendo o fogo, abrigaram-se nos blindados; exceto Pires, que teve seu pulmão direito estourado por um tiro. Três balas penetraram os LMV, uma atingiu a cabeça do sargento Prestes e outra atingiu o ombro de Avelar de raspão. Os veículos tinham metralhadoras acopladas, e foi com elas que eles silenciaram os agressores após alguns minutos de confronto às cegas.

– Foram tiros de fuzil. – Avelar falou com Gularte enquanto jogava o corpo de Prestes para fora do carro, sem parecer se importar muito. Só restaram os dois em um veículo, Patielly e Inácio no outro. – São soldados inimigos. E com armas muito boas.

– Mas quem são ‘esses merda’? Traficantes?

Ficaram em silêncio, tentando ouvir, apesar da chuva forte e dos trovões, algum sinal do inimigo. Sentiam-se horrorizados e desesperados com a situação. Inácio começou a chorar copiosamente. Desejou nunca ter se tornado militar. Patielly pensou em repreendê-lo, mas nem ele havia passado por situação parecida, então deu um tempo para ele se recuperar.

Por volta de meia-noite, Avelar foi o primeiro a sair do carro, Patielly logo a seguir, ambos portando fuzis. Olharam ao redor, buscando algum inimigo com as lanternas. Inácio saiu em seguida, fazendo o mesmo.Todas as luzes se encontraram no sargento Riu emergindo da cratera onde seu carro havia caído, com seu fuzil pendurado na bandoleira.

– Cara, o que houve? – Perguntou Avelar. Riu não respondeu, seu rosto impassível, começou a dar passos lentos adiantes. Dois soldados escalaram para fora da cratera atrás dele.

– Sargento, o que aconteceu? – Patielly gritou, em parte pela tensão, em parte para que sua voz se sobressaísse à tempestade.

– Não! – Avelar estourou o crânio de Riu com um tiro quando este apontou seu fuzil. Os dois homens atrás dele atiraram contra seus companheiros, mas erraram; Avelar acertou um, Gularte acertou outro com a metralhadora do LMV. Patielly e Avelar correram para a cratera, e viram os dois últimos soldados do carro de Riu também escalando para fora.

– O que aconteceu? – Perguntou Patielly. Eles não responderam, continuando a subir. – Se não falarem agora, eu atiro!

Um deles sacou seu revólver. Patielly e Avelar atiraram junto com ele, abatendo-os, mas uma bala atingiu a cabeça de Avelar, que caiu no buraco também.

– P* que o pariu! – O tenente gritou, chutando lama. – Gularte! Me traz uma merda ‘duma’ granada.

O gordo obedeceu o mais rápido que pôde, o que não era muita coisa. Praguejando e xingando, Patielly acionou a granada e explodiu a cratera.

– Mas que c* tá acontecendo aqui, p*?!

Patielly respirou por um momento, esfregou a cabeça.

– Senhor… – Aproximou-se Inácio. – Os tiros que levamos antes foram de fuzil. Será que não eram…

– Os homens que tentaram ir até a torre. – Patielly completou. – Sim, eu também acho que eram eles.

IV

Algumas horas depois, encontraram um civil tentando tirar sua carroça e seus cavalos que haviam atolado na lama. O sujeito vestia uma pesada capa de chuva, que deixava todo seu corpo coberto. Seu rosto era pacífico e perfeitamente comum, exceto por um pedaço de tatuagem verde na testa que não era possível decifrar.

– Clamou este pobre, e o Senhor o ouviu, e o salvou de todas as suas angústias! – Bradou ele, de braços abertos, quando viu os carros se aproximarem.

– É uma armadilha. – Sussurrou Gularte, respirando pesado.

– Onde nós estamos? – Perguntou Patielly, abrindo a porta do seu veículo para falar com o homem.

– Nheengatu.

O civil não entendeu porque o tenente xingou ao ouvir essa resposta.

– Como eu faço para sair daqui?

– Bom, é só você seguir a estrada… – O homem pareceu temer, por um momento, a reação do militar. – … para um lado ou para o outro, e você vai sair do Vale.

– Você pelo menos pode me dizer… ‘pra’ que lado fica a p* do leste?

O sujeito apontou para a direção de onde eles estavam vindo. Patielly pulou para fora do carro, ficou meio minuto olhando para o nada, ignorando a chuva forte, depois deu um soco no veículo.

– O que diabos é aquela coisa? – Disse apontando para a torre. A face do civil ficou imediatamente transtornada, passando em um rosto pacífico a uma expressão de fúria tão ameaçadora que até Patielly se assustou.

– O Mineiro está acordado há tempo demais. Ele precisa dormir.

– Sim, eu sei. – Respondeu Patielly. – Eu sou aquele que ele espera.

– Bebê Alexander? – O sujeito ficou impressionado. Os cavalos se soltaram e fugiram, apavorados.

– Sim, sou eu, Alexander. Eu achei que esse armamento todo ia me manter a salvo… Mas parece que o destino me trouxe de volta aos braços do Mineiro.

– Ele não vai descansar enquanto você não for sacrificado.

– Já sei, c*, já sei. Me leva logo até ele.

O homem assentiu com a cabeça, e entrou para a mata, sendo seguido por Patielly, que ignorou as interrogações de seus subordinados.

– E o que fazemos com eles? – O civil parou alguns passos adiante, apontando para Gularte e Inácio.

– Cada cachorro que lamba a sua caceta.

Alexander Patielly desapareceu na mata e nunca mais foi visto. Seus homens ainda tentaram segui-lo, mas foram duramente impedidos. Por mais que ele tentasse parecer impassível, não pôde deixar de tremer quando ouviu os tiros e os gritos dos seus companheiros sendo devorados vivos. Se eles tivessem vivido mais tempo, teriam visto um vento forte levar a tempestade embora e, quando o sol nasceu, um dia claro e bonito surgir. O Mineiro precisava dormir, e mais de um sacrifício teve que ser feito.

TEMA: Lugares amaldiçoados, Noite tempestuosas brasileiras.