ALÉM DA CURVA - CLTS 13

Mais um dia se anunciava, o canto dos pássaros em meio ao som dos carros e aviões que passam por perto do meu condomínio, me acordava antes do despertador. Era um dia abafado, tal qual a maioria nos meses de calor em Porto Alegre. A rotina de levantar, vestir e sair rumo ao trabalho era sempre a mesma. A sensação era pesada, não vou mentir, nem tampouco dizer que senti que algo aconteceria, não tenho essa sensibilidade tão aguçada, apenas estava incomodado e como a maioria das pessoas, levantar cedo para trabalhar, não traz tanta alegria. Enfim, levava o tal dia da mesma forma, trabalho a céu aberto, sol na cabeça e poucas vezes algumas nuvens bondosas afastavam os raios solares, algo que durava poucos segundos, mas ajudava mesmo assim. 

Logo nas primeiras horas, a mensagem da minha mãe via celular, movimentou e escureceu meus pensamentos tal qual fosse um dia tempestuoso que se apresentava. 

”Oi filho, tua vó está muito ruim, estou indo para a casa dela.”

Demorei um pouco para responder, segui algumas tarefas do trabalho, elaborando o que falaria; era a mãe da minha mãe, não interessa se já estava debilitada, numa cadeira de rodas. Não importa ser um ciclo de vida, era minha vó, alguém que foi e sempre será muito importante em minha história, alguém que esteve ao meu lado nos piores momentos de minha vida, alguém que me deu colo desde o meu nascimento. 

A mensagem da minha mãe dizia tudo, eu entendi perfeitamente, seriam os últimos momentos daquela pessoa que foi um anjo para mim. Consegui então recomeçar a conversa, mas sem saber o que dizer, apenas continuei: “Está bem mãe, manda notícias”.  Ela não precisava de palavras naquele momento, e eu apenas queria estar com minha vó. Completei: “amanha irei ao encontro de vocês”.

Minha mãe, no final daquele dia avisou que teriam ido ao hospital e que os médicos recomendaram que voltassem para a casa, não havia mais o que fazer. Avisei que iria à primeira hora da tarde, resolveria alguns compromissos pela manhã e viajaria em seguida. 

Na manhã seguinte, fui avisado que teriam voltado ao hospital, que ela teria piorado e que lá teria mais cuidados e alguns aparelhos que a deixariam mais confortável, isso foi como dizer que faltava muito pouco, que o tempo estava se esgotando e que a ampulheta não seria virada.

Aquele dia foi igual aos outros, apenas o céu diferenciava, estava turvo e chuvoso. Dessa vez não era apenas meu interior que escurecia, dois olhos que muito brilhavam e me vigiaram, agora fechariam para sempre.

Fiz o que tinha que fazer e rumei ao encontro de minha família na cidade de minha vó, seria minha despedida, meu último “obrigado por tudo”, meu último beijo. Seria uma viagem longa, seria de muitos pensamentos e ótimas lembranças. 

Na estrada, não havia distração, os pensamentos eram sempre os mesmos, queria apenas chegar e o caminho começou sem percalços. O calor irritava um pouco e o carro sem ar condicionado, fazia com que eu tivesse que manter todos os vidros abertos, dessa maneira o vento incomodava muito, mas me mantinha acordado e melhorava a temperatura. 

O celular estava posicionado no suporte a minha frente, queria ter todas as informações possíveis, inclusive, ainda não haviam mandado o endereço do hospital, para onde eu deveria ir. A minha mãe enviou alguns áudios, eu, irresponsavelmente ouvia e respondia sem sequer parar o carro, a preocupação era maior que a prudência.

As 15:04, a tela do celular acendeu, a mensagem era de minha mãe, “Acabou”. Agora meu coração parecia acelerar e depois parar, causando uma gangorra de emoções, um misto de tristeza e dor fizeram meus olhos verterem lágrimas, tristes, mas às vezes, de alegria pelos muitos momentos bons que ela proporcionou. 

A viagem que a minutos estava tensa, agora tornava-se livre, parecia que a estrada era apenas minha, não via mais os caminhões passando, não havia ultrapassagens e o vento parou, o calor tomou conta do interior do carro e meu pé pesou, queria chegar lá o mais rápido possível. O ponteiro da velocidade subiu de 100 para 180 Km/h, os minutos pareciam demorar mais a passar e o GPS avisava que eu estava sendo multado. Corri, chorei, gargalhei, cantei, errei.

Passei por uma longa ponte que não havia sinalização e faltavam algumas partes das laterais de proteção, fui obrigado a reduzir a velocidade ao avistar um posto policial, isso me fez perceber que no acostamento, perto da curva, havia uma capela com uma cruz cinza já desgastada, ali já morrera alguém. Por fim, visualizei ao redor muitas árvores estáticas, o vento era forte, mas era como se elas não o sentissem, como se o tempo houvesse parado. Para alguém realmente parou, uma história já fora ceifada naquele lugar.

Assim que distanciei da polícia, voltei a acelerar. Aquela estrada parecia uma pista de corrida em preto e branco, assemelhava-se a um jogo, minha vista foi escurecendo, não havia medo de perder, o mundo virtual te dá mais vidas. Errou? Começa outra vez. Imaginei no canto no para-brisa, um “score”, e nele, eu vencia, muitos pontos para mim, os recordes estavam sendo batidos e eu era o grande vencedor. Os obstáculos foram aparecendo, carros iam sendo colocados em meu caminho, animais cruzavam a estrada e eu muito rapidamente os ultrapassava e desviava de tudo que se aproximava. Mas como nunca fui bom em jogos, na vida percebi que não era tão bom piloto assim. 

Numa ultrapassagem por um grande caminhão, outro, vinha de frente, fazendo com que eu colidisse em altíssima velocidade, não deu tempo de reduzir, apenas percebi numa última olhada no espelho, que outro carro, vermelho, fazia o mesmo que eu, talvez estivesse tentando me vencer, mas perdeu junto.

Virei o volante para esquerda, para tentar não bater de frente, mas não adiantou, o impacto me jogou para cima do outro carro, meu pescoço parecia ter descolado do resto do corpo, minha vista ficou mais clara, fazendo com que eu enxergasse os estilhaços do vidro caindo por cima de mim, o capô se abriu tapando minha visão frontal e o carro ficou girando e me mostrando céu e terra num “looping” que parecia não querer terminar. Meus braços caíram do volante, sacudiam sem medo, batendo em meu rosto, não obedecendo mais minhas ordens. 

Naquele momento estava morto, não havia possibilidade de reverter, meu cérebro avisava que o que havia acontecido não era normal, que algo havia dado errado e que era o fim.

Acordei em um quarto branco, com perfume  muito agradável e o canto dos pássaros que por vezes me incomodam nas manhãs rotineiras, nesse momento, traziam paz. Não conseguia mexer meu corpo, falei comigo mesmo, escutei minha voz. Vibrei por estar vivo depois de tudo que havia passado, mas estava paralisado. Muitos cabos estavam ligados a meu corpo e na minha cabeça, porém, não sentia dor alguma.

Passei mais uma vez os olhos pelo quarto, na parede direita, acima da janela com cortinas azuis, havia uma cruz de cor cinza, gasta, parecia estar ali há muito tempo. A porta se abriu e minha vó estava lá, em pé com um semblante triste, olhou para a cruz e veio na minha direção. Se sentou na cama, nos olhamos em silêncio, não consegui falar e ela agora, apenas sorria. Eu fiquei com medo de ser um sonho e acordar, ou pior, não acordar mais.

Parecia que esperávamos o outro começar a falar, e foi ela:

- Tudo tem seu tempo.

- Então eu morri também?

- Sim! Sua pressa causou tudo isso.

- Eu só queria ter chegado a tempo.

- Tu foste o meu primeiro neto, tu chegaste a tempo.

- Eu fiz tudo errado.

- Por esse arrependimento que sentes que vou te contar...

Minha vó começou contando que estávamos em um segundo plano, outra dimensão, e que poderíamos ter outra chance, um recomeço, uma nova visão do que é certo ou errado, ou, errar tudo de novo. A escolha era nossa.

- Vó! A minha decisão me trouxe para esse lugar?

- Como eu disse, podemos escolher, acidentes acontecem, mas se obedecermos algumas regras básicas, pode ser que o caminho seja alongado.

- E quando sabemos o que é certo ou errado?

Ela me olhou, sorriu e disse:

- Estou aqui para te ajudar. – E completou: -  Onde há morte, sempre haverá morte.

As 15:04, a tela do celular acendeu, a mensagem era de minha mãe, “Acabou”. Agora meu coração parecia acelerar e depois parar, causando uma gangorra de emoções, um misto de tristeza e dor fizeram meus olhos verterem lágrimas, tristes, mas às vezes, de alegria pelas lembranças de tudo que vivemos.

Por algum motivo que não entendo o porquê, acelerei o carro, mas logo reduzi a velocidade, não adiantava mais correr, eu chegaria lá no momento certo, sem pressa. Liguei o rádio e cantei muitas canções que mal sabia a letra e lembrei-me de muita coisa. Meu coração batia calmamente, as lágrimas seguiam escorrendo, mas não desesperadas, felizes. Seguindo sempre o que ela nos proporcionou em sua estada em nosso convívio. Nunca a vi triste, nunca houve conflitos, bem pelo contrário, era a mais apaziguadora que eu conheci. Espero que esteja sempre me protegendo como fez a vida toda, na verdade, tenho certeza disso. 

Segui o meu caminho pensando nela. O trânsito ficou mais pesado, muitos caminhões e carros se ultrapassando, deixando a viagem muito tensa. Esqueci das músicas e passei a prestar mais atenção no caminho.

Passei por uma longa ponte que não havia sinalização e faltavam algumas partes das laterais de proteção, fui obrigado a reduzir a velocidade ao avistar um posto policial, isso me fez perceber que no acostamento, perto da curva, havia uma capela com uma cruz cinza já desgastada, ali já morrera alguém. Por fim, visualizei ao redor muitas árvores estáticas, o vento era forte, mas era como se elas não o sentissem, como se o tempo houvesse parado. Para alguém realmente parou, uma história já fora ceifada naquele lugar.

Um carro vermelho, vinha em alta velocidade e quase se chocou com a minha traseira. Do retrovisor eu via uma família aparentemente feliz, um casal na frente e duas crianças no banco traseiro. O motorista por várias vezes tentou me ultrapassar dando sinal de luz, me empurrarando para que eu andasse mais rápido. Não conseguia tirar os olhos do espelho e tentei em vários momentos, abrir espaço para que ele me deixasse em paz, mas como já havia dito, o trânsito estava complicado.

Ele forçou até eu me jogar no acostamento, conseguiu passar, mas eu não voltei para a estrada. O carro ficou pesado e o pneu estourou fazendo com que eu perdesse o controle da direção e capotar. Muitas voltas e solavancos fizeram com que eu perdesse a consciência.

Acordei ainda no carro, não consegui mexer os braços, na verdade, não sentia o corpo, e a dor estava concentrada abaixo da nuca. Tentei manter os olhos abertos, mas não consegui.

Acordei em um quarto branco, uma cruz cinza e antiga na parede e minha vó parada ao lado da cama, mexiam meus pensamentos, estávamos lá, juntos. Eu lembrava nossa conversa e principalmente da frase “Onde há morte, sempre haverá morte”. Ela apenas beijou meu rosto.

As 15:04, a tela do celular acendeu, a mensagem era de minha mãe, “Acabou”. Agora meu coração parecia acelerar e depois parar, causando uma gangorra de emoções, um misto de tristeza e dor fizeram meus olhos verterem lágrimas, tristes, mas as vezes, de alegria pelas lembranças. Chorei deprimido e gargalhei de alegria por saber que vivi com uma pessoa, como a minha vó. 

Minha mente estava confusa, o Dejavú era muito intenso e ao passar por uma longa ponte que não havia sinalização e faltavam algumas partes das laterais de proteção, fui obrigado a reduzir a velocidade ao avistar um posto policial, isso me fez perceber que no acostamento, perto da curva, havia uma capela com uma cruz cinza já desgastada, ali já morrera alguém. Por fim, visualizei ao redor muitas árvores estáticas, o vento era forte, mas era como se elas não o sentissem, como se o tempo houvesse parado. Para alguém realmente parou, uma história já fora ceifada naquele lugar.

Imaginando uma história triste, reduzi mais ainda, senti necessidade de saber o nome da vítima que registrava o local e sem sequer dar sinal de parada, ao passar pela curva parei bruscamente o carro. Nesse momento um carro em alta velocidade passou por mim, o motorista obrigou-se a fazer uma manobra arriscada e perdeu o controle, chocando-se com um caminhão que vinha na direção contrária. Estacionei e fui ao encontro deles, os vi, tentei ajudar, mas a família inteira morreu, os pais e os dois filhos, na verdade, não tinha certeza, mas pela quantidade de sangue e o estado que ficou o carro vermelho, a situação era visivelmente fatal. Poderia ter sido comigo, mas não foi, eu estava bem. Vivo.

Liguei imediatamente para a emergência, estava desesperado por não poder ajudar. Sem ter mais o que fazer, andei meio desnorteado e em choque pelo acostamento. Parei ao dar de cara com a capela que me fez parar o carro. Passei a mão no vidro empoeirado e lá estava, em meio a flores e velas, a foto de uma família linda e alegre, mas que infelizmente terminou sua viagem ali, naquele mesmo local.

 A única coisa que vinha em minha cabeça naquele momento era a voz de minha vó dizendo:

“Onde há morte, sempre haverá morte”.

Tema: Lugares amaldiçoados.

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Conforme a CNT – Confederação Nacional do Transporte – o Brasil registra, a cada dia 14 mortes e 190 acidentes nas rodovias federais, as BRs. Para ser uma ideia, em 2018, foram 69.206 acidentes, sendo 53.963 com vítimas, com 5.269 mortes.

Ainda segundo o relatório, nos 12 anos analisados pela CNT, o Brasil teve 1,7 milhão de acidentes na BRs, sendo 751,7 mil com vítimas e 88,7 mil mortes.