322 - O Puzzle
Depois de pousar o puzzle concluído na mesa de trabalho do moldureiro, D. Quitas escolheu, durante uma boa meia hora, o enquadramento desejável. Optou por um perfil prateado que achou em bom preço, deu o sinal que o homem pediu, levantou os óculos para o alto da cana do nariz, pegou na bolsa e saiu ficando combinado que tão logo o trabalho estivesse pronto ele telefonaria. As mil e muitas peças daquela paisagem de barcos num diluído mar com tonalidades de ocaso ficaram a atrapalhar todo o serviço. Assim, animado de grandes cuidados, pegou o senhor Manuel pelo suporte da coisa e avançou, em equilíbrio precário, em direcção ao fundo da loja. Não sabe como fez mas a verdade é que, deslizando-lhe da mão aberta, o puzzle caiu e encheu de muitos pedacinhos coloridos o estabelecimento. De tão agoniado quase vomitou antes de, já mais calmo, passar a recolher as peças de cartão que reuniu numa grande caixa onde todas, anarquicamente, passaram a conviver. Manuel odiava fazer puzzles mas, sem coragem para dar conta da tragédia, andou semanas a fio a tentar fazer aquele, sem outra indicação que não fosse a semelhança das cores e o recorte muito parecido de todas as pequenas partes. E D. Quitas, depois de achar tudo muito atrasado, começou a telefonar. Que o quadro era para os anos do filho, que afinal era uma simples moldura sobre a placa onde a paisagem assentava. O vidro seguraria tudo e ela, Quitas, não entendia a dificuldade. E Manuel torcia-se nas explicações, afundava-se nelas, empalidecia. A zona dos barcos estava pronta ao fim de dez exaustivos serões mas o por de sol, as gaivotas, as tonalidades daquele anoitecer que não lembraria a mais ninguém tardavam. – Olhe, mando-lhe a casa o trabalho ainda hoje, disse sem poder dilatar mais a contenda. Tomou nota do endereço, desmanchou os barcos, pôs tudo num saco de plástico, juntou o dinheiro do sinal e um cartão a pedir desculpa pelo acidente. O seu rapaz que se entretenha a refazê-lo, sugeria.