A Dívida
Jogo Interrompido
O vento uivante estremecia as janelas velhas do sobrado, o barulho era de ferro enferrujado sendo obrigado a trabalhar, unindo-se com o ranger dos vidros quase soltos. As luzes do quarto se apagaram de repente, e a grande árvore que se quedava do lado de fora construía uma sombra assustadora. A menina gritou, pulou da cama e correu para fora do quarto.
O casal estava aos beijos na cama, era um jogo inconsciente; iniciavam-se aos beijos, passavam para as carícias e toques, e logo após iam às preliminares sexuais. Porém naquele dia o jogo fora interrompido, o estrondo da porta abrindo e os gritos da menina lhe assustaram; a mulher gritou surpresa e o homem cobriu-se rapidamente xingando.
A menina pulou na cama e aninhou-se assustada no meio do casal. Dizendo que tinha um monstro em seu quarto, o homem respirou fundo e a mulher levantou os olhos à estória e fingiu acreditar para acalmar a menina que falava descontroladamente sem nem respirar direito. Ainda estremecia ao ouvir o cair da chuva e todo seu estardalhaço.
Após muita conversa e carinho da mãe, a menina adormecera. O homem, contrariado dormira também, a mulher levantou-se foi até o banheiro e molhou a nuca, os pulsos e testa. Retornou ao quarto e com graça ajeitou a menina no colo, devolvendo-a para sua cama em seu quarto. A mulher desceu as escadas rangentes e marchou para a cozinha, bebericou um pouco de suco e observou o quintal dos fundos, uma grande sombra estava presente no canto do quintal, algo que parecia uma silhueta deformada.
A mulher deu de ombros e retornou para o quarto.
O amanhecer estava ainda gélido, o orvalho monopolizava as gramas dos quintais e corredor. A menina acordou no susto, suando e gritando.
- Ana, o que foi? – A mulher questionou ao entrar assustada no quarto.
- Mamãe, eu sonhei que tinha um monstro feio aqui. Um monstro de sombras todo estranho e feio que queria me pegar.
- Não foi nada minha filha – disse a mulher abraçando-a, com os olhos cerrados, lembrando-se da noite anterior e da sombra que vira no quintal.
A mulher soltou a menina e ajudou-a a preparar-se para o café da manhã.
O Pagamento
O clima gelado que assolou a cidade durante o dia e as chuvas fortes durante as noites proibiam o uso do quintal, com isso, Ana passou dias sem nem sair da casa. Brincava pelos cômodos e passava grande parte do dia com a mãe, aonde quer que esta esteja. A rotina noturna se estabelecera; após alguns dias os pais nem colocavam mais Ana em seu quarto, já aninhavam e a faziam dormir junto a si.
Toda noite Ana tinha o mesmo pesadelo, o monstro de sombras a assustava na tentativa de devorá-la, seus gritos acordavam os pais irritados, o homem virava-se de lado bufando ou levantava para ir ao banheiro, a mulher acalmava e aninhava Ana novamente até a menina cair no sono. Ela levantava-se exaurida e descia para beber água; e lá estava a sombra, com sua silhueta quase perfeita, um chifre pequeno e retorcido e algo que parecia asas.
A mulher observou aquilo e franziu o cenho, repousou o copo na bancada e abriu a porta dos fundos, o vento a tomou de frente, os cabelos e o roupão voavam aceleradamente. Cerrou os olhos para enxergar melhor e a sombra estava ainda no mesmo lugar. A mulher deu o primeiro passo e logo olhou para baixo assustada, os pés estavam travados impossibilitando o avanço. Deu um passo para trás normalmente e voltou a ir para frente, sendo impedida pelos pés fixados no chão.
Ela voltou lentamente para trás. Ana passou por ela e parou pouco adiante, toda esvoaçante como a mãe estava outrora.
- Ana volte aqui! – disse a mulher sem obter resposta.
Ana deu dois passos para frente e olhou para trás. Sorriu largamente.
- Ela precisa de mim mamãe. Lilith veio cobrar sua dívida. Eu a pagarei.
- Que história é essa, minha filha, volte já para cá.
- Lilith veio cobrar a dívida, sua criança fora roubada por você. Agora eu pagarei a dívida.
- Pare de brincadeiras menina. Que diabos é Lilith? Vem já para cá.
Novamente tentou avançar e seus pés a impedira, eles estavam colados no chão. Ana avançou mais e a sombra começou a brilhar, em tom preto e roxo. Aquelas cores misturadas atrapalharam a visão da mulher que dá porta só conseguia gritar pelo nome da filha. A menina correu para a sombra e o brilho ofuscante das cores causou uma grande explosão.
Quando o brilho cessou, a mulher sentiu-se livre. Abriu os olhos e percebeu Ana caída no canto do quintal, no mesmo lugar onde a sombra estivera. Sentiu um cheiro desagradável de enxofre e fósforo. Foi abraçada pelo marido que chegou correndo e de roupas de dormir.
- O que houve aqui? – ele questionou atordoado.
Nenhuma resposta ganhara. Os dois correram até o corpo de Ana e a pegaram no colo. A menina já não tinha batimentos cardíacos e nem respiração.
A dívida estava paga. A sombra nunca mais fora vista.