QUILOMBOS, PRINCESAS E OUTRAS HISTÓRIAS!

O astro rei ensaiava seu adeus. Uma tarde quente no Quilombo Turiassú. Os meninos brincavam debaixo da mangueira. As bolinhas de gude, presentes de uma socióloga que visitara o lugar. A mata. O rio. As galinhas no terreiro. O pilão. O monjolo. Um curso d'água onde as mulheres lavavam as roupas. -"Tem cheiro de café vindo lá da casa da Nhá Chica!" Disse Pedrinho, de treze anos, arregalando os olhos, que mais pareciam duas jabuticabas. Os outros meninos nem ligaram. O garoto saiu em disparada. A casa amarela. Nhá Chica vivia sozinha. O garoto entrou. Porta sem trinco, sem cadeado. -" A bênção, Nhá Chica! O café está cheiroso!" A mulher se virou, com toda a calma e paciência do mundo. Com a agilidade que seus noventa e oito anos permitiam. O lenço na cabeça. O cachimbo na boca. O vestido de chita. Os velhos chinelos. A bengala companheira. O fogão a lenha. O bule. O coador de pano. -" O fio já me pediu a bênção de manhã!" Pedrinho observou o prato com bolinhos sobre a mesa. -"O pai diz que bênção nunca é demais! Ninguém, no quilombo, faz bolinhos mais gostosos que a Nhá Chica!" Ele abriu um sorriso. Esfregou as mãos, salivando. -"Sei disso. Eu ensinei a todos aqui! Pode pegar um bolinho, depois que limpar as mãos." O garoto esfregou as mãos no calção. -" A senhora é muito sábia. Parece uma santa inté." Ele arrancou um sorriso dela. -"Sábia não sou pois se admitir que sou, já não serei! Santa, muito menos mas já fui princesa!" Pedrinho estava boquiaberto. -" Não creio. Uma princesa?" A mulher puxou uma cadeira. -" Senta, meu filho. Eu vou contar apenas pra você." O menino tomou um gole de café. -"Muito antes dos brancos portugueses chegarem a África, nossa terra mãe, havia uma aldeia na Savaggi, onde hoje é a Guiné. Meu pai, Gedru, era o rei do lugar. Meu verdadeiro nome era Dezah. Eu era linda, formosa e delicada. Todos da aldeia me tratavam com carinho e reverência. Adolescente, conheci um guerreiro belíssimo, às margens do rio Ji. Ele se virou com a lança mas parou. Eu o olhei, curiosa. Era linda de morrer. Ele abaixou a lança. Eu corri mas ele me alcançou rapidamente. Pegou meu braço com firmeza mas depois o soltou. A respiração ofegante. Senti o coração disparar. Ele me virou e me beijou. Um beijo apaixonado. Corri para a aldeia. No dia seguinte, nos reencontramos no rio. Nosso namoro durou três semanas, até o dia em que ele revelou seu nome. Era Soulu, o príncipe da tribo Zawa, inimigos ferozes de meu pai. Revelei minha identidade. Soulu ficou irado e se foi. Voltei a minha aldeia e contei o fato ao meu genitor. -"Conheço Soulu, filho de Agulum. Ele é maldoso, malicioso e violento. Impossível a união de vocês." Chorei muito, por um mês inteiro. -" Aquerat será seu marido, filha. É um bom homem de nossa aldeia." Saí da presença de meu pai. O monte Tutt. Uma caverna. Fiquei lá por três dias inteiros. Aquerat era ancião, não o queria. Eu amava Soulu. Os guerreiros de meu pai me procuraram. A tribo de Soulu atacou a aldeia. Mataram a todos. Os nossos guerreiros, desarmados, que estavam a minha procura, foram presas fáceis. Soulu e seus guerreiros procuravam por mim. -"Dezah. Sou eu, meu amor. Soulu e Agulum querem a paz." Ouvi sua voz. Eu tive medo. -" Dezah. Vamos nos casar e selar a paz!" Sorrindo, sai da caverna. Estava fraca e caí nos braços de meu amado Soulu. Acordei, tempo depois. A aldeia estava arrasada. Tudo queimado. Uma pilha de corpos. Vi o meu pai, morto e pendurado numa árvore. Chorei muito. Olhei para Soulu. -" Meu pai me aconselhou, Dezah. Você era uma isca de seu pai contra minha tribo. Você me seduziu e queria me destruir." Eu não podia crer. Soulu fora usado pelo pai, Agulum. Soulu não me escutava. Fui levada, amarrada, até a aldeia de Soulu. Era prisioneira. Meu filho nasceu. Meu e de Soulu. Agulum matou o menino, assim que nasceu. Soulu seguia o pai, sem oposição. Decidi me calar de vez. Nutri raiva mortal de Soulu, que não falava nem olhava pra mim. Uma tribo forte do sul, atacou, anos depois, a tribo de Soulu. Agulum foi morto. Agora, eu e Soulu éramos prisioneiros. Os mercadores de escravos. Eu e Soulu fomos vendidos e colocados num navio negreiro. Soulu não falava comigo. As mortes, as doenças no nsvio. Ele foi levado ao Haiti. Eu vim para o Rio de Janeiro e depois fui vendida a um mercador de Salvador. Estava tranquila, longe de Soulu. Manoel Fernandes, o meu dono, me revendeu ao barão Ignácio Fontes, um senhor de engenho. O português cristão, casado e pai de seis filhos, se encantou com minha beleza, altivez e gestos nobres. Ele me chamava de princesa, me batizou de Chica e logo me levou para a casa grande. Fui cozinheira, lavadeira e amante do barão. Tivemos três filhos em segredo. Anos depois, o capitão do mato da fazenda foi morto numa tocaia. O barão contratou um outro capitão, um tal de Felisberto. Era um homem alto e forte. Tinha fama de mau. Ele foi conhecer a fazenda e foi apresentado aos pretos. Para minha surpresa e azar, Felisberto era Soulu. Ele olhou para mim com surpresa e ódio feroz. Rangeu os dentes de raiva e torceu o chicote. Eu tremia quando ele entrava na casa grande pra falar com o barão. Fazia questão de falar alto, para que eu escutasse da cozinha, as barbaridades que ele cometia aos irmãos. Ele soube, por algum língua solta da senzala, que eu tivera filhos com o barão. Sempre dava um jeito de mandar meus filhos para o tronco, injustamente. O barão ficava quieto, assim como eu. Soulu se divertia ao chicotear meus filhos. Jeremias, um líder da senzala, gostava de mim. Eu confiava nele. Contei tudo a Jeremias. Soulu descobriu nosso romance e castigou Jeremias, deixando-o cego de um olho. Recebi um bilhete anônimo. Sabia que era de Soulu pois dizia que ia matar o barão, nossos filhos e Jeremias. Meses depois, o barão quase foi morto numa tocaia. Ficou inválido, numa cadeira de rodas. Uma rebelião, meses depois. A senzala em chamas. A fuga de escravos. Os tiros dos homens do barão para impedir a fuga. Meus filhos foram mortos pelas costas. Chorei muito. Soulu matou Jeremias, denunciado como líder da rebelião. De novo sozinha e frente a frente com Soulu. Desesperada, fiz um pacto com o chifrudo, o coisa ruim. Meia noite, uma encruzilhada. Eu o invoquei. -"Olá, mulher. Devo chamar a criatura de Dezah ou Chica?!!" Eu não tive medo e o encarei. Apontei o indicador na cara do bicho ruim. -" Minha vida nada vale, é curta, eu o chamei. Se és senhor das trevas, das profundezas, me conceda um só pedido!" Ele me olhou com desdém. -" Está suando. Fraca. Aterrorizada mas firme. Seu corpo, ainda que jovem, está quebrantado, o coração com flechas de dor e desespero por tanta crueldade, que, nem eu mesmo faria melhor. Sua morte está próxima, Chica. Você ainda ama Soulu, eu sinto. Chega de rodeios, peça!" Não titubiei. Vai que o demo mudasse de idéia pois essas coisas não tem palavra. -" Quero que leve Soulu. Mate-o!" Eu disse. O diabo virou um bode enorme, preto e fedorento. Ele riu por uma hora inteira. -" Tola, mulher. Não tenho esse poder e não o quero. Fique com ele você, Chica. Soulu vai ficar inválido e cego. O barão, a quem restituirei a saúde, vai concordar com o casamento de vocês. Assim aconteceu. Cuidei de Soulu até a sua morte, quarenta anos após a abolição. Nenhuma palavra, Soulu não falava nada." Pedrinho bocejou. A noite chegara. O prato sem nenhum bolinho. -"A senhora pode ficar tranquila pois ninguém vai saber disso. Vou fingir que é verdade, Nhá Chica! Boa noite!" O garoto saiu da casa da anciã. Nhá Chica sorriu, ao ver o menino correndo. -" Pedrinho. Vem tomar banho!" Gritou Januária, a mãe do garoto. A cadeira de balanço mexeu sozinha. Nhá Chica se arrepiou. Um homem surgiu, de repente. Um terno elegante, gel nos cabelos e sapatos italianos. -" Estava olhando o mundo, estão fazendo muitas atrocidades e jogando a culpa em mim! Em nome de nossa velha amizade, me sirva um café!" Nhá Chica serviu café ao homem. -" Ahhhh.... O café do Brasil é top. É assim que dizem quando algo é muito bom. Não devia ficar contando essas coisas aos garotos, Chica!" Ela o encarou. -" Vade retro, satanás!" Januária puxou a orelha do filho. -" Está imundo, Pedrinho! Seu irmão chegou faz tempo." O menino olhou para a casa da Nhá Chica. -"Já lhe falei pra não brincar na casa daquela velha louca que morreu há décadas!" FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 08/11/2020
Reeditado em 09/11/2020
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