Noite de Halloween
A escuridão da noite daquele 31 de outubro caía rapidamente, junto dos finos grossos da chuva que enxergava a pequena São Pedro da Serra havia três dias. A setecentista cidade interiorana sempre tinha um clima ameno, envolta das montanhas mineiras, mas aquele ano até para os moradores da cidade o frio da primavera estava demais.
Michele, grávida de seis meses do grande Jorge, recusou convite para uma viagem com os amigos do namorado, Guilherme, até um sítio próximo à cidade, alugados para aproveitar o feriado prolongado de Finados. A garota já estava sentindo frio dentro de casa, debaixo dos edredons. Em um sítio, sabia que o frio seria mais intenso.
Guilherme, seu companheiro de cinco anos, desde quando ambos estavam no primeiro ano do Ensino Médio, ficou junto de si na pequena casa recém-alugada do casal. A casa, com um pequeno quintal no fundo, dois quartos, sala, cozinha e banheiro, com as janelas frontais dando para rua, não era nenhum luxo, mas serviria para receber o pequeno Jorge com todo amor e carinho.
Era pouco mais de dez horas da noite e Guilherme e Michele estavam deitados, abraçados e debaixo da coberta, na cama do quarto, assistindo filme na Netflix. A chuva fina batia no telhado da casa antiga. Do lado de fora, a rua de paralelepípedos estava completamente vazia.
Repentinamente, eis que um estrondo de vidro se partindo ecoou pelos quatro cantos da casa. Guilherme e Michele, pegos desprevenidos, saltaram na cabeça tamanho o susto.
- O-O que foi isso? – perguntou Michele
- N-Não sei! – respondeu Guilherme
- Vai lá ver!
Ainda trôpego por causa do susto, Guilherme calçou os chinelos e saiu correndo em direção à saída do quarto. Entrou em um fino corredor e percebeu uma pedra jogada na sala à sua frente. Olhou rapidamente pela porta e viu um rombo no vidro, que estava jogado ao chão. Correu em direção à porta, à sua direita, a destrancou e a abriu. Deu dois passos para dentro da rua. Olhou para os dois lados. Nada.
- Filho da puta!
O rapaz entrou de volta.
Michele lhe esperava no corredor.
- O que aconteceu?
- Um filho da puta jogou uma pedra na nossa casa.
- Que merda! – reclamou Michele – E você não descobriu quem era?
- Não. O filho da puta sumiu!
- Que merda. Pra que fazer isso? Ainda estou tremendo até agora.
Guilherme abraçou a namorada e a beijou na testa.
Michele estava deitada na cama, assistindo ao filme. Guilherme arrumava a janela martelando os pregos que seguravam a madeira que isolava o vidro do exterior.
“Que merda”, pensou. “Esse vidro é caro”.
O rapaz terminou de arrumar a janela, deixou os objetos no local e saiu da sala. Fechou a porta e, quando atravessava o curto corredor, algo lhe chamou a atenção no local. Havia uma silhueta de pouco mais de um metro e oitenta de altura dentro do escuro da parte oposta do corredor. No meio da silhueta, havia pontos em vermelho vivo, no alto e no centro.
Guilherme se surpreendeu. Esticou o braço direito e acendeu a luz do corredor. O mesmo estava completamente vazio.
- Eu, hein? Que Diabos foi isso? – disse para si mesmo, enquanto apagava as luzes do corredor e abria a porta do quarto
- O que foi, amor? – perguntou a namorada, surpresa
O rapaz respirou fundo.
- Nada. Essa coisa do vidro. – respondeu, apenas
Em seguida, deitou ao lado da namorada e continuou a assistir ao filme.
“O que Diabos era aquilo?”, se perguntava, em mente. Seu coração estava saltitando no peito.
Pouco mais de quinze minutos depois, Guilherme já havia se acalmado e continuava assistindo normalmente ao filme. De tão calma, Michele já havia adormecido.
Um estrondo, contudo, assustou os dois. Michele literalmente saltou de susto. Guilherme também pulou na cama, ficando em posição de alerta, sentado.
O estrondo foi rápido e alto; parecia algo indo de encontro ao solo.
- O-O q-que foi isso? – perguntou Michele, com o coração quase saindo do peito
Guilherme se levantou. Caminhou de forma precavida até a porta. Respirou fundo defronte a ela e, em um só movimento, a abriu. Olhou para os dois lados do corredor. À esquerda, perto da porta da cozinha, um dos quadros do corredor estava caído no chão.
- O que foi? O que houve? – perguntou Michele, aflita
- Nada. Só um quadro que caiu. – ele disse. Saiu de perto da casa e adentrou no corredor. Caminhou descalço até o quadro, pegou-o do chão, se levantou e o colocou no lugar.
Virou de costas para a cozinha e caminhou em direção ao quarto. Adentrou no local e fechou a porta atrás de si.
- Viu o que derrubou o quadro? – perguntou Michele
Guilherme deu de ombros.
- Não. Mas não deve ter sido nada demais. – o rapaz continuou a caminhar pelo quarto, em direção à cama.
O rapaz deu três passos e sua caminhada foi interrompida por um barulho pequeno, mas nítido, de água pingando dentro de uma pia cheia. Uma vez. Duas. Três.
- Aff! – reclamou um impaciente Guilherme. – Parece que a casa está caindo aos pedaços. – irritado, virou-se de costas e foi em direção à porta
- O que aconteceu, amor? – perguntou Michele, surpresa
- Você não ouviu? Agora, a torneira do banheiro começou a pingar. Primeiro o quadro, agora a torneira.
- Vamos precisar chamar um técnico amanhã. – disse Michele, alto para o namorado ouvir
- Vou chamar um exorcista daqui a pouco! – bufou Guilherme, dentro do corredor
O rapaz, irritado, atravessou a passos largos o corredor até a porta do banheiro, abriu-a e ligou a luz. Verificou que a torneira do banheiro estava com água até a metade e estava ligeiramente aberta, o suficiente para sair um único pingo por vez.
- Mas o que...? – se perguntou. Enfiou a mão dentro da água e retirou do ralo pequenos cabelos enrolados.
Guilherme fez ânsia de vômito.
Pegou o cabelo e jogou no lixo ao lado do vaso. Enquanto isso, o ralo escoava a água da pia.
- Amor... – xingou, de dentro do banheiro – Faz essas coisas dentro do chuveiro. Que nojo!
- Isso o quê?
Guilherme saía do interior do banheiro enquanto lavava a mão.
- Jogar pentelho na pia. Por que fez isso?
- Amor. Como que fui eu que eu estou aqui no quarto? – perguntou a garota.
Guilherme congelou no corredor.
- Amor? – perguntou Michele, preocupada em não ter resposta
- Shhhh! – soltou Guilherme. Parecia prestar atenção em algo às suas costas.
Para sua surpresa, inesperadamente todos os quadros dependurados no corredor que estavam atrás de si caíram de forma simultânea no chão. Em um só pulo, virou-se para trás. Viu o mesmo vulto na porta da cozinha. Caminhava em direção ao interior do cômodo e sumia das vistas do rapaz. O vulto saltitava sobre sua única perna.
Guilherme acelerou os passos em direção ao quarto. Estava nitidamente irritado.
- O que foi isso, amor? – perguntou Michele
- Fica aí! – disse – Não saía!
Ao chegar na porta do quarto, contudo, Guilherme abriu a porta da sala e entrou no local. Pegou o martelo que estava jogado e se apossou dele. Fechando a porta novamente, disse:
- Ah, seu saci. Vamos ver se você vai continuar tendo coragem.
- Oi? Do que você está falando, amor?
- Nada! Fica aí!
Barulhos de panela começaram a ecoar pela casa. O barulho era alto e contínuo. Era barulho de panela batendo contra o chão, contra as paredes, entre panelas. Junto das panelas, também havia barulho de vidro quebrando.
“O que está acontecendo?”, se perguntou Guilherme, em pensamentos. Andava rápido, mas cauteloso, empunhando o martelo com ambas mãos, de frente ao peito.
Ao chegar na cozinha e acender a luz, o barulho cessou completamente. Guilherme fitou a porta que dava ao quintal aberta, os armários da pia e de parede abertos, tudo revirado, panelas jogando em todos os cantos, fogão e geladeira abertas, frascos jogados no chão e muitos copos e frascos quebrados. Porém, a cozinha estava completamente vazia.
- Filho da puta! – gritou, irritado. Olhou tudo caído no chão, quebrado e desperdiçado. – Que merda!
De repente, eis que uma mão gélida e pesada repousou no ombro esquerdo de Guilherme. O coração do rapaz saltou no peito e, em seguida, congelou.
Tremendo e paralisado, Guilherme virou lentamente a cabeça para trás, a fim de ver por cima do ombro quem era. Ao ver, arregalou os ombros.
Era um rapaz de pele negra, forte, sem camisa, de gorro e bermuda vermelha, com uma única perna e um cachimbo na boca, que quase caía por causa do sorriso maquiavélico.
Guilherme tentou esboçar uma reação; o rapaz, entretanto, foi mais rápido. Cravou uma faca em seu abdômen, funda o suficiente para espirrar sangue.
O rapaz gemeu de dor.
- Merda! – gritou, levando a mão esquerda até a faca e tentando a tirá-la – Socorro!
Em seguida, silêncio absoluto no local.
Michele saiu correndo tão logo ouviu o pedido de socorro do namorado. Acelerou os passos e atravessou o corredor. Chegou à cozinha e viu, além da cena vista pelo namorado, uma poça de sangue no centro do cômodo.
Desesperada, virou-se novamente em direção ao corredor, atravessando-o na mesma velocidade e chegando ao seu quarto. Procurou atropeladamente o seu celular em cima da cama e, ao encontrá-lo, desbloqueou e discou 190.
“Esse número chamado não pode atender ligações temporariamente”.
- Como assim? – se perguntou.
Tentou ligar novamente para o mesmo número, mas novamente não logrou êxito.
- Que merda! – reclamou – Só me faltava essa.
A garota mexeu no celular e abriu o seu Facebook. Procurou a deslizar a tela à procura de alguma informação. Chocou-se.
Amigos da garota nas redes sociais postavam ou compartilhavam postagens de terceiro sobre um possível perigo que rondava a cidade. Eram frases como:
“Um cara fantasiado de Saci invadiu minha casa. Levou meu irmão. Tomem cuidado”.
“Cuidado! Um cara fantasiado de Saci acabou de tentar invadir a minha casa”.
- Saci...? – se perguntou Michele.
Lembrou-se, no mesmo momento, de Guilherme passando há pouco pelo corredor dizendo, irritado, já com o martelo em punhos “Ah, seu saci. Vamos ver se você vai continuar tendo coragem”.
- Que merda... – disse, para si mesma – O que aconteceu?
Algo, entretanto, chamou sua atenção na tela do seu celular. Uma pessoa postou, em caixa alta e com uma imagem avermelhada no fundo, o seguinte texto:
“Se protegem! Fechem portas e janelas! O Saci não entra com tudo fechado!”
Veio à memória de Michele a janela sendo atravessada por uma pedra. Depois, Guilherme abrindo a porta. Por fim, a porta da cozinha escancarada.
- Filho da put.... – pensou uma estarrecida Michele.
Contudo, uma mão repousou no seu ombro. Uma mão gélida e pesada.
Paralisada de torpor e com o coração congelado no peito, Michele respirou fundo e tentou se desvencilhar da mão mexendo o corpo para frente. Entretanto, a pessoa que estava à sua cola foi mais rápida e lhe desferiu um potente golpe de martelo na têmpora direita, fazendo-a cair em um só baque.
Na manhã seguinte, a cidade de São Pedro da Serra amanheceu a polvorosa. Oito cadáveres foram encontrados amarrados em uma clareira na Serra do Coque, em uma espécie de tronco e queimados vivos. Além disso, outras oito garotas foram encontradas amarradas, jogadas próximas ao tronco, desacordadas e com sinais de violência sexual. Ao lado destas, jazia o cadáver de Michele, com um profundo corte no abdômen; estava com o útero completamente aberto e com o feto jazendo ao seu lado, ainda ligado pelo cordão umbilical.
O caso na cidade foi manchete no país todo, que parou com o caso:
“Aconteceu de novo! País a polvorosa! ‘Saci Pererê’ volta a atacar, dessa vez fazendo vítima na cidade de São Pedro da Serra! Nove corpos foram encontrados!”.