PAREDES MÓRBIDAS
O Cemitério da rua Emeline, antes de ser demolido, era um lugar melancólico e funesto. Obviamente, por ser um cemitério, levava consigo os adjetivos naturalmente e de acordo com a lógica, mas quem visitava o lugar ou sequer passava pela frente ou por trás sentia que tais palavras “melancólicas” e “funestas” só passaram a existir porque algum contador de histórias caminhou aos arredores e as criou para descrever as paredes de concreto manchadas pelo tempo, as árvores encarquilhadas, e as lápides brancas cobertas de lodo negro.
Era um lugar antigo. O cemitério começou a ser construído no século dezoito naquela cidade, desde então nunca saiu de funcionamento até ser demolido. Fora batizado de “Emeline”, fazendo jus à cidade da qual se situava, sendo o lugar que burgueses da época encomendaram lápides luxuosas de mármore, construindo por parte disso anjos tristes que se inclinam para observar onde o caixão se guardava por dentro de mais mármore. Se não eram anjos, réplicas da Virgem Maria também se inclinavam sempre cheias de misericórdia, os braços abertos para receber a alma daqueles que foram postos ali para repousar. Outros jazigos eram tão requintados que se assemelhavam à pequenas casas de apenas um cômodo, fechadas por portões góticos, guardando os restos mortais em conjunto dos membros falecidos da família. Seja para esculpir anjos, santos e erguer jazigos, ninguém economizava.
Com o passar dos séculos, ainda que estivesse em funcionamento, o cemitério perdeu seu glamour. O mármore não era mais branco, afinal, fora submetido à chuva e sol, adquirindo um negror nas asas das esculturas, nos olhos, em seus cabelos. A prefeitura considerava aquele cemitério uma parte histórica da cidade, mas ninguém parecia muito interessado em aparar as samambaias e outras plantas que começaram a crescer durante certo ponto, enroscando-se nas lápides, nos telhados dos jazigos, e também nos santos. As árvores se retorceram, diminuíram, outras cresceram e fizeram sombras lúgubres nas covas novas - estas mais simples cavadas diretamente no chão sem nenhum mármore. Quem vinha enterrar seus entes queridos naquelas covas se distraíam pela aparência do local, pisando em folhas secas, incomodados pelo vento quieto e gélido por entre as catacumbas.
Até que lendas começaram a surgir.
Andrei sabia de todas elas, sendo ele um jornalista que nasceu naquela cidade e já enterrara os dois avós no cemitério Emeline. Quando criança, toda a vez que passava de carro em frente ao local, se encolhia no banco de trás do carro negando-se ver as lápides, mas sem conseguir fugir das sombras delas na rua noturna. Mesmo durante o dia ele virava o rosto, ou o abaixava, incomodado primeiramente com fantasmas e depois por alguma coisa inominável, como olhos observando diretamente dos portões dos jazigos. Na morte de sua avó, negou-se a entrar no cemitério até ser convencido pela mãe, levando consigo um buquê de flores molhadas pela garoa, torcendo para que o caixão desaparecesse logo na cova e pudesse ir para casa. Geralmente, quanto mais fundo se ia dentro do Emeline, mais estreito ele ficava, de tal maneira que as lápides se tornavam um corredor labiríntico acompanhada das árvores não mais frondosas de aspecto assustador para uma criança. Andrei nunca mais quis entrar ali.
Mas entrou.
Durante a adolescência, seu avô morreu e novamente um cortejo fúnebre caminhou pelos corredores. Uma fileira de pessoas chorosas seguiu a procissão sombria, cabeças baixas em respeito solene. Andrei estava crescido demais, na própria concepção, para temer os mesmos fantasmas que temera quando criança, contudo, endureceu todos os membros do corpo no momento que entrou, marchando, sentindo aquele mesmo incômodo. Ao caminhar, sentiu também o ímpeto de virar a costa e dizer que esperaria no carro, ou longe das lápides, fora dali para nunca mais voltar. E mesmo se morresse não queria que fosse sepultado ali, em covas no chão, compartilhando do mesmo solo sinistro que corroía restos mortais até os ossos, o berço de decomposição lenta e torturante. Ele não queria se sentir corroendo até se tornar parte da terra que pisava agora, acometido de tão profundo assombro que não desejava sequer usar o par de sapatos que estava usando novamente.
Sua mãe, entretanto, colocou a mão no ombro dele e apertou, os dedos cheios de tristeza tentando fornecer algum conforto. Andrei queria expressar o medo, o incômodo, uma verdadeira fobia que sentia ali dentro - fobia esta que jamais sentira em qualquer outro cemitério ou menção deste. O orgulho, é claro, fez o garoto engolir as palavras de tentativa algumas vezes até que viu o corredor de lápides: o mesmo que passara quando criança. Ao que julgou, não conseguia mais passar com a fileira do cortejo, ouvindo distantemente o sino do coveiro avisando que outro corpo chegara para se juntar aos outros.
“Mãe, eu não consigo mais.” Disse enfim, trêmulo, fitando um anjo enegrecido sem pupilas nos olhos marmóreos. “Eu vou esperar lá fora.”
“Você tem certeza que ficará bem?” Perguntou a mulher fungando, o rosto completamente vermelho onde os óculos escuros grandes permitia aparecer. “Querido, dessa vez você pode ir. Me prometa que ficará bem.”
“Eu ficarei, mãe. Desculpe….”
Ela se inclinou e lhe beijou o rosto com lábios mornos, e por um momento ele achou que ela desabaria. Andrei segurou a cintura dela por um instante, aliviado quando a viu desaparecer com a fileira e voltando para os braços do marido - padrasto de Andrei. O homem deu uma última olhada nele e sussurrou algo: “Deve estar sendo difícil pra ele”, tendo como resposta o assentir da mulher inclinada para ser sustentada enquanto caminhava.
Andrei, portanto, não esperou mais e saiu do Emeline em passos rápidos, chegando na entrada do cemitério já grato por ver os carros estacionados e alguns prédios a distância. Foi quando um dos coveiros que balançava o sino da entrada falou, fazendo o garoto dar um pequeno salto:
“Hey, menino, você tem cigarro? Calma, eu não sou um fantasma! Estou bem vivo” Riu-se, as gargalhadas dos colegas coveiros acompanhando como um coro de troça. “Sinto muito por seu ente querido.”
Ofegante, Andrei tentou proteger a honra:
“Não tenho cigarro, e não tenho medo de fantasmas.”
“Se eu fosse você teria, eim” Respondeu ele, desdentado como um pirata, segurando uma pá cheia daquela terra. Ele começou a beber o que parecia refrigerante quente.
“Cala a boca, Xavier, você está assustando ainda mais o garoto.”
“E vocês querem que eu minta? Sabem o que acontece aqui….”
“Olha, garoto” Um deles interviu, limpando as mãos na calça larga. “Não liga pro Xavier, ele é dramático pra cacete.” E virou-se para quem deveria ser Xavier. “Supersticioso do caralho.”
“É porque vocês não ficam aqui de noite, eu fiquei.”
“Vai dizer pro menino que ouviu esse sino tocar depois da meia noite? Cansamos dessa história.”
Outras gargalhadas. Xavier se manteve impassível, segurando a corda do sino sem puxar.
Andrei sentiu vontade de perguntar sobre a história, mas se conteve. Considerava-se um rapaz curioso, mas o olhar baixo sem fitar nenhum dos coveiros ou as lápides indicava todo o seu pavor, incômodo, quase sentindo o gosto da terra na boca.
“E sobre a mulher de branco? Vocês acham que eu estava mentindo?!”
“Sim! Você imagina coisas, cara.”
“Garoto” Ele avançou, quase sádico. “Esse cemitério aqui tem alguma coisa, é sério. No século em que foi construído até agora muitas vítimas de tragédias horrendas, assassinatos e acidentes, foram enterradas aqui. Eu costumava ficar a noite inteira de vigia e pedi para ser transferido pro diurno porque eu estava enlouquecendo - e eu não sou fácil de me assustar. É sério, garoto” Tentou, através das risadas e assobios. “Você sabe, você sente.”
Andrei ergueu o olhar para fitar o rosto bronzeado de Xavier. Engoliu em seco, as risadas se abaixando até se tornarem tossidas.
“Ainda há vigias noturnos?” Ele perguntou deveras inocente, fazendo Xavier rir.
“Não. E esses fodidos aqui nem tentaram! Riem de mim mas não tentam. Desistiram de colocar vigias nesse cemitério, principalmente na parte traseira da outra rua.”
A parte traseira que dava para a outra rua era tão lôbrega quanto a parte da frente, mas ao contrário desta, não exibia lápides e sim uma longa parede de concreto lisa da qual do lado oposto caixões eram postos e lacrados. As samambaias tinham coberto grande parte superior do muro, galhos semelhantes à garras magras dividem espaço com a planta, e os poucos postes de lâmpada amarela iluminavam pobremente lá por dentro durante a noite. As casas opostas ao Emeline aos poucos foram sendo abandonadas, até que total silêncio envolveu aquele pedaço do cemitério, deixando somente histórias, lendas e desespero que faziam Andrei sentir as pernas fracas de medo.
“O que tem na parte traseira? Só concreto.” O garoto se pronunciou, sendo ovacionado pelos coveiros.
Xavier não parecia afetado.
“Há uma parte coberta de cimento. Lá dentro era uma capela para velar os mortos, décadas e décadas atrás. Eles fecharam e construíram uma na parte de dentro, você deve ter visto.”
O silêncio de Andrei era o impulso para o coveiro continuar.
“Desde então os vigias começaram ouvir gritos e gemidos lá dentro durante a noite. Eu mesmo chequei no meu turno e nunca vou me esquecer daqueles sons, garoto. Era real, estou te dizendo. Pergunte aos outros vigias se os encontrar, os que tiveram coragem de ver por si mesmos e não riem daqueles que comprovaram a situação. A morte não é o final, pirralho - tem coisa muito inexplicável por aí.”
Quando o cortejo saiu do cemitério e mãe, juntamente ao padrasto, de Andrei vieram levá-lo ao carro, o menino estava mais tenso do que antes.
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Após anos Andrei se formou em jornalismo com méritos em sua universidade. Por mais que tenha passado grande parte de sua vida com medo do cemitério Emeline, ele ganhou uma coluna especial no jornal da cidade em que falaria sobre os pontos históricos, cultura e comidas típicas, sendo aquele que explicaria de forma minuciosa - até onde o limite da coluna permitiu - as características da cidade de Emeline.
Ele fugiu, é claro, de explorar a história do cemitério até quando ameaçou ser demolido pelo novo governador que planejava construir um mais atual do outro lado da cidade. Ele dizia que o cemitério estava ficando cheio, sujo, e não fazia sentido em manter lápides quando o mais importante eram os palacetes e o grande teatro em estilo romântico no centro. Muitos foram contra a decisão, outros tantos a favor, e particularmente Andrei gostara muito da ideia de nunca mais passar pela frente de um lugar tão pavoroso, sem entender porque as pessoas se apegavam aos restos mortais de seus parentes. Ele amou os avós, e a perda lhe foi sentida, contudo, nunca viu sentido em reunir as lápides do Emeline, tampouco as esculturas que começavam a se tornar tão grotescas quanto a vegetação.
O diretor do jornal, todavia, solicitou à Andrei que pesquisasse sobre a história do Emeline, talvez para sensibilizar as pessoas ou, apenas como uma homenagem àquela parte da cidade. Após certa relutância, Andrei - com trinta anos - pesquisou quem tomara a iniciativa de construir aquele cemitério tão velho quanto a cidade, e que tipo de pessoas foram enterradas lá: desde burgueses até a classe média, deixando de ser um lugar apenas para os ricos com o passar dos anos. Ele se viu pensando sobre o coveiro Xavier, que nunca abandonou sua mente de verdade, falando que diversas almas já passaram por ali - mortas em tragédias sinistras desde assassinatos até acidentes violentos. Meninas suicidas, homens que definharam, mulheres diante do parto, garotos esmagados por carros. As lendas começaram ao mesmo tempo que esse tipo de essas pessoas foram enterradas, certamente produto da histeria, da criatividade, a narrativa coletiva de indivíduos afetados pela dor.
Andrei descobriu que a história de Xavier começara a um século atrás, e ainda é compartilhada em tópicos nas redes sociais dos moradores da cidade: O sino que bate após a meia noite como se alguém estivesse anunciando uma procissão para o sepultamento. A mulher de branco que sai e ludibria os homens da madrugada, traumatizando-os, vestida de noiva e tão pálida quanto o brancor de suas vestes. Os gemidos dentro da capela cimentada que antes ocupou o muro do cemitério. Muitas outras. Foi nessas pesquisas que Andrei soube que Xavier morrera, talvez vítima de cirrose, e ironicamente enterrado no lugar que lhe proporcionou tanto receio e pavor. Os outros coveiros foram despedidos, ou simplesmente entregaram seus cargos, sendo substituídos por outros que não durariam também.
Por fim, Andrei escreveu a coluna para o jornal da cidade. Isso não foi o suficiente para impedir que o governador conseguisse demolir o cemitério, construíndo em cima dele o que deveria ser um supermercado.
Houveram protestos, a construção terminou já em estado avançado. Tornou-se um lugar tão fantasmagórico e sombrio quanto o cemitério, e ninguém sabia o que fazer com a estrutura já formada do supermercado a não ser tapar as portas até que algo fosse resolvido.
Foi então que Andrei escreveu outra coisa para a coluna sobre o cemitério Emeline.
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PAREDES MÓRBIDAS
E os gemidos do Cemitério Emeline
Por Andrei Kaufman.
Eu tenho trinta anos, e durante toda a minha vida eu temi o Cemitério Emeline, o que foi demolido e substituído pelo o que deveria vir a ser um supermercado. Ele não era o único cemitério da cidade, mas foi o único público, do qual qualquer pessoa poderia ser enterrada - sendo esta uma contradição sobre o passado. Apenas burgueses eram sepultados no Emeline, e foram eles que construíram as lápides medonhas, funestas, e melancólicas que sempre me tiraram o sono. Eu nunca morei perto do Cemitério, mas já precisei passar por ele, experiência que sempre me foi profundamente incômoda sem explicação nenhuma.
Depois de anos, para a minha primeira coluna acerca deste cemitério, fui entender que outras pessoas - não todas - sentiam-se da mesma forma. Talvez sejamos sensíveis demais, não médiuns ou algo assim, apenas sensíveis e imaginativos para conseguirmos sentir o medo e o incômodo, uma repulsa, de entrar naquele cemitério. O que deveria ser uma experiência calma e soturna de respeito e dor, para mim e essas outras pessoas sempre foi razão de medo e terror, ao ponto de eu não conseguir sequer continuar a caminhada para a cova do meu avô, onde ele seria enterrado, na minha adolescência. Eu só fiz aquela caminhada anos antes quando minha avó falecera, e eu era apenas uma criança para entender a morte, ainda assim incômodado pelos fantasmas que poderiam aparecer mesmo durante o dia entre as lápides estreitas. O Emeline me deixava aterrorizado, e eu nunca expressei isso na coluna anterior, sequer citei a pesquisa sobre as lendas acerca de tão arcaico lugar.
Não se engane, leitor, eu não quero assustá-lo. Não quero parecer alguém ignorante e cheio de medos, alguém com terrores infantis sobre as sombras no canto do quarto e monstros debaixo da cama. Eu sou um homem adulto, muito dos meus medos amadureceram, e eu dormia com a luz apagada. Sim, dormia, porque somos adultos e por conta disso nos achamos superiores aos mistérios do mundo, reis de tudo ao nosso redor, impossíveis de serem afetados pelas mesmas sombras que temíamos estar do outro lado do quarto. É como se ser adulto ridicularizasse o medo, mas eu lhes digo, nós sempre o teremos. Nada, nem ninguém, pode tirá-los de nós quando somos acometidos a estar frente a frente com algo inexplicável e inconcebível, sobrenatural, nefasto, capaz de nos tirar a sanidade que tanto nos orgulhamos em questão de meros segundos.
Eu disse que não queria assustá-los, mas sei que estou fazendo isso me expressando assim porque anos atrás, quando eu tinha quatorze anos, um homem chamado Xavier, coveiro do Emeline já falecido, me assustou. Nenhum de seus colegas acreditavam nele, talvez você já esteja amassando o jornal antes mesmo de me terminar a leitura, e francamente espero que você faça isso. Eu espero que você não vá atrás do que eu fui, e que continue sendo adulto, sensato e são, muito distante de mim e do que julgará por delírio. Talvez eu e mais esse grupo de pessoas, estejam delirando. Eu quero acreditar na loucura, preciso dela para conseguir dormir.
O Emeline foi demolido em uma tarde de segunda feira por um trator imponente, que levou as lápides que eu tanto temi para baixo. Os corpos de meus avós e tantos outros foram soterrados e lacrados pelo concreto de base para o que deveria ser o supermercado, deixando para trás cidadãos indignados. Alguns. É possível que o governador receba um impeachment, seja exonerado, pela sua decisão - mas confesso que por dentro eu sentia o mesmo alívio que senti quando minha mãe deixou eu sair do cemitério no enterro de meu avô. Nunca mais veria aquelas lápides.
Mas eu preferia vê-las mil vezes do que passar pelo o que eu passei, e preferia também não ter tomado a decisão de ir tirar fotos no final da tarde, quase de noite, para proporcionar a vocês uma atmosfera decadente do supermercado que teve o restante de sua construção cancelada. Eu fui com uma câmera na bolsa e me lembrei de meu terror assim que cheguei lá, vendo que o tal suposto supermercado não conseguia tirar o ar aterrorizante do local: a neblina começava no crepúsculo, os postes não pareciam iluminar nada, e ninguém morava nos arredores. É como se eu pudesse ver as garras das árvores e as copas mortas, as folhas secas, os anjos de olhos de mármore, e a capela isolada coberta de cimento. O grande supermercado era apenas uma fachada: os corpos ainda estão debaixo dos meus pés, todos unidos e aglomerados, apodrecendo eternamente.
Eu me aproximei da parede do supermercado, tocando-as com as pontas dos dedos, como se quisesse comprovar o que o coveiro Xavier dissera na minha adolescência. Então me inclinei, e pousando a orelha no concreto gelado, ouvi do outro lado os sons que nunca me esquecerei enquanto eu viver.
Eram gemidos, gritos, pranto. Não era algo desse mundo, e eu conseguia ouvi-los, todos unidos, naquele coro desesperado e fora de tom. Antes que eu sequer pudesse afastar a orelha, foi a voz de Xavier que ecoou de volta, soluçando:
“Hey, garoto, você tem um cigarro?!”
Ele ainda perguntava se eu tinha um cigarro quando saí correndo, e nunca mais voltei. Essa é a minha última coluna para esse jornal, pois estou me mudando para um lugar onde eu não consiga mais ouvi-los. Duvido, porém, que eu consiga dormir com as luzes apagadas novamente ou sem o auxílio de medicamentos, porque eu ainda os ouço quando tudo está silencioso.
A única coisa que eu digo é que vocês não insistam mais em construir nada onde foi o Emeline. Desmoronem o supermercado, fiquem longe dali. Não coloquem seus ouvidos nas paredes malditas e mórbidas de qualquer concreto que possa surgir sob a base. E se por acaso tudo for demolido, não sentem sob a terra.
Eu sei que se voltar à essa cidade e o fizer, se eu encostar minha orelha na terra fúnebre, eu ainda ouvirei os gemidos. Eu ainda ouvirei Xavier perguntar constantemente se eu tenho um cigarro, e meus avós gritando naquele coro infernal.
Quando eu morrer, creme meu corpo e me joguem ao mar. Eu jamais irei querer ficar dentro de um caixão, debaixo da terra, apodrecendo.
Eu jamais irei querer me juntar ao coro de outras paredes mórbidas.