Quando Ismália Enlouqueceu
Apesar do estado de semiconsciência em que Ismália se encontrava, podia ouvir, de forma lenta e pastosa, como vindo de um pesadelo, dois homens conversando.
- O valor é este. Cuidaremos de tudo, não se preocupe.
- Tem certeza? Não terei nenhum imprevisto? – perguntou a voz, que lhe parecia familiar.
- Absoluta! Recebemos várias assim, não se preocupe. Sabemos o que fazer.
Quando acordou, estava amarrada a uma cama, em um amplo dormitório. A cabeça doía terrivelmente e a boca amargava. Era dia alto. Diante da cama, do outro lado da parede, havia um crucifixo de madeira, encarando-a. Tentou se sentar, mas não podia, devido às amarras. Resolveu chamar:
- Alguém! Por favor, alguém!
Forçou a vista e viu uma enfermeira, de uniforme azul, no final do corredor. A mulher lia uma revista e se deteve alguns segundos, para olhar na direção de Ismália, que pediu:
- Água, por favor!
A mulher voltou a olhar a revista, jogada preguiçosamente em sua cadeira. Ismália insistiu. A mulher, no entanto, continuou a ignorá-la. Por fim, incomodada, levantou, saiu e voltou com um médico:
- Vejo que acordou. Como se sente? – Perguntou o alto homem de jaleco
- Que lugar é esse? Por que eu estou aqui?
- Ora, você sabe. Andou causando problemas para sua família que, preocupada com a sua saúde, resolveu enviá-la para cá, para repousar.
- Preocupada? Saúde?! Só pode estar brincando!
- Não grite, senhorita! – disse em tom sarcástico, o médico.
- Eu não estou gritando!
- Desse jeito teremos que lhe aplicar outro sedativo.
- EU NÃO ESTOU GRITANDO!
- Peggy, mande chamar Irene, imediatamente!
- Sim, doutor Avaro!
A pálida enfermeira saiu arrastando os pés.
Ismália tinha a impressão de já ter ouvido a voz do médico antes, mas não se recordava de onde. Resolveu tentar arrancar algo dele:
- Quem é você?
- Meu nome é Avaro Médici, sou o dono do Hospital Santa Saligia. Aqui, pessoas com a saúde debilitada vêm para se recuperar.
- Mas minha saúde não está nada debilitada!
- Não foi o que seu pai me disse, mocinha! Ele falou que a senhorita estava muito doente.
Ismália ia argumentar. Tinha certeza absoluta de que aquilo não passava de um mal-entendido e a clareza de seus argumentos conseguiria resolver a situação. Sempre fora uma moça muito inteligente e astuta, tivera aulas de latim, retórica e etiqueta, sabia se sair bem em qualquer situação social. Mas algo lhe retirou completamente o prumo da argumentação, naquele momento: uma enfermeira, anormalmente alta e forte, entrara arrastando tiras de couro, com espinhos metálicos, com as quais golpeava o chão, com estardalhaço.
- Pois não, doutor? Quem é a de hoje? – perguntou, exibindo os dentes para Ismália, como um rosnado silencioso.
- Calma, Irene. Guarde seu entusiasmo para amanhã! Para hoje eu quero apenas uma dose de Cloral intramuscular, para nossa nova hóspede!
- Não! Por favor, deve haver algum engano, meu nome é Ismália Du-Pont. Eu exijo que chamem alguém da minha família, agora mesmo! – gritou em pânico, Ismália, enquanto a corpulenta mulher pegava algo em um armário, trancado à chave.
O médico gargalhou e a enfermeira lhe fez eco, se aproximando com a enorme agulha. Enquanto a substância nublava, outra vez, sua mente, Ismália acreditou ter visto o crucifixo lentamente virar de cabeça para baixo, enquanto a voz lenta e pastosa do médico ecoava em seus ouvidos:
- Você será minha hóspede. Acostume-se!
***
- Por que você está aqui? – uma voz lhe perguntou.
Ismália voltava lentamente de seu torpor e mesmo sem saber de quem era ou de onde vinha a voz, respondeu:
- Eu não sei.
- Vamos, tem que ter um motivo! Eu estou aqui porque traí meu marido.
Agora, ao lado de Ismália, a voz ganhava contorno: uma moça branca e muito magra, com olhos encovados, porém muito lúcidos, e uma bem composta trança no cabelo. A mulher continuou:
- Berenice está aqui porque raspou os próprios cabelos. Medéia está aqui porque abortou os próprios filhos.
- Que horror! – exclamou Ismália.
- Raspar os próprios cabelos, ou abortar os próprios filhos?
- As duas coisas, eu acho. – respondeu Ismália, um pouco incerta.
- Então, o que de horrível você fez? A propósito, sou Helena! – disse a mulher, lhe desamarrando as mãos e os pés. – Se você seguir meus conselhos, não vai precisar disso aqui, confie em mim. Poderemos até mesmo passear no pátio, durante as manhãs. Do gradeado pode-se ver o mar. Mas, então, o que de horrível você fez?
- Eu não sei, eu faço tudo certo, eu estudo...
- Horrível! – interrompeu Helena.
- Horrível, o quê? – quis saber Ismália.
- Estudar! Pelo menos é estudar para ser professora?
- Não, eu estudo as leis.
- Horrível!
- Estudar direito é horrível?
- Sim, é coisa dos homens. Não pode!
- Isso é um pensamento absurdo, que colocaram na sua cabeça, Helena!
- Já colocaram muita coisa absurda na minha cabeça, mas essa não é uma delas. Confie em mim. Eu sei como sobreviver aqui, menina.
- Acredite, quando pudermos votar pelos nossos direitos, tudo isso vai mudar. - insistiu Ismália.
- Votar? Ora, mas que inutilidade!
- Como assim?
- Meu pai era carvoeiro, ele podia votar. A vida dele, como carvoeiro, nunca foi melhor por causa disso!
- Isso não é verdade - argumentou Ismália - o movimento trabalhista dos carvoeiros é forte e tem conseguido muitos avanços.
- Tudo bobagem! – continuou a mulher, quando de repente ouviram um som de pesados passos no corredor. Alerta como um coelho, ela foi até a cama, ao lado e se deitou, fingindo dormir. No escuro dormitório, Ismália a imitou, sem saber ao certo por quê.
Um homem corpulento, de cabelos escuros e sobrancelhas muito grossas entrou e foi até uma das camas. Olhou em volta, como se a conferir que não houvesse testemunhas. Havia uma mulher loura e pálida amarrada à cama. Ele silenciosamente a desamarrou, jogou-a no ombro e saiu.
- Esse é o enfermeiro Lúcius. Nunca, de jeito nenhum, deixe que te apaguem à noite. Se não ele vem. – disse Helena, ainda deitada e com os olhos arregalados de terror.
- E o que ele faz?
- Ora, você sabe, menina!
De repente, elas começaram a ouvir, vindo do fim do corredor, sons de choro e gritos de mulher. Um som de tapa, seguido de xingamento, os calaram, sendo progressivamente substituídos por gemidos de prazer masculinos e um urro. Depois, um som baixo, de choro, por alguns minutos, e o silêncio. Nos olhares de Ismália e Helena, iluminados por um filete de lua, estampava-se o mais profundo pavor. Depois de alguns minutos, que pareceram horas, os passos pesados voltaram, trazendo sua vítima nos ombros. Deitou-a sobre a cama e a amarrou novamente. Lucius assoviava tranquilamente, durante o serviço e, assim saiu, levando consigo seu nefasto pio para longe.
***
Ismália não conseguira dormir. Varou a noite em claro, até ouvir os primeiros cantos dos pássaros. Lembrou-se da canção de ninar da mãe “Dorme, dorme rouxinol...“ fechou os olhos e quase adormeceu, quando o terrível barulho do chicote de Irene irrompeu no ambiente:
- Levantem, suas imundas! Pro banho! AGORA!!!
As mulheres se levantaram em polvorosa, se amontoando na saída para o corredor, onde eram impiedosamente golpeadas, aos gritos:
- Insetos! Corja! Meretrizes imundas, de dois dólares! Pro banho agora! Eu não aguento mais sentir o fedor de vocês aqui dentro!
Ismália se amontoou junto às outras, passando pela terrível mulher e torcendo para que as chicotadas a esmo não lhe acertassem. Como um rebanho elas seguiram para o fundo do corredor, para uma espécie de banheiro coletivo. Uma mulher, com uma grossa mangueira de alta pressão as aguardava, liberando a água de uma vez só em um jato tremendamente gelado. A pressão da água lhes machucava a carne e mais tarde deixaria hematomas. Quando terminou aquele tormento, seguiram para outra sala, onde receberam uma roupa limpa. A mulher da mangueira começou a falar:
- Hummm, roupa limpa! Mas que sorte, a de vocês, sabiam? Lá embaixo, elas não recebem banho, nem roupa limpa. Elas apodrecem no próprio mijo e suor!
Olhando diretamente para Ismália, desta vez, ela prosseguiu:
- Du-Ponts! Lamarcks! Bismarcks! Aqui vocês não são nada. Aqui vocês são menos do que eu! –disse, em meio a um riso debochado.
Aproximou-se de Ismália, pegou-lhe forte no rosto, abrindo-lhe a boca e disse:
- Dentes perfeitos! Sabe, conheço um protético que me fará uma boa dentadura com eles depois que você morrer! – e gargalhou.
Ismália viu que a mulher não tinha dente inteiro naquela fétida boca, a poucos centímetros de seu rosto. Então, a mulher soltou-a rispidamente e gritou para o grupo:
- PRO REFEITÓRIO!!!
- É a Invídia – disse Helena, baixinho, perto de seu ouvido – ladra, mas não morde. Você se acostuma, menina.
Mas Ismália não queria se acostumar. Acostumar-se nunca foi para ela.
***
O refeitório era composto por uma longa mesa de madeira, com bancos. A cozinheira derrubava em cada prato, uma porção ínfima de mingau frio, de aveia, sem sal nem açúcar, enquanto comia um enorme e açucarado sonho. Ismália não tinha vontade de comer e revirava a massa acinzentada, em seu prato, enquanto observava a enorme mulher comer sonho após sonho, lambuzando-se de creme e açúcar, mastigando ruidosamente, de boca aberta.
- Não vai querer, menina? – Helena perguntou.
- Não estou com fome.
- Eu se fosse você, comia. Se a gente parar de comer, eles dizem que é melancolia e apagam a gente com remédio, de noite, ou coisa pior. O choque é bem pior!
A cena da noite anterior causava a Ismália um asco maior do que o ruído da mastigação da cozinheira.
-Quem é ela?
- É Gilly. De todas, nem é a pior.
- Como ela pode comer desse jeito?! – perguntou Ismália, com ar de repulsa.
- Se eu tivesse outra coisa pra comer, além de mingau de aveia, acho que também comeria desse jeito – concluiu Helena.
***
Depois da refeição, saíram para tomar sol, no pátio. Como Helena dissera, uma brisa marinha soprava, vinda da direção de um gradeado alto, que separava o pátio, de um penhasco.
- Vou te ensinar como andar, menina! – disse Helena.
- Como assim? Eu sei andar!
- Andar no pátio, sua boba! Tem que andar igual a todo mundo, menina.
- Como assim?
- Tem que parecer um pouco louca.
- Eu não sou louca!
- Eu sei. Todo mundo sabe. Ninguém se importa!
A frase, dita de supetão e com tal espontaneidade chocou Ismália. Sentiu uma vertigem, como se o ar não fosse suficiente ao seu redor. Falou a primeira coisa que lhe veio à mente para tentar sair daquela sensação e ater-se à realidade:
- E como é parecer um pouco louca?
- Tem que sorrir um pouco. Só um pouco! Se sorrir muito é maníaca, se sorrir pouco é melancólica! E tem que andar meio devagar, como se estivesse em um delírio.
- O quê?!
- Sim, porque se você andar lúcida, eles te apagam com remédio, de noite.
- E por que eles fazem isso?
- Uma mulher lúcida, aqui dentro, é perigosa. A gente então finge que está louca, pra eles nos deixarem em paz.
- Isso tudo é um pesadelo!
- É porque você é muito nova, com o tempo você acostuma, menina.
- Eu não sou de me acostumar.
- Bobagem! Sorria um pouco, ande meio devagar, incline a cabeça, como se fosse num delírio. Vamos!
Assim, passaram pelo pátio, onde havia dezenas de mulheres a mais do que as de seu pavilhão. Quantos pavilhões haveria ali? As mulheres todas sorriam, andando devagar, com a cabeça levemente inclinada. Ao passar umas pelas outras, se cumprimentavam com uma breve reverência:
- Mademoiselle...
-Madame...
A maioria, ao passar e se cumprimentar, evitava olhar nos olhos uma da outra. Porém se Ismália insistisse um pouco, conseguiria receber uma olhadela. No fundo daqueles olhos, havia distintos sentimentos, a maioria de pavor e vergonha. Em apenas uma delas ela percebeu revolta.
Ismália percebeu, também, que realmente algumas eram bem mais sujas e repugnantes que outras. Essas ficavam sentadas em um canto, sem se incomodar com aquele ritual todo.
- Quem são elas?
- As do andar de baixo. – disse Helena.
- Por que elas não estão caminhando?
- Ah, elas desistiram.
- Desistiram de quê?
- De fazer parte.
- Elas me dão medo.
Havia algo de animalesco naquelas mulheres, olhares ferozes, dentes faltando, aqui e acolá. Pareciam presas de algum animal selvagem e faminto.
- Se você não caminhar sorrindo, toda manhã, é isso que você vai virar. Você quer ir pro andar de baixo, menina?
- Não, jamais!
Nesse momento, Ismália viu uma moça, ao longe, no saguão, muito bem vestida e espartilhada, com um chapéu de pluma azul. Era Solange, sua prima. Tinha uma esperança, enfim. Correu até ela em disparada, atravessando o pátio. Helena ainda tentou segurá-la, em vão.
- Solange?! Sou eu, Ismália. Por favor, fale com minha tia, que eu estou aqui, houve um terrível engano!
A expressão da moça foi de espanto e lividez. Olhou em volta, envergonhada e falou para os enfermeiros:
- Tirem essa mulher daqui.
- Do que está falando? Sou eu, sua prima! - disse Ismália, aprumando a coluna, como se vestisse um espartilho invisível.
- Eu jamais seria da mesma família de uma escória. Eu sou infinitamente superior a você! Sabia que eu estou noiva do Carlos?
Ismália lembrou-se do jantar em que Carlos lhe pedira em casamento, diante de toda a família e ela negara. Queria estudar, ser livre, não planejava se casar tão jovem. Lembrou-se de cada expressão naquela mesa, como se fosse uma pintura renascentista: o choque da mãe, a vergonha de Carlos, a ira do pai, a repulsa dos sogros... Então, ela entendeu o porquê de estar ali.
- Eu vim trazer o restante do pagamento. Saiba que a família está fazendo um grande sacrifício para apagar seu nome da nossa história!
Ismália sentiu uma mão forte segurar seu braço e, em seguida, a ferroada de uma agulha. O enfermeiro Lúcius estendeu seus tentáculos e a arrastou para longe dali, assobiando seu macabro pio.
***
Quando Ismália acordou, estava em sua cama, novamente, desamarrada, mas não se moveu. Ficou ali, repassando cada fato dos dias anteriores, até que decidiu: Não iria se acostumar. Ela não era de se acostumar. Aguardou o calar da noite e se esgueirou para fora da cama. Não havia ninguém de guarda e a cama ao seu lado estava intocada.
Andou descalça pela pedra fria do corredor, sem fazer nenhum ruído, deslizando tal qual uma aparição, em sua longa camisola branca. Seguiu até a porta, no fim do corredor, a qual abriu facilmente e se deparou com uma pequena sacada para o mar. Olhou a vista. Incrivelmente bonita! A lua cheia dominava o céu, apagando as estrelas e derramando sua prata sobre o mar. Ismália cantarolou a canção de sua mãe: “Dorme, dorme rouxinol, lá fora a doce lua brilha, brilha, toda tua...” E, então, subindo no parapeito de mármore, repetiu uma última vez: “... brilha, brilha, toda tua... deixa minha menininha dormir calma e segura...”
Ela não se acostumou. Acostumar-se nunca foi para ela. Deu um passo à frente e despencou para a eternidade.
Apesar do estado de semiconsciência em que Ismália se encontrava, podia ouvir, de forma lenta e pastosa, como vindo de um pesadelo, dois homens conversando.
- O valor é este. Cuidaremos de tudo, não se preocupe.
- Tem certeza? Não terei nenhum imprevisto? – perguntou a voz, que lhe parecia familiar.
- Absoluta! Recebemos várias assim, não se preocupe. Sabemos o que fazer.
Quando acordou, estava amarrada a uma cama, em um amplo dormitório. A cabeça doía terrivelmente e a boca amargava. Era dia alto. Diante da cama, do outro lado da parede, havia um crucifixo de madeira, encarando-a. Tentou se sentar, mas não podia, devido às amarras. Resolveu chamar:
- Alguém! Por favor, alguém!
Forçou a vista e viu uma enfermeira, de uniforme azul, no final do corredor. A mulher lia uma revista e se deteve alguns segundos, para olhar na direção de Ismália, que pediu:
- Água, por favor!
A mulher voltou a olhar a revista, jogada preguiçosamente em sua cadeira. Ismália insistiu. A mulher, no entanto, continuou a ignorá-la. Por fim, incomodada, levantou, saiu e voltou com um médico:
- Vejo que acordou. Como se sente? – Perguntou o alto homem de jaleco
- Que lugar é esse? Por que eu estou aqui?
- Ora, você sabe. Andou causando problemas para sua família que, preocupada com a sua saúde, resolveu enviá-la para cá, para repousar.
- Preocupada? Saúde?! Só pode estar brincando!
- Não grite, senhorita! – disse em tom sarcástico, o médico.
- Eu não estou gritando!
- Desse jeito teremos que lhe aplicar outro sedativo.
- EU NÃO ESTOU GRITANDO!
- Peggy, mande chamar Irene, imediatamente!
- Sim, doutor Avaro!
A pálida enfermeira saiu arrastando os pés.
Ismália tinha a impressão de já ter ouvido a voz do médico antes, mas não se recordava de onde. Resolveu tentar arrancar algo dele:
- Quem é você?
- Meu nome é Avaro Médici, sou o dono do Hospital Santa Saligia. Aqui, pessoas com a saúde debilitada vêm para se recuperar.
- Mas minha saúde não está nada debilitada!
- Não foi o que seu pai me disse, mocinha! Ele falou que a senhorita estava muito doente.
Ismália ia argumentar. Tinha certeza absoluta de que aquilo não passava de um mal-entendido e a clareza de seus argumentos conseguiria resolver a situação. Sempre fora uma moça muito inteligente e astuta, tivera aulas de latim, retórica e etiqueta, sabia se sair bem em qualquer situação social. Mas algo lhe retirou completamente o prumo da argumentação, naquele momento: uma enfermeira, anormalmente alta e forte, entrara arrastando tiras de couro, com espinhos metálicos, com as quais golpeava o chão, com estardalhaço.
- Pois não, doutor? Quem é a de hoje? – perguntou, exibindo os dentes para Ismália, como um rosnado silencioso.
- Calma, Irene. Guarde seu entusiasmo para amanhã! Para hoje eu quero apenas uma dose de Cloral intramuscular, para nossa nova hóspede!
- Não! Por favor, deve haver algum engano, meu nome é Ismália Du-Pont. Eu exijo que chamem alguém da minha família, agora mesmo! – gritou em pânico, Ismália, enquanto a corpulenta mulher pegava algo em um armário, trancado à chave.
O médico gargalhou e a enfermeira lhe fez eco, se aproximando com a enorme agulha. Enquanto a substância nublava, outra vez, sua mente, Ismália acreditou ter visto o crucifixo lentamente virar de cabeça para baixo, enquanto a voz lenta e pastosa do médico ecoava em seus ouvidos:
- Você será minha hóspede. Acostume-se!
***
- Por que você está aqui? – uma voz lhe perguntou.
Ismália voltava lentamente de seu torpor e mesmo sem saber de quem era ou de onde vinha a voz, respondeu:
- Eu não sei.
- Vamos, tem que ter um motivo! Eu estou aqui porque traí meu marido.
Agora, ao lado de Ismália, a voz ganhava contorno: uma moça branca e muito magra, com olhos encovados, porém muito lúcidos, e uma bem composta trança no cabelo. A mulher continuou:
- Berenice está aqui porque raspou os próprios cabelos. Medéia está aqui porque abortou os próprios filhos.
- Que horror! – exclamou Ismália.
- Raspar os próprios cabelos, ou abortar os próprios filhos?
- As duas coisas, eu acho. – respondeu Ismália, um pouco incerta.
- Então, o que de horrível você fez? A propósito, sou Helena! – disse a mulher, lhe desamarrando as mãos e os pés. – Se você seguir meus conselhos, não vai precisar disso aqui, confie em mim. Poderemos até mesmo passear no pátio, durante as manhãs. Do gradeado pode-se ver o mar. Mas, então, o que de horrível você fez?
- Eu não sei, eu faço tudo certo, eu estudo...
- Horrível! – interrompeu Helena.
- Horrível, o quê? – quis saber Ismália.
- Estudar! Pelo menos é estudar para ser professora?
- Não, eu estudo as leis.
- Horrível!
- Estudar direito é horrível?
- Sim, é coisa dos homens. Não pode!
- Isso é um pensamento absurdo, que colocaram na sua cabeça, Helena!
- Já colocaram muita coisa absurda na minha cabeça, mas essa não é uma delas. Confie em mim. Eu sei como sobreviver aqui, menina.
- Acredite, quando pudermos votar pelos nossos direitos, tudo isso vai mudar. - insistiu Ismália.
- Votar? Ora, mas que inutilidade!
- Como assim?
- Meu pai era carvoeiro, ele podia votar. A vida dele, como carvoeiro, nunca foi melhor por causa disso!
- Isso não é verdade - argumentou Ismália - o movimento trabalhista dos carvoeiros é forte e tem conseguido muitos avanços.
- Tudo bobagem! – continuou a mulher, quando de repente ouviram um som de pesados passos no corredor. Alerta como um coelho, ela foi até a cama, ao lado e se deitou, fingindo dormir. No escuro dormitório, Ismália a imitou, sem saber ao certo por quê.
Um homem corpulento, de cabelos escuros e sobrancelhas muito grossas entrou e foi até uma das camas. Olhou em volta, como se a conferir que não houvesse testemunhas. Havia uma mulher loura e pálida amarrada à cama. Ele silenciosamente a desamarrou, jogou-a no ombro e saiu.
- Esse é o enfermeiro Lúcius. Nunca, de jeito nenhum, deixe que te apaguem à noite. Se não ele vem. – disse Helena, ainda deitada e com os olhos arregalados de terror.
- E o que ele faz?
- Ora, você sabe, menina!
De repente, elas começaram a ouvir, vindo do fim do corredor, sons de choro e gritos de mulher. Um som de tapa, seguido de xingamento, os calaram, sendo progressivamente substituídos por gemidos de prazer masculinos e um urro. Depois, um som baixo, de choro, por alguns minutos, e o silêncio. Nos olhares de Ismália e Helena, iluminados por um filete de lua, estampava-se o mais profundo pavor. Depois de alguns minutos, que pareceram horas, os passos pesados voltaram, trazendo sua vítima nos ombros. Deitou-a sobre a cama e a amarrou novamente. Lucius assoviava tranquilamente, durante o serviço e, assim saiu, levando consigo seu nefasto pio para longe.
***
Ismália não conseguira dormir. Varou a noite em claro, até ouvir os primeiros cantos dos pássaros. Lembrou-se da canção de ninar da mãe “Dorme, dorme rouxinol...“ fechou os olhos e quase adormeceu, quando o terrível barulho do chicote de Irene irrompeu no ambiente:
- Levantem, suas imundas! Pro banho! AGORA!!!
As mulheres se levantaram em polvorosa, se amontoando na saída para o corredor, onde eram impiedosamente golpeadas, aos gritos:
- Insetos! Corja! Meretrizes imundas, de dois dólares! Pro banho agora! Eu não aguento mais sentir o fedor de vocês aqui dentro!
Ismália se amontoou junto às outras, passando pela terrível mulher e torcendo para que as chicotadas a esmo não lhe acertassem. Como um rebanho elas seguiram para o fundo do corredor, para uma espécie de banheiro coletivo. Uma mulher, com uma grossa mangueira de alta pressão as aguardava, liberando a água de uma vez só em um jato tremendamente gelado. A pressão da água lhes machucava a carne e mais tarde deixaria hematomas. Quando terminou aquele tormento, seguiram para outra sala, onde receberam uma roupa limpa. A mulher da mangueira começou a falar:
- Hummm, roupa limpa! Mas que sorte, a de vocês, sabiam? Lá embaixo, elas não recebem banho, nem roupa limpa. Elas apodrecem no próprio mijo e suor!
Olhando diretamente para Ismália, desta vez, ela prosseguiu:
- Du-Ponts! Lamarcks! Bismarcks! Aqui vocês não são nada. Aqui vocês são menos do que eu! –disse, em meio a um riso debochado.
Aproximou-se de Ismália, pegou-lhe forte no rosto, abrindo-lhe a boca e disse:
- Dentes perfeitos! Sabe, conheço um protético que me fará uma boa dentadura com eles depois que você morrer! – e gargalhou.
Ismália viu que a mulher não tinha dente inteiro naquela fétida boca, a poucos centímetros de seu rosto. Então, a mulher soltou-a rispidamente e gritou para o grupo:
- PRO REFEITÓRIO!!!
- É a Invídia – disse Helena, baixinho, perto de seu ouvido – ladra, mas não morde. Você se acostuma, menina.
Mas Ismália não queria se acostumar. Acostumar-se nunca foi para ela.
***
O refeitório era composto por uma longa mesa de madeira, com bancos. A cozinheira derrubava em cada prato, uma porção ínfima de mingau frio, de aveia, sem sal nem açúcar, enquanto comia um enorme e açucarado sonho. Ismália não tinha vontade de comer e revirava a massa acinzentada, em seu prato, enquanto observava a enorme mulher comer sonho após sonho, lambuzando-se de creme e açúcar, mastigando ruidosamente, de boca aberta.
- Não vai querer, menina? – Helena perguntou.
- Não estou com fome.
- Eu se fosse você, comia. Se a gente parar de comer, eles dizem que é melancolia e apagam a gente com remédio, de noite, ou coisa pior. O choque é bem pior!
A cena da noite anterior causava a Ismália um asco maior do que o ruído da mastigação da cozinheira.
-Quem é ela?
- É Gilly. De todas, nem é a pior.
- Como ela pode comer desse jeito?! – perguntou Ismália, com ar de repulsa.
- Se eu tivesse outra coisa pra comer, além de mingau de aveia, acho que também comeria desse jeito – concluiu Helena.
***
Depois da refeição, saíram para tomar sol, no pátio. Como Helena dissera, uma brisa marinha soprava, vinda da direção de um gradeado alto, que separava o pátio, de um penhasco.
- Vou te ensinar como andar, menina! – disse Helena.
- Como assim? Eu sei andar!
- Andar no pátio, sua boba! Tem que andar igual a todo mundo, menina.
- Como assim?
- Tem que parecer um pouco louca.
- Eu não sou louca!
- Eu sei. Todo mundo sabe. Ninguém se importa!
A frase, dita de supetão e com tal espontaneidade chocou Ismália. Sentiu uma vertigem, como se o ar não fosse suficiente ao seu redor. Falou a primeira coisa que lhe veio à mente para tentar sair daquela sensação e ater-se à realidade:
- E como é parecer um pouco louca?
- Tem que sorrir um pouco. Só um pouco! Se sorrir muito é maníaca, se sorrir pouco é melancólica! E tem que andar meio devagar, como se estivesse em um delírio.
- O quê?!
- Sim, porque se você andar lúcida, eles te apagam com remédio, de noite.
- E por que eles fazem isso?
- Uma mulher lúcida, aqui dentro, é perigosa. A gente então finge que está louca, pra eles nos deixarem em paz.
- Isso tudo é um pesadelo!
- É porque você é muito nova, com o tempo você acostuma, menina.
- Eu não sou de me acostumar.
- Bobagem! Sorria um pouco, ande meio devagar, incline a cabeça, como se fosse num delírio. Vamos!
Assim, passaram pelo pátio, onde havia dezenas de mulheres a mais do que as de seu pavilhão. Quantos pavilhões haveria ali? As mulheres todas sorriam, andando devagar, com a cabeça levemente inclinada. Ao passar umas pelas outras, se cumprimentavam com uma breve reverência:
- Mademoiselle...
-Madame...
A maioria, ao passar e se cumprimentar, evitava olhar nos olhos uma da outra. Porém se Ismália insistisse um pouco, conseguiria receber uma olhadela. No fundo daqueles olhos, havia distintos sentimentos, a maioria de pavor e vergonha. Em apenas uma delas ela percebeu revolta.
Ismália percebeu, também, que realmente algumas eram bem mais sujas e repugnantes que outras. Essas ficavam sentadas em um canto, sem se incomodar com aquele ritual todo.
- Quem são elas?
- As do andar de baixo. – disse Helena.
- Por que elas não estão caminhando?
- Ah, elas desistiram.
- Desistiram de quê?
- De fazer parte.
- Elas me dão medo.
Havia algo de animalesco naquelas mulheres, olhares ferozes, dentes faltando, aqui e acolá. Pareciam presas de algum animal selvagem e faminto.
- Se você não caminhar sorrindo, toda manhã, é isso que você vai virar. Você quer ir pro andar de baixo, menina?
- Não, jamais!
Nesse momento, Ismália viu uma moça, ao longe, no saguão, muito bem vestida e espartilhada, com um chapéu de pluma azul. Era Solange, sua prima. Tinha uma esperança, enfim. Correu até ela em disparada, atravessando o pátio. Helena ainda tentou segurá-la, em vão.
- Solange?! Sou eu, Ismália. Por favor, fale com minha tia, que eu estou aqui, houve um terrível engano!
A expressão da moça foi de espanto e lividez. Olhou em volta, envergonhada e falou para os enfermeiros:
- Tirem essa mulher daqui.
- Do que está falando? Sou eu, sua prima! - disse Ismália, aprumando a coluna, como se vestisse um espartilho invisível.
- Eu jamais seria da mesma família de uma escória. Eu sou infinitamente superior a você! Sabia que eu estou noiva do Carlos?
Ismália lembrou-se do jantar em que Carlos lhe pedira em casamento, diante de toda a família e ela negara. Queria estudar, ser livre, não planejava se casar tão jovem. Lembrou-se de cada expressão naquela mesa, como se fosse uma pintura renascentista: o choque da mãe, a vergonha de Carlos, a ira do pai, a repulsa dos sogros... Então, ela entendeu o porquê de estar ali.
- Eu vim trazer o restante do pagamento. Saiba que a família está fazendo um grande sacrifício para apagar seu nome da nossa história!
Ismália sentiu uma mão forte segurar seu braço e, em seguida, a ferroada de uma agulha. O enfermeiro Lúcius estendeu seus tentáculos e a arrastou para longe dali, assobiando seu macabro pio.
***
Quando Ismália acordou, estava em sua cama, novamente, desamarrada, mas não se moveu. Ficou ali, repassando cada fato dos dias anteriores, até que decidiu: Não iria se acostumar. Ela não era de se acostumar. Aguardou o calar da noite e se esgueirou para fora da cama. Não havia ninguém de guarda e a cama ao seu lado estava intocada.
Andou descalça pela pedra fria do corredor, sem fazer nenhum ruído, deslizando tal qual uma aparição, em sua longa camisola branca. Seguiu até a porta, no fim do corredor, a qual abriu facilmente e se deparou com uma pequena sacada para o mar. Olhou a vista. Incrivelmente bonita! A lua cheia dominava o céu, apagando as estrelas e derramando sua prata sobre o mar. Ismália cantarolou a canção de sua mãe: “Dorme, dorme rouxinol, lá fora a doce lua brilha, brilha, toda tua...” E, então, subindo no parapeito de mármore, repetiu uma última vez: “... brilha, brilha, toda tua... deixa minha menininha dormir calma e segura...”
Ela não se acostumou. Acostumar-se nunca foi para ela. Deu um passo à frente e despencou para a eternidade.
[Temas:HOSPITAIS (principal) e SETE PECADOS CAPITAIS]