O BEIJO GELADO DA MORTE.
Nem bem o sol dava o ar de sua graça, lá pelas bandas do bairro Remanso e o velho Ubirajara já estava acordado. Dormia poucas horas, mesmo assim, a base de remédios. O moletom azul marinho da Adidas, o boné do Corinthians e as havaianas. O habitual cigarro na boca. Puxava o poodle Leão. Colocou a sacolinha na lixeira do condomínio. Um bom dia ao porteiro. -"Noite quente, seu Bira!" O porteiro Cosme era o único que falava com ele. -" Quente? Um inferno, isso sim. Não há mais estações definidas. Frio no verão, calor no inverno. O síndico quer aprovar a instalação de ar condicionado nos apartamentos. A conta de luz vai atingir a extratosfera. É o fim da picada! Você viu o preço do arroz? A grama está alta. Estão fumando narguilé e emporcalhando a área das piscinas! Vou arrepiar na próxima assembléia." Com o fim do horário de verão, o dia já estava bem claro. Uma volta no quarteirão. A padaria. Ele colocou a máscara. O Leão nos braços. Era sempre o mesmo pedido: dois pães franceses, três pães de queijo e um jornal. -"Tudo caro. Pão caro, água cara. O mundo está uma zona!" As mensagens do grupo da família no WhatsApp. -"Rede social é uma maravilha, todo mundo é bom, rico e bonito! É uma hipocrisia brutal." Bira estava aposentado. Preso num apartamento, isolado devido a pandemia da Covid-19. Os gerânios na sacada. Eram as flores preferidas da saudosa esposa, Laurinda. Ele abriu as janelas. -" Lá está o idiota do bloco E, só de cuequinha vermelha. Gentalha!" O porteiro no interfone. Era uma encomenda do Mercado Livre. -"Finalmente acabou a greve dos correios! Imprestáveis!" " Ele aderiu ao café solúvel. -"Mais prático para quem vive sozinho mas não se compara ao café passado na hora!" Ligou a tevê. Bom dia, Brasil. -"Esse Chico Pinheiro não é ruim mas não se compara aos velhos Cid Moreira e Sérgio Chapellin. Não mesmo! As mesmas notícias de sempre. Coronavírus, eleição americana. Esse vírus foi inventado para acabar com os pobres!" A chuva fina. Ele entrou no aplicativo do celular e cancelou o treino na academia. As dores no joelho e as recomendações do médico o convenceram a malhar. Estranhou no início mas as dores sumiram. Gostava da bicicleta ergométrica e da atenção da personal treinner. Odiava a música alta, os jovens marombados se exibindo, iguais pavões, em frente ao espelho. Ele puxava papo com a galera jovem mas ninguém lhe dava ouvidos. -" Distanciamento, seu Bira. Falar muito emite gotículas de saliva! Vamos acabar com essa pança de chopp?" Ele ia responder o que tinha debaixo da barriga de chopp mas o sorriso da professora de zumba o fez mudar de idéia. Definitivamente, academia não era sua praia. -"Academia me lembra Palmeiras, já não é boa coisa pelo nome!" Ele pegou a vassoura e deu pancadas na laje. -"Silêncio aí em cima, seus merdas. Olha a multa por perturbação do sossego!" Algumas crianças brincavam na rua. O latido de cães. Os motoqueiros. O carro do ovo. O carro da pamonha. O carro do conserto de panelas. Ele estava com dores de cabeça. A propaganda política na tevê. Bira desligou a tevê. Colocou o CD do Bee Gees. -"Isso que é música, não Anita." Colocou as roupas sujas e programou a máquina de lavar. Um cheiro de fumaça. -" Usinas de cana lançam pó e fumaça a noite. Idiotas colocam fogo nas matas de dia. Porquê não botam fogo no rabo?!?" Ele fechou a porta de vidro da sacada e ligou o ventilador. O jornal. -"Só propaganda política. O jornal está cada vez mais fino. Eleições de prefeito e vereador. Comércio com vendas pífias, vacina Coronavac, desemprego, STF solta preso perigoso, senador com dinheiro na cueca, radares, escândalo na igreja, milícias, Thiago Silva convocado novamente, Bolsonaro demite outro ministro... de bom só a volta do pianista João Carlos Martins!" O velho Ubirajara ficou boquiaberto. O nome de um antigo amigo da polícia nas notas de falecimento. -" Não. Não pode ser o Estanislau." Ele pegou o celular. Fez várias ligações. Amigos confirmaram a morte do Estanislau. -" Era diabético, safenado e depois que se aposentou ficou sedentário. Ele fazia análise. Não resistiu ao Covid-19!" Disse a ele um sobrinho do saudoso policial. Bira deixou o corpo cair no sofá. Um filme passou diante dele. Pensou em dar uma volta e tomar uma branquinha. -"O bar do Gordo virou igreja evangélica!" Lembrou. A chuva recomeçou. Ele foi para o quarto. A escada. Pegou caixas empoeiradas sobre o guarda roupa. Suas coleções de carrinhos Hot Wheels e maços de cigarros. Os álbuns completos das copas de 78 a 2018. As camisetas de clubes de futebol. Os álbuns de fotografias, algumas em preto e branco. Fotos dos almoços de domingo. Macarronada com suco de groselha. As visitas da tia Iracema, que morava no Paraná. As crianças nadando no rio. O garoto Bira em cima da goiabeira do quintal. O gesso no braço quebrado no futebol de rua. O primeiro carro, um Opala. As formaturas de escola. O primeiro emprego na sapataria, que permitiu comprar todas as balas Juquinha, Sete Belo e pirulitos Zorro que quisesse. Fotos de passeios na Maria Fumaça, com a família. Os bailes no Clube Squalidus. Os cartazes de filmes do Cine Cacique. Fotos do filho Cauê, que morrera com sete anos, afogado na piscina. Muitas fotos com a farda policial. Uma foto dele, ao lado do ídolo Benito di Paula, num show. -"Como será seu velório, Bira?!" Ele perguntou para o espelho. Ele riu por um instante. -"Coitado. Tão novo, dirão alguns. Outros vão botar como estou bem. Alguns dirão que eu fui um grande homem, um amigo, um coração generoso. Mão de vaca, falarão outros. Vai em paz, será?! Será o fim de tudo ou apenas um recomeço? Uma passagem pra outra dimensão, talvez? O que eu deixarei para que se lembrem de mim? O que me espera do outro lado da vida? Curta a vida pois a vida é curta, sempre escutei essa frase!" Bira parecia um zumbi, andando com o olhar perdido no horizonte. O estômago roncou. O despertador do celular tocou. Era hora dele tomar o remédio antes das refeições. Abriu a geladeira.-"Uma fartura. Faltando muitas coisas." Um bilhete na porta com itens para comprar. Carne, óleo, frutas. Outro bilhete lembrava do vencimento da fatura da tevê por assinatura. Sobre o aparador um calhamaço de boletos. Bira começou a tremer a mão direita, a mesma que fez dele um dos melhores atiradores do batalhão. -"Uma aposentadoria irrisória para quem tanto trabalhou!" Ele deixou a porta da sala entreaberta. Colocou ração e água para o cãozinho. O quadro da santa ceia. -"Eu sinto muito. Jesus, eu não aguento. Eu só atrapalho, não farei falta alguma." Disse a si mesmo. Ele pegou o revólver na gaveta do criado mudo. Uma bala apenas. Bira colocou o cano na fronte. Fechou os olhos e disparou. O cãozinho não parava de latir. O porteiro foi o primeiro a chegar. O apartamento ficou cheio de curiosos. O velho Bira tinha tirado a própria vida. Um suicídio. Polícia, o SAMU chamados. O espírito de Bira observava toda aquela agitação. Ele saiu do corpo físico. Surpreso, viu Cosme e o síndico chorando. Alguém gostava dele, de verdade. -"É uma pena. Muito triste. Que Jesus tenha misericórdia do Bira e o receba no Reino!" Disse um dos vizinhos. -" Infelizmente, vivemos uma pandemia de suicídios. São quase oitocentos mil suicídios por ano! A saúde mental é fundamental!" Disse um dos policiais. -"Legal isso. Estou bem como se tivesse dezoito anos. É tipo Ghost, Do Outro Lado Da Vida, com Patrick Swayze e Woopi Goldberg!" Ele sentiu muito frio. Luzes. Ele estava fora do apartamento. Um belo jardim. Ele viu uma linda mulher, vindo em sua direção. Um vestido branco, brilhante. Ela ficou frente a frente dele. Era lindíssima. Ela o puxou e o beijou longamente. Um beijo apaixonado e quente mas que ficou frio. Gelado. Bira a soltou. A bela moça foi se transformando. Era agora uma caveira horripilante. Seu belo cinto de diamantes era agora um chicote. Um longo chicote. Ela o girou no ar. Um golpe certeiro e o chicote enrolou no pescoço dele. Ele pensou na mãe. A voz não saiu. Bira foi arrastado pelos vales fétidos e sombrios. F I M