Se há alguma coisa que me assusta mais do que fazer tratamento de canal dentário é viajar de avião. O problema de tratar canal dentário é uma questão de imagem sonora. A gente fica com aquele barulho do motorzinho na cabeça e a dor já começa a ser sentida antes mesmo de sentar na cadeira. É claro que hoje existem técnicas modernas que eliminam todos esses antigos constrangimentos que sentíamos num tratamento de canal, mas quem já passou por antigas experiências nesse sentido nunca esquece o barulho do tal motorzinho. É uma âncora poderosa. E sinistra.
.É a mesma coisa com o avião. Em meu trabalho tenho que viajar muito e usar esse meio de transporte regularmente. Não me consolam as estatísticas que mostram que o avião é o meio de transporte mais seguro que há. Que menos de 0,0001 dos aparelhos que levantam vôo apresentam qualquer problema. E menos ainda os que costumam cair. O que fica, em minha cabeça, são os grandes acidentes que acontecem. O que ruim a gente lembra para sempre. O que é bom a gente esquece logo.
Viajo muito de avião, mas a maioria das lembranças que tenho dessas viagens é o constrangimento que geralmente sinto. Quando subo aquela escada sinto-me como se estivesse entrando num rabecão, com destino à minha última morada. A toda hora corro para o banheiro. As aeromoças me perguntam se estou passando mal. Com um riso amarelo sempre digo que é o estômago. Não é. Sãos os intestinos.
Viagens longas, especialmente, são um tormento. No ano passado viajei para a Austrália. Fui lá para visitar uma filha que está morando em Sidney e aproveitar para divulgar um dos meus livros que estava sendo distribuído na comunidade brasileira daquela cidade.
Sidney tem uma comunidade brasileira muito grande. A Austrália é o Brasil que deu certo. Pelo menos até agora. Como dizem que brasileiro esculhamba com tudo, espero que isso não aconteça com a terra dos cangurus e dos koalas, pois o que tem de compatriota por lá é uma coisa de louco. Fui com minha filha numa discoteca lá em Sidney e pensei que estava numa balada no Rio ou no nordeste, pois só ouvia gente falando português.   
O problema é que a Austrália é longe demais. Se eu não tivesse certeza que a minha filha me ama tanto quanto eu a amo, eu poderia pensar que ela foi para lá para ficar o mais longe possível de mim. Mas eu sei que não é isso. Na verdade, ela foi para lá aperfeiçoar o seu inglês e acabou se apaixonando pelo país e por um guapo rapagão que hoje é o meu genro.  E aí não voltou mais. Tudo bem pois já me deu um neto, que é uma graça de garoto, e eu sinto que esta minha etnia tupiniquim, de olhos meios puxados, lembrando um oriental, e cabelos lisos como fios de arame plissados, já está com o dias contados.
Já fui à Austrália três vezes. Em cada uma dessas viagens passei mais de vinte horas no avião. Uma boa parte delas no banheiro. Sempre esperando a hora que alguém venha me cobrar aluguel por isso.
 
Quando estou num avião não consigo dormir. Parece-me que se o fizesse acordaria para a morte. Acordar para a morte é um pleonasmo metalinguístico do mesmo tipo que sair para fora, entrar para dentro, subir para cima, etc.
Nossos vícios de linguagem são praticados de forma tão inconsciente quanto os de comportamento. Sabemos que está errado falar dessa forma, mas fazemos assim mesmo. Talvez seja uma necessidade do nosso inconsciente, essa mania de exigir sempre um complemento para o verbo, mesmo que esse verbo seja intransitivo, ou seja, daqueles que completam-se por si mesmo, sem exigir um objeto direto ou indireto para completá-lo. É que na linguagem podemos ter intransição. Na vida não. Precisamos sempre ter um complemento para a ação que praticamos. Se não, tudo fica sem sentido.

Voltando ao avião, o fato é quando subo as escadas de um deles e sento-me na poltrona, penso que um condenado à pena de morte deve sentir a mesma coisa que eu sinto quando é manietado numa cadeira elétrica para tomar o seu hot squat. Fico tentando adivinhar quando o piloto vai anunciar que alguma coisa está errada e ele terá que efetuar um pouso de emergência. Conto os minutos, olho para o rosto das comissárias, sempre sérias, sempre impenetráveis, e procuro adivinhar naquelas posturas impassíveis, se algo vai mal.
Ai começo a recensear a minha vida. Que pecados imperdoáveis terei cometido? Que dirão de mim os meus amigos? Serei considerado um bom pai e um bom marido? Meu saldo no banco será suficiente para cobrir as despesas do meu funeral? Minha mulher terá dificuldades para receber o meu seguro?
Imagino-me estirado em uma maca, com o peito dilacerado e a cabeça esmagada. Bombeiros, policiais, paramédicos, gente fardada e uniformizada, de todos os lados, mexem nos meus bolsos, reviram meus papéis, folheiam meus documentos, pegam o dinheiro que retirei do caixa eletrônico antes de embarcar. Depois limpinho, barbeado, vestido com um terno preto, camisa branca imaculadamente passada e engomada, gravata vermelha e sapatos cuidadosamente engraxados, como se estivesse indo para um encontro com o presidente, eis-me deitado, imóvel dentro de um caixão, cercado de flores por todos os lados.
Contemplo minha derradeira imobilidade como se estivesse me vendo num espelho. Tenho vontade de piscar um olho, mas refuto imediatamente o gesto por causa do reboliço que causaria no salão, onde um monte de pessoas, com caras sérias e olhares teatralmente contristados, olham alternadamente para mim e para minha viúva, e para as guirlandas e coroas que enfeitam todas as paredes do salão. Pelo número delas a gente sempre vê o quanto se é querido, ou pelo menos, conhecido. No meu caso não é grande coisa.
 
Sempre que preciso pegar um avião passo antes pelo meu escritório. Despeço-me de todos como se não fosse voltar a vê-los. Ninguém estranha mais esse meu mórbido comportamento. Nas mãos que aperto, nos olhos que perscruto, nos lábios que me sorriem com sarcasmo ou com ironia, só vejo a dissimulação das pessoas que pensam que sou um debochado ou um louco. Ou então a piedade de quem sabe que eu estou indo irremediavelmente para a morte.
Antigamente as refeições nas aeronaves costumavam ser boas. Eu gostava mais do que hoje. Pelo menos disfarçava o medo comendo bem. Comia-se boa comida e bebia-se bom vinho. Principalmente nos aviões da Varig e da TransBrasil.
Eu costumava pensar que aquela era a última refeição do condenado. “Peça o que quiser. O senhor tem direito,” parecia-me ouvir a aeromoça dizendo, com aquele sorriso sarcástico. “ Me dê um pára-quedas e abra a porta de emergência”, eu tinha vontade de dizer. E havia aquela música ambiente. Musica calma, orquestrada, que sempre me trazia à mente aquele filme do Milos Forman, "Amadeus", com a imagem do Amadeus Mozart, derretendo-se em febre, ditando para o Salieri a partitura do seu Requiém.
Tento relaxar buscando na face dos outros passageiros algum sinal de que tudo é só uma bobagem da minha cabeça. Não vou morrer. Mas até o cara de óculos que parece ler, calmamente, o seu jornal, e a moça bonita que folheia a sua revista como se estivesse no salão de espera de um cabeleireiro, me dão a impressão que praticam seus atos inúteis sabendo que tudo que fazem são apenas manobras dilatórias, feitas apenas para enganar o medo.
Fecho os olhos por um instante. Vejo-me correndo para pegar o metrô na Praça da Sé. Um ônibus passa derramando gente por todas as suas saídas. Um sujeito bigodudo, com cara de português, está num dos cantos da praça tocando um realejo. Espanto-me pelo fato de existir alguém que ainda toque realejo. Um periquito tira um cartãozinho para uma moça. “Casar-te-ás em breve e terás três filhos”, diz o cartão. Que será que o periquito tiraria para mim? Vais morrer hoje, talvez? Não posso evitar que o meu cérebro produza tais pensamentos. Um menino engraxa os sapatos de um cara sentado na cadeira, folheando uma revista pornográfica. Eu não tenho tempo para fantasias eróticas. Vou morrer dentro de algumas horas e a libido é a primeira coisa que nos abandona ao primeiro sinal da morte.
Escuto ao longe um solo de piano em ré menor. É Mozart. E eu nunca aprendi a tocar piano. Ando apressado pela rua, misturado a uma multidão sem rosto. Empurro os que caminham lentamente. Tenho pressa. Sou empurrado por gente que parece estar mais apressada do que eu. Não olho as vitrinas, não pergunto preços, não paro para um café. Tenho pressa. Marcas famosas piscam e repiscam num painel luminoso. Tenho pressa.
 
Avião é para quem está realmente com pressa. É como o telefone, a internet, o e-mail, o watsapp. Queria dormir um pouco, mas tenho que fazer um monte de coisas antes de morrer. Preciso escrever uma carta, mas logo me dou conta do quanto isso se tornou antiquado. Ninguém escreve mais cartas hoje em dia. É mais fácil mandar um correio eletrônico, um torpedo, um twitter, sei lá. Preciso telefonar para minha mulher dizendo que não irei almoçar. Tenho que passar no correio, comprar um jornal, desmarcar a consulta com o gastro. Não é o estômago que me constrange, são os intestinos. Tenho pressa. Vou morrer. “ Você tem comprimidos para dor de cabeça?”, pergunto para a aeromoça.
A voz do comandante anuncia que dentro de alguns minutos estaremos aterrizando no aeroporto de ...Gozado. Não existe o verbo aterrizar no dicionário... Fomos os brasileiros que o inventamos. Os portugueses dizem aterrar mesmo. E aterrar é cobrir com terra. Estão vendo? Não adianta tentar enganar com a semântica o meu medo de avião. Tudo nele só me diz que vou morrer.
"Apertem os cintos e não fumem. Mantenham os assentos em posição vertical", diz uma voz que já parece vir do além. Abro o postigo da janelinha. As casas passam velozes lá fora. Aquele frio na barriga. O baque das rodas do trem de pouso anunciando, da forma mais sensível possível, que estamos de novo no chão. Enxugo o suor da testa e com o lenço na boca procuro evitar que o coração escape por ela. As asas que se abrem mostrando os slats e os ailerons. Parece que o avião vai explodir.
Ufa! Todo mundo já saiu. Eu sou o último. Preciso de tempo para recuperar a respiração e a normalidade dos batimentos cardíacos. Ao olhar para o mundo lá fora me lembro que ainda há pouco eu sentia que estava viajando em um rabecão. Agora parece que estou saindo do útero da minha mãe. Ao pisar no chão do aeroporto e respirar a golfada do ar quente que vem das turbinas do avião, a minha impressão é a de que acabo de reencarnar.