O CASTELINHO

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A primeira impressão foi de espanto. Mesmo depois de todos os anos de casamento, Elizabeth jamais imaginou que o marido levasse a família para morar num local como aquele. Os casal de filhos, igualmente boquiabertos, não conseguiam desviar os olhos da construção. Não fossem os carros passando a todo instante, as buzinas, os telefones celulares nas mãos informando detalhes inúteis do mundo e eles diriam terem sido transportados no tempo. Dr. Edgar Santos, o esposo, admirava as faces assombradas à sua frente e se regozijava.

- Pai, isso parece o castelo do Rei Arthur - falou Adrian apontando para a torre circular e central do imóvel - veja, há espaços para os habitantes atirarem pedras ou derramarem óleo quente, se for preciso - concluiu ironicamente do alto de seus quase quatorze anos de muita televisão na cabeça.

- Ameias, Adrian. O nome desses espaços é ameia e sim, eram utilizados para defesa e ataque mesmo - respondeu um dr. Edgar risonho- mas isso não vai ocorrer hoje.

- Eu não vou morar nisso - resmungou Arielle, a filha mais velha, agarrando o braço da mãe - se meus amigos souberem, serei a piada da escola, a doida do palácio, a esquisita, a bruxa de Salem. Pai, não faz isso comigo.

O semblante do homem não se alterara, previra essas reações.

- Não será por muito tempo. Além disso, Arielle, em Salem não havia nada parecido - disse com os olhos sorridentes - Entremos e nos acomodemos, o lugar está inteiramente mobiliado, vocês irão gostar.

O otimismo e bom humor do dr. Edgar empurrou os demais e ao abrir a grande porta de mogno, Elizabeth suspirou. Sua animação aumentava a cada cômodo visitado. Peças incrivelmente bem feitas e trabalhadas em seus menores detalhes, desde a imensa mesa na sala de jantar às cabeceiras das camas. E o melhor, móveis de época que ela, como consultora de antiguidades, avaliara pertencerem às décadas entre 1910 e 1930. Uma perfeição.

- Estamos em outro mundo, Edgar - confessou por fim - Não sei como você conseguiu, mas simplesmente adorei - um abraço caloroso selou a aprovação sob os olhares não tão satisfeitos dos jovens Adrian e Arielle.

Edgar era diretor executivo de uma grande empresa de construção civil e ao receber a proposta de aquisição e restauração daquele imóvel não teve nenhuma dúvida, era um negócio fabuloso em termos financeiros. E se havia algo que Edgar gostava era dinheiro, portanto, não se importou com a condição do vendedor para que a família morasse por seis meses no Castelo assim que estivesse pronto. Um detalhe que ninguém em boa consciência iria discutir, afinal, era um prédio histórico, peculiar e atrativo. Além de tudo, seria divertido, pensou Edgar. Por que não? Fechou o contrato com o representante dos antigos proprietários e iniciou os trabalhos. Finalmente estavam ali agora e Edgar achou que seis meses passariam muito rápido, principalmente depois da reação positiva de sua esposa.

- Querido, onde as crianças ficarão? - Elizabeth perguntou.

- Procurem e o melhor quarto será de quem encontrar primeiro - respondeu dando início à correria dos pequenos adultos que se animaram com essa espécie de aventura. Jovens sempre agem como jovens mesmo que estejam tentando fingir desagrado.

Havia muitos quartos no Castelo. Assim como salas para todas as finalidades: jogos, descanso, leitura, jantar, fumo. O interior do imóvel era bem maior do que a aparência externa deixava antever. Edgar pegou Elizabeth pela mão e a conduziu à suíte principal. A cama king size chamou imediatamente a atenção. Possuía protetores laterais e superior por onde deslizavam cortinas brancas semi-transparentes com ricos detalhes de artesanato, fazendo do móvel um recanto para sonhos de todas as cores.

- Edgar, essa casa é digna de reis - ela disse ao mesmo tempo que experimentava a maciez do colchão e a qualidade do tecido que o cobria.

- De reis, não, Elizabeth. Esse é o castelo "Dos Reis" - respondeu enigmaticamente.

Ainda imersa no deslumbramento da descoberta, Elizabeth não atentou para a brincadeira com as palavras e apenas sorriu imaginando um elogio.

Adrian e Arielle, após pequena disputa escolheram seus aposentos e, quase imediatamente, tentaram conectar suas redes sociais para informar a novidade, mas em vão. Ao contrário da situação na calçada de frente à casa, não havia nenhum resquício de sinal de internet, nem a mínima barrinha nos visores dos caros telefones celulares.

- Pai, não tem internet aqui. Nem o sinal dos nossos planos funciona - gritou Arielle diante da possibilidade inimaginável de não existir conexão com um mundo de estranhos.

- Não se preocupem, logo instalarão a rede - respondeu de forma abafada - aliás, estava pronta ontem, eu mesmo testei - lembrou com uma expressão de dúvida que lhe franzia a testa de um jeito característico.

Enquanto Elizabeth fazia questão de vistoriar todos os móveis e utensílios, os jovens, sem acesso virtual, subiram as escadas e se retiraram para seus quartos. Dr. Edgar, no cimo da torre, admirava a vista da cidade. A pequena praça defronte ao castelo, as ruas e seu movimento desenfreado contrastando a aparente tranqüilidade sólida do imóvel que resistira por mais de setenta anos de puro abandono, testemunha silente da transformação do mundo. E que agora era seu. Somente seu, afinal, não dizem que o lar do homem é seu castelo? Lar e castelo faziam de Edgar um privilegiado neste pôr-do-sol da metrópole empoeirada que se agitava para correr da chuva anunciada pelas grossas nuvens no horizonte. Não era uma cidade planejada para chuvas, poucos diriam que fora planejada para alguma coisa. Edgar entrou assim que sentiu as primeiras gotas lhe tocarem o paletó feito sob medida. “Nada como as águas batismais no primeiro dia de casa nova”.

A primeira semana de moradia foi bastante intensa, as novidades se amontoavam e se os adolescentes rejeitaram a ideia de morar no castelo alguma vez, era coisa do passado. Muito ao contrário. Sentiam-se orgulhosos da residência e, embora fossem observados à distância pelos vizinhos mais idosos, não deixaram de perceber certa reverência das pessoas com seu endereço exótico. Ainda que a internet não estivesse disponível dentro de casa ou que a televisão trazida e de última geração não sintonizasse nenhum canal, não havia outros motivos para reclamação.

Uma das grandes surpresas aconteceu logo no primeiro dia quando encontraram os guarda-roupas repletos de vestimentas da qualidade e muito novas, apesar de retratarem a moda das décadas passadas do auge do Castelinho. Paletós e ternos completos, vestidos rodados e de fitas, calçados femininos fechados, meias, roupas de baixo, o estoque completo de uma família inteira. Tudo aparentemente intacto. O passo lógico seguinte à descoberta seria experimentar os trajes. E assim o fizeram, simulando desfiles exagerando nas poses para as fotos imaginárias. Ouviram os discos antigos na clássica vitrola Harbor 78 rotações, acompanharam como puderam as vozes de Vicente Celestino e Silvio Caldas, dançaram ao som chiado do samba de Noel Rosa:

Estou vivendo com você / Num martírio sem igual

Vou largar você de mão / Com razão / Para me livrar do mal

Vou embora afinal / Você vai saber porque /

É pra me livrar do mal/ Que eu fujo de você

- Essa música é linda, meu amor - falou Elizabeth nos braços do marido - só não quero é fugir de você.

- Você não fugirá, Cândida, não dessa vez - respondeu Edgar com os olhos embaçados.

Ela se afastou rapidamente, interrompendo a dança.

- Quem é Cândida, Edgar? - a voz embargada por memórias não tão antigas assim.

Dr. Edgar se balançava ao ritmo dos instrumentos e parecia não ter ouvido ou percebido a mudança na esposa.

- Edgar, Edgar ... responda - quase gritou.

O disco na vitrola chegou ao fim encontrando todos em pé na sala, em silêncio. Apenas o barulho da velha agulha repisando o sulco de vinil se fazia presente. Tac... tac... tac....

Edgar, alheio a tudo, rodopiava entretido em si mesmo com os olhos fechados e as mãos parecendo conduzir uma dama num salão de valsa. De repente, estacou, abriu lentamente as pálpebras e ao se perceber alvo da estranha atenção, perguntou:

- Ué, pessoal, o que houve? Por que essas caras amarrotadas?

- Quem é Cândida? - repetiu Elizabeth.

- Eu não sei, mas por que essa pergunta e por que estão agindo assim?

- Você me chamou de Cândida enquanto estávamos dançando, disse que eu não fugiria de você dessa vez - a voz fria de Elizabeth demonstrava toda a amargura da ferida ainda não cicatrizada completamente.

- Meu amor, juro que não sei e juro que não me lembro de ter dito isso - explicou com total preocupação. Ele sabia como o ato que havia cometido no passado quase destruíra sua família - um lapso, uma distração, mas, certamente, algo inocente, eu juro, Elizabeth.

Alguma coisa na entonação do marido a convenceu.

- Tá bom, esqueça - ela encerrou o assunto para alívio explícito do marido e filhos - agora vamos dormir, o dia foi cheio.

A chuva iniciada à noitinha continuava castigando a cidade como se intentasse livrá-la de todos os males por afogamento. Trovões ribombavam à toda e os relâmpagos transferiam sua energia com raiva. Foi a primeira noite no castelinho da rua Apa.

Os dias transcorriam sem grande alvoroço na residência. As crianças estavam de férias. Dr. Edgar trabalhava normalmente e Elizabeth, afastada de suas funções por decisão pessoal, aproveitava para estudar a história do Castelinho. Suas descobertas entretinham a família ao cair da noite. Exceto quando revelou que na bela morada onde viviam, há coisa de muitos anos passados, no final da década de 1930, o Castelinho foi notícia nacional pelo estranho assassinato de dois irmãos e sua mãe sem que nunca se houvesse encontrado o culpado, tampouco o patriarca da família, sr. Virgílio dos Reis. Os meninos ficaram bastante assustados inicialmente, mas foram se esquecendo, apenas Edgar seguiu com a testa franzida por muitos dias após.

Aliás, não fosse a dificuldade com os empregados domésticos enviados pela agência de empregos que se demitiam, sem explicação, após alguns poucos dias, alguns saindo de maneira bastante apressada, inclusive, e estaria tudo na mais tranquila ordem.

Num desses dias, tão normal como qualquer outro até então, Edgar veio para o almoço, o que era raro, dado o ritmo do trabalho que exercia. Vinha animado no carro, ouvindo as últimas notícias do mercado internacional econômico. Entretanto, após guardar sua pasta e paletó, foi surpreendido com a presença de um visitante almoçando na companhia de Adrian, Arielle e Elizabeth.

- Querido, você não avisou que viria. Espere, vou pegar seu prato - Elizabeth disse assim que o viu.

- Não, meu bem. Vou almoçar no escritório. Tenho uns papéis para ler durante.

- Que pena - respondeu - você se lembra do Fred, não é? amigo de escola da Arielle?

- Sim, quero dizer, não.... vagamente. Tudo bem, Fred?

- Sim, senhor. Obrigado.

- Ótimo. Elizabeth, leve para mim o almoço, sim?

Edgar rumou para o escritório em passos rápidos e de maneira meio automática. Coisa que não passou despercebida aos presentes.

Quando Elizabeth entrou com a refeição para o marido, ele disse:

- Feche a porta, querida.

Ao se voltar, ela encontrou um rosto transfigurado no corpo de Edgar. Ele parecia prestes a sofrer uma convulsão. Seus olhos estavam saltados. A veia principal de sua testa pulsava visivelmente. Havia um certo tremor nas mãos e, outra pessoa não notaria, mas Elizabeth sim, uma pequena lágrima relutava em cair.

- Edgar, o que foi? Está passando mal? - disse aflita.

- Elizabeth, não sei se você notou, mas há um preto na sala, sentado em nossa mesa, almoçando tranquilamente com nossa família.

Essas palavras atingiram Elizabeth como um murro direto num confronto. Mais que isso, eram uma joelhada no plexo solar. Com algum esforço, ela conseguiu respirar para perguntar:

- Do que você está falando, homem de Deus? É o Fred, colega da Arielle. Você o conhece, conhece os pais dele. Que maluquice é essa? - despejou como pôde.

- Elizabeth. Uma coisa é conhecer socialmente. Falar com eles, tratá-los como iguais. Outra coisa muito diferente é tê-los em casa compartilhando a comida como convidado. Não se convida esse tipo de gente para comer na mesma mesa. No máximo, eles ficam na cozinha. No máximo, eles dirigem para nós, lavam nossas casas. Você ficou louca?

Dr. Edgar dos Santos, apesar de bastante reservado com outras pessoas, jamais havia se posicionado dessa forma. Ao contrário, tratava a todos com respeito. E tanto mais pensava nisso, mais Elizabeth parecia desconhecer o homem à sua frente.

- Edgar, você está brincando comigo? - arriscou - pode parar porque já me assustou muito - finalizou com um esboço de sorriso sem graça e amarelo, para não deixar dúvidas.

O executivo andava de um lado para o outro do escritório. Encostava a mão na parede sólida por alguns segundos e então recomeçava a caminhada contida no espaço. Sua expressão não era de ódio ou raiva, mas, do mais puro embaraço. Ele estava constrangido terrivelmente.

- Como eu vou encarar minha diretoria novamente, se eles souberem que almocei com um preto apenas por diversão e camaradagem? - perguntou à esposa.

O pequeno fiapo de esperança sobre ser brincadeira de mau gosto desfiou-se na mente de Elizabeth e ela apenas imobilizou-se.

Edgar bebeu um pouco de água. Afastou as cortinas da janela do escritório a tempo de ver do outro lado da rua um homem parado observando o castelo. Fechou a cortina e se voltou para a esposa:

- Conheci muitos pretos alforriados na fazenda de meu pai. Sei que eles não prestam - concluiu.

Essa última frase arrancou Elizabeth do estado de torpor. "Fazenda do pai?", "pretos alforriados?". E um medo profundo invadiu a senhora. Seu marido estava ficando louco. Ou demente. O que era pior. Já ouvira estórias de parentes e amigas sobre familiares que se desprendiam da realidade e fugiam para um mundo fantasioso causando dor e prejuízo a todos.

- Meu amor, tá bom. Não se irrite tanto. Logo ele se vai e tudo vai ficar bem. Sente-se. Acalme-se - o tom voz bem tranquilo, a mão encostando carinhosamente no ombro do marido, produziu o efeito desejado e Edgar pareceu esquecer o assunto.

- Vou cochilar um pouco. Se alguém ligar, diga que não voltarei. Ninguém vai ligar, porque não recebemos ligação aqui - terminou sorrindo e se encostando no grande sofá marrom. Em pouco tempo, dormia profundamente.

Elizabeth o deixou e foi tratar da casa. Fred havia partido e Arielle foi lhe mostrar as fotos tiradas com o amigo diante da casa. Dois jovens saudáveis e sorridentes, pareciam dois fantasmas por serem tão brancos. Ela precisava marcar uma consulta urgente para o marido, anotou mentalmente.

A partir desse momento, Edgar passou a se vestir apenas com as roupas encontradas na casa ao corte dos anos de 1930, inclusive chapéu modelo fedora, bengala e lustrosos sapatos pretos com a parte dianteira branca e suspensórios. Um misto de gangster com homem de negócios. Se existe uma coisa que o dinheiro compra é o direito de ser exótico. Edgar era exótico e rico. Os filhos não se importaram muito, estavam acostumados com trajes ainda mais absurdos de sua geração. Elizabeth preferia vê-lo assim e feliz que controlar seus ataques de raiva cada vez piores contra qualquer tipo de bobagem.

O Castelinho seguia imponente na rua. Poucas pessoas estranharam, após três meses da mudança da Família Santos, não mais existir movimento perceptível na residência durante o dia, embora ouvissem todas as noites o som de música e risadas.

Ao final de uma semana sem contato com seu executivo sênior, a empresa onde trabalhava acionou a polícia. Esta invadiu o Castelinho da Rua Apa e encontrou os corpos de Adrian, Arielle e Elizabeth, dois filhos e a mãe, todos assassinados a tiros de revólver. Nenhum sinal do dr. Edgar dos Santos foi identificado.

Os representantes dos antigos proprietários romperam o contrato na Justiça, uma vez que a clausula sobre morar no imóvel por seis meses não fora cumprida pelo novo dono e família. "Não foi dessa vez", um deles comentou com os demais. "Paciência, o senhor Dos Reis não tem pressa e, pelo menos agora, possui a companhia do sr. Edgar dos Santos."

Fim

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 08/10/2020
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