“Dorme bene…”, ela dizia, sempre antes do beijo mortal, na testa.
Eu tinha sido resgatado já há três semanas. Mas ainda estávamos todos numa espécie de hospital improvisado… pertinho das chamas, dos gritos, da morte. Impregnados por toda a loucura da guerra no Afeganistão. Provavelmente a pessoa que alvejara a minha perna ainda estava lá fora, ferindo outras pessoas, sendo ferida, matando, morrendo… Eles não se importavam… não como nós. A matança fazia “sentido” pra eles. Nós estávamos obedecendo ordens e queríamos MUITO ir pra casa.
Três semanas se passaram desde que tinha perdido minha perna e eu continuava mudo, encarando o vazio, sentindo fortes coceiras onde nada havia… Era “normal” sentir coceira nos membros perdidos. Muitos sentiam. Assim como também era normal ficar encarando o vazio sem nada dizer… Pois não havia nada a ser dito. Simplesmente ficávamos pensando na morte e nos amigos que se foram (sempre de formas horríveis)… inesquecíveis. Nos agarrávamos a imagem de lar. Pensando incansavelmente em voltar pra casa… Mas… Algo vinha em nossa cabeça, uma informação nova, um sentimento novo, como uma bactéria em formato de ideia… crescendo em nossas mentes. A gente se imagina de volta, com nossas mulheres, aposentadorias e filhos. E simplesmente aquilo não fazia mais sentido algum. Como viver sem a batalha? Como passar o resto da vida sem carregar – no mínimo - uma pistola, um rifle, uma metralhadora? O barulho ensurdecedor e seco de uma granada explodindo uma pessoa? E a sensação de heroísmo em todos os atos feitos? Por mais violentos que fossem…? Como esquecer o que a gente VIU?! E era exatamente quando esses pensamentos nos torturavam ao ponto de gemermos e chorarmos de dor… que ELA entrava.
Eu via os olhos débeis, alienados de sua próxima vítima. A minha maca era uma das últimas, mas logo seria a primeira. “Dorme bene…”; e em seguida um beijo estalado na testa. Idiotas… idiotas… eles SEMPRE sorriam. Um suspiro vinha em seguida. E fechavam os olhos, não abrindo de novo, nunca mais… Enquanto isso: do outro lado do mundo uma garota jovem de seus vinte e poucos anos, recém-casada, talvez esperando um filho, recebia uma bendita medalha de consolação por seu “herói” morto. Não por um tiro, mas por um beijo de um anjo da morte.
… é o que ela era.
Vestia uma calça jeans surrada e suja. E por cima, um jaleco com diversas manchas de sangue. Seu cabelo era preto e enorme, mas, sempre amarrado e bem puxado pra trás. Seus olhos pareciam de vidro. Pareciam bolas de gude verdes acopladas em seu rosto amarelado, um pouco sardento. Usava um batom vermelho… muito vermelho. Talvez a coisa mais vermelha que eu já vi. Entrava sorrindo de um jeito tão lindo, tão perfeito… que fazia com que sentíssemos que não estávamos mais no inferno. É o que anjos fazem… nos fazem esquecer. Esquecer onde estamos… esquecer a nossa dor. Mas o problema é que alguns de nós (eu, por exemplo) não queríamos esquecer dor alguma. A dor nos trazia de volta ao mundo dos vivos. A dor era excruciante, porém… ela nos levava de volta pra casa. Os que ficavam dormentes, lerdos, e se perdiam em suas próprias mentes, tornando-se vegetais. E que imploravam pra morrer ou enlouqueciam… Esses, quando ela entrava – sempre pouco antes do amanhecer – já eram encarados diretamente… ela sorria pra eles e eles sorriam de volta. O beijo vinha logo em seguida.
“Dorme bene…”.
Perdi a noção do tempo… Não sei se estava deitado há horas, dias ou meses. Meu pensamento se concentrava em minha família e em me levantar. Se eu me levantasse: sairia da lista negra. Meus vizinhos iam morrendo e morrendo… e o mais estranho era que ninguém mais entrava. Nenhum superior, nenhum outro enfermeiro, nenhum médico. Eu estava descobrindo a cada minuto a inexistência de um purgatório ou um inferno após a morte. Pois eu estava vivendo tudo ALI naquele lugar, naqueles meses. Primeiramente o inferno, no campo de batalha… e em seguida o purgatório naquela maca, pensando e remoendo todos os instantes de minha vida até ali, aguardando a inevitável chegada do anjo da morte. Eu sempre achei que os anjos eram lindos. Assim como o demônio provavelmente. E o anjo da morte… ali debruçando-se sobre nós… provavelmente era o anjo mais belo de todos. Por um lado, era tentador morrer de uma forma tão linda… tão única… tão calma e indolor… Por outro eu tinha uma vida, e um amor… E quando eu saí de casa ela estava com dois meses de gravidez e não me contara. Achou que seria sofrido demais pra mim, embarcar sabendo.
A carta chegou meses depois com uma foto. E ela estava enorme e linda como uma sereia sentada na areia da praia, perto de nossa casa. Hoje é certo que o bebê já nasceu e eu não sei se ela me aguarda pra pôr um nome ou se já escolheu, isso não importa. Também não me importa se é menina ou menino ou se nasceu com uma válvula na cabeça ou pé chato, nada disso importa. Existe uma vida lá em casa, me esperando e eu preciso vê-la. Eu preciso conhecê-la… preciso ESTAR com ela… e criá-la.
Acordei e não sei bem como, mas tinha certeza que era domingo. A ferida em minha perna latejava. As lágrimas desciam de uma forma incontida, como se meu corpo transbordasse de dor. Ela chegou. Olhei pro lado, tentei gritar, mas a voz saiu rouca e extremamente baixa. Eu era o único restante.
- Eu ainda posso viver. - Eu disse.
Ela parou por um instante e me encarou, séria. Seu olhar não era mal, de forma alguma. Ela era pura ternura…
- … prometo que você será feliz. – Ela disse, se aproximando e sorrindo.
- não é isso… não é isso que eu quero.
Ela sentou ao meu lado e pôs as mãos em meu rosto. Suas mãos eram quentes e minha dor na perna cessou instantemente.
- É isso que eu lhe prometo. Você mereceu. É o fim da dor… O fim da guerra. O fim de todas as coisas…
- Um suspiro de alívio. – Eu completei.
- Exatamente…
Ela veio se aproximando pra me beijar. Mas com toda a força que pude reunir consegui afastá-la com um trêmulo – e fraco - empurrão.
- Eu quero sentir dor. – Falei, chorando… - e de repente a minha dor na perna voltou, mais forte do que nunca.
- Eis a dor. – Ela disse… com um olhar conformado, mas quase de reprovação.
- Depois da dor… eu vou ver elas duas…
- Pode não ser como você imagina.
Nesse momento, pôs novamente a mão sobre minha face. E pude notar que seus olhos se encheram d’água. Como se o fato de saber que eu sofreria fosse incrivelmente triste pra ela.
- Nunca é… – Respondi balbuciando, pouco antes de desmaiar. - Quando acordei, estava num helicóptero.
Ainda deitado numa maca… e a dor estava presente, porém muito mais branda. Eu me senti drogado, confuso provavelmente estava sedado. Dois paramédicos me cercavam, me perguntando vez ou outra o que eu estava sentindo. Quando cheguei encontrei ela e encontrei o meu bebê.
… Realmente não ficamos juntos por muito tempo. A guerra transforma as pessoas, acontece muito frequentemente… elas olham pra nós e não nos reconhecem mais. Ela não conseguia ver o homem que se casou e de fato eu não era. Tudo isso aconteceu há muitos anos atrás… Hoje já tenho uma outra pessoa e outros filhos também. A minha filha mais velha é quase uma mulher. E se você acreditou em minha história, há de acreditar também: Ela é praticamente IDÊNTICA fisicamente, àquela enfermeira, que me ajudou a entender o propósito de insistir em continuar vivo.