O RETRATO

A beleza fazia parte do seu trabalho, da sua vida. Márcio era fotógrafo, lógico que a sensibilidade, a percepção, o estudo e um bom equipamento colaboravam para que obtivesse o sucesso desejado em suas funções. No entanto, não havia como negar que uma bela paisagem, um cenário bem montado e, sobretudo, modelos cuja beleza saltavam aos olhos ajudavam, e muito, nesse quesito.

Durante boa parte de sua vida profissional, Márcio não se atentara a um detalhe crucial acerca da beleza: a ação do tempo. Esse estalo em sua cabeça só ocorreu justamente ao analisar alguns fios grisalhos espalhados aleatoriamente em sua barba rala e na vasta cabeleireira que ostentava com orgulho. Então, intrigado, Márcio passou a examinar com atenção os suaves sulcos que discretamente descreviam caminhos irregulares sobre seu rosto.

De súbito, ele gritou ao sentir a ação da brasa do cigarro em seus dedos. Com o susto, esbarrou no vidro de perfume sobre o balcão, fazendo com que o invólucro se partisse em inúmeros pedaços de vidro. Então, Márcio percebeu que a vida era exatamente como aquele recipiente. Num momento estava repleto de algo bom e precioso, num outro já não contava com mais nada.

Márcio não queria isso para si. Não queria se deixar murchar como uma planta sem água, não queria deixar o tempo se alimentar de sua jovialidade, consumir a sua vida.

Naquela noite Márcio foi dormir com essa preocupação no pensamento. E ele sonhou, e seu sonho voou e pousou num lugar indecifrável, onde um homem desconhecido, impecavelmente trajado, lhe oferecia um sorriso e uma proposta. Ele lhe ofertava uma vida de jovialidade eterna e, em troca, pedia apenas que Márcio lhe fornecesse, em retribuição, algo tão belo e jovem quanto o viço que almejava manter.

Quando acordou, Márcio tinha a plena convicção de que a experiência noturna extrapolara os limites de um mero devaneio, pois sonhos não deixavam marcas como a que exibia na mão direita, onde uma impressão vermelha intensa, como uma queimadura, se apresentava. Ele se lembrava perfeitamente do aperto de mão com o estranho. E, embora não sentisse dor no local, o traço deixava claro o evento como real.

Márcio estava disposto a pagar para ver e já tinha em mente um plano. Ainda naquela tarde ele teria um encontro profissional e, se tudo corresse a seu favor, um trabalho adicional seria feito.

No estúdio fotográfico, Bruna já estava preparada para começar a sessão. Márcio seguia orientando acerca de poses e expressões. Tudo corria normal até que o fotógrafo sugeriu uma pausa. Enquanto a menina se refrescava com um copo d’água, Márcio se retirou até uma sala reservada, saindo de lá com alguns objetos estranhos ao seu ofício.

No entanto, ao dobrar o corredor, o fotógrafo se chocou com Bruna que vinha na direção oposta. Com o encontro, Márcio deixou cair a faca de gume duplo e as algemas, atraindo a atenção e o sentido de alerta da garota.

Decidido, Márcio investiu numa tentativa de subjuga-la, porém, o que ele ainda não sabia e descobriria da pior forma, era que Bruna não era tão indefesa assim.

A jovem, versada em artes marciais mistas, puxou Márcio para o chão, deslizando o quadril para o lado, para em seguida projetar as pernas no ar, prendendo o braço esquerdo do rapaz numa chave.

Parcialmente imobilizado e sentindo uma dor que jamais imaginara poder existir, Márcio tateava com o braço direito, tentando alcançar algo nas próprias costas.

De súbito, um estampido ribombou no estúdio. Márcio conseguira alcançar o revólver preso junto à parte de trás da calça.

O projétil atingira uma das pernas de Bruna. A garota chorava e implorava pela vida. Márcio, ainda se recuperando da dor de ter um braço quase quebrado, se levantava e seguia na direção do punhal e das algemas.

Bruna se arrastava deixando um rastro escarlate pelo piso do estúdio. Ela soluçava, tentava a todo custo escapar, mas a situação não lhe era favorável.

Com facilidade, Márcio a prendeu com as algemas. E, com extrema frieza cravou a lâmina no tórax desnudo da jovem. Um grito de dor foi ouvido e logo o silêncio imperou.

Suando e gargalhando como se dominado pela loucura, Márcio erguia o coração ensanguentado sobre a cabeça. Ele chamava por aquele que lhe oferecera a jovialidade eterna.

Não tardou para que uma névoa escura, densa e fétida se impregnasse no ambiente. O fenômeno rodeou o corpo caído de Bruna e em alguns segundos não havia mais nada sobre o assoalho, nem mesmo as manchas de sangue.

O coração nas mãos de Márcio pulsava como se a vida da jovem ainda corresse em cada cavidade do músculo.

“Coma”! Ordenava a voz da silhueta mesclada entre as brumas invasoras. “Honre o pacto”!

Márcio não titubeou e com sofreguidão devorou cada pedaço do órgão arrancado do corpo de sua cliente. Logo, ao término do ato, a sombra pairou sobre o fotógrafo e envolveu o seu corpo.

Alguns dias depois...

Márcio executava suas orientações à modelo enquanto sorria e manejava com desenvoltura a câmera fotográfica. A garota também sorria, totalmente alheia aos eventos de dias antes.

Da parede, emoldurado numa eterna juventude, Márcio, o verdadeiro, não aquele corpo vazio de alma e preenchido pela essência do demônio contratante que fotografava logo abaixo, apenas assistia a tudo. Sem poder agir. Sem poder viver. Márcio, enganado como muitos, era apenas um retrato em eterna danação.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 08/10/2020
Reeditado em 23/11/2021
Código do texto: T7082964
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