A PROMESSA DE LUIZ

Ele tinha plena consciência de que estava errado. Sabia que não deveria ofender a ordem natural das coisas. No entanto, ainda assim, caminhava decidido a romper com todas as regras do bom senso. Afinal, ele precisava corrigir um erro. Atender a um último pedido era sua obrigação. Mesmo que para isso fosse preciso profanar os limites da ética, da moral e, até mesmo, das diretrizes mais sagradas.

Com muita dor, Luiz reconheceu os contornos daquelas instalações. Sabia o que significavam o concreto do muro e o ferro do portão. Seus olhos jamais esqueceriam tais limites, pois a perda queimava como uma chama ardente em seu peito. Ele sentia medo, estava receoso. A madrugada trazia o anonimato necessário para o ato vil que estava prestes a cometer, mas desafiar a vontade absoluta da morte causava temor. As trevas pareciam muito mais traiçoeiras do que jamais poderia imaginar.

Luiz adentrou pelo terreno com passos vacilantes, pois sua mente travava um verdadeiro duelo contra a vontade própria insinuada por cada músculo do seu corpo.

Conforme ele andava, a terra negra e fofa do solo se impregnava na sola dos seus pés. Marcas foram deixadas sobre as pedras de mármore e cerâmica, era impossível evitá-las. Ele sentia frio, muito frio. A escuridão do ambiente lhe causava tontura. As paredes pareciam demonstrar o insano desejo de espremer seu corpo. O lugar era inóspito, ele não deveria estar ali, mas era tarde demais.

Resignado, ele prosseguiu, e logo viu o que buscava: a madeira talhada e banhada pelo brilho viscoso do verniz. Protegida pelo mogno, estava ela, aquela que, apesar das condições, ele desejava ardentemente encontrar. Enfim, poderia cumprir a missão que os próprios interesses mesquinhos trataram de protelar. Tarefa esta que a vontade mórbida do destino quis destruir, mas que ele, apesar de temer um castigo divino, decidiu acatar.

Um último beijo. Uma dívida a pagar. Depois a deixaria em paz, pois uma imensa barreira os separava, um abismo entre os mundos.

Ele puxou a madeira de encontro a si. Os traços inconfundíveis da amada se revelaram. Apesar das circunstâncias, ela lhe pareceu mais linda do que nunca. A jovem descansava impávida. Seus olhos cerrados transmitiam serenidade.

Luiz esboçou um sorriso, apesar da tristeza profunda e incontornável que lhe consumia. Lembrar da felicidade desperdiçada, de uma vida jogada fora, era inevitável. As memórias acerca da despedida lhe açoitavam como um chicote venenoso. Naquela noite, mesmo com os olhos lavados em lágrimas, ela irradiava esplendor. Ela pediu, implorou, para que ele não a deixasse naquela noite, não naquela ocasião especial, no aniversário de casamento. Mas Luiz insistiu, disse com convicção que precisava atender ao chamado do trabalho, as urgências aconteciam. Ela insistiu e esse fato tirou todo o controle que Luiz jurava ter.

Assim, resignada, ela lhe disse que não seria um obstáculo. Aceitou a insensatez da melhor maneira que a sua dor permitiu. Mas, fez apenas um único pedido por abrir mão da própria felicidade: ela desejava um beijo antes de deixá-lo partir para o encontro com as telas e teclados. No entanto, a revolta de Luiz não permitiu, fazendo com que ele se levantasse da cadeira no restaurante de forma abrupta.

Logo, de maneira indiferente e insensível, ele cruzou a porta do estabelecimento e partiu, deixando a mulher sozinha, para ir embora de táxi ou da melhor maneira que quisesse. Essa foi a última vez que a viu antes da tragédia. Antes da lâmina certeira e infalível, manipulada pela mão descarnada da morte, cumprir a tarefa que lhe era destinada.

Agora ele estava ali, mais uma vez diante dela. Pronto para superar os próprios medos, a fim de realizar o desejo renegado. Lentamente, ele se aproximou do rosto imóvel da mulher e, ainda mais delicado, pousou os lábios sobre a boca tenra daquela que amou. O contato lhe proporcionou um turbilhão de sentimentos. A temperatura obtida com o toque não era agradável, mas ele apreciou cada instante daquele breve segundo.

A garota não poderia dizer o mesmo. Ao ter a casa profanada, ao ter o próprio quarto invadido, ao ser acordada no meio da noite por aquela criatura nefasta, a qual deveria estar selada sob o descanso eterno da morte. Aquele homem deveria estar lacrado no mausoléu, ali não era mais o seu lugar, ali não era uma casa das almas ou lugar de seres rastejantes. Luiz não deveria estar dividindo o mundo com os vivos. Diante de tamanha provação, ao ter um beijo roubado, a única coisa que a menina sentiu foi medo. Só o que conseguiu fazer, foi gritar. Um grito vivo, franco e pleno de horror!

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 08/10/2020
Código do texto: T7082953
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